Tisha b’Av, o nono dia do mês hebraico de Menachem Av, é um dia de luto para o Povo Judeu. Nessa data, há aproximadamente 2 mil anos, o Templo Sagrado de Jerusalém foi destruído.
A queda do Templo, além de ser uma tragédia por si só, simboliza o sofrimento dos judeus ao longo de dois milênios: o exílio de nossa pátria seguido de perseguições e expulsões, tortura e genocídio. Mesmo a criação do Estado de Israel não compensou a perda do Templo e suas consequências. Por esse motivo, apesar do estabelecimento do Estado Judeu, tanto os judeus que vivem na Terra Santa quanto os que habitam na Diáspora continuam a observar o jejum de Tisha b’Av e os costumes de luto durante as três semanas que antecedem a data.
No Talmud, no Tratado de Sotá, encontra-se uma afirmação de Rabi Eliezer, o Grande: “Desde o dia em que o Templo foi destruído, os sábios começaram a agir como escribas, e os escribas se tornaram funcionários públicos, os funcionários públicos passaram a agir como pessoas comuns e estas estão se deteriorando”.
Rabi Eliezer lamenta a deterioração espiritual que se iniciou após a queda do Templo – um processo contínuo de empobrecimento ao qual os indivíduos se acostumaram e que passaram a aceitar como uma situação normal. Rabi Eliezer, então, acrescenta: “E ninguém exige, ninguém procura e ninguém pergunta”.
Essa afirmação é aparentemente nada mais que poética, possuindo três significados parecidos. Mas, na realidade, é um exemplo da deterioração espiritual à qual Rabi Eliezer se refere: pois, quem “exige” o faz veementemente, pedindo respostas e soluções. Menos taxativo é aquele que “procura”, que busca por algo e quer uma resposta. O menos imperativo é aquele que simplesmente “pergunta”. Rabi Eliezer lamenta o desinteresse generalizado das pessoas. Por fim, depois de apresentar sua visão sobre a situação espiritual do mundo em geral, e do Povo Judeu em particular, conclui com as seguintes palavras: “(Em tal situação) em quem podemos nos apoiar? Em nosso Pai Celestial”.
Tal conclusão parece ser o ápice do desespero. Para muitos, voltar-se ao nosso Pai Celestial é o último recurso – o que se faz quando todas as outras opções falharam e não resta alternativa. No entanto, a afirmação de Rabi Eliezer pode ser interpretada não como um grito de desespero, mas como uma declaração de fato, como um bom conselho, principalmente para a nossa geração.
Esta geração é, possivelmente, a única em toda a história de nosso povo que é desprovida de verdadeiros líderes espirituais. Os últimos Tzadikim, os verdadeiros servos de D’us, ocultaram-se de nossos olhos anos atrás. Em toda geração, houve ao menos um homem que personificasse Moshé Rabenu, o maior profeta e líder judeu de todos os tempos. Hoje, não há ninguém. Nossa geração caminha na escuridão.
Comparados aos líderes espirituais do passado, os sábios de hoje são, no máximo, “escribas”: são capazes de transmitir o que outros ensinaram, mas não conseguem nos enriquecer com nenhuma nova missão ou inspiração. Os “escribas”, isto é, os professores, se tornaram “funcionários públicos”, tentando manter a ordem em nossas escolas. Geralmente, nelas não há muito tempo para o aprendizado porque os “escribas” devem agir como “guardas”. Estão muito ocupados tentando disciplinar os alunos para que possam lhes transmitir tanto sabedoria como conhecimento. Já a maioria dos “funcionários públicos” – os líderes políticos e comunitários, tanto no Estado de Israel como na Diáspora – não demonstra liderança nem muita preocupação com a sociedade. Os idealistas se foram, a maioria dos “funcionários públicos” está a serviço não do povo, mas de si mesma.
Por último, no que se refere às pessoas comuns: a decadência espiritual e a indiferença intelectual são evidentes. Em um livro publicado há 200 anos, o autor escreveu: “Até o judeu mais frívolo e delinquente usa um Talit Katan e ora pelo menos três vezes ao dia”. Atualmente, a maioria dos judeus nem sequer sabe o que é um Talit Katan. E aquele que reza três vezes ao dia é considerado fanático ou santo. De fato, nossa geração é o exemplo mais claro do que Rabi Eliezer diz que aconteceu após a queda do Templo.
No entanto, essa situação é, até certo ponto, encorajadora. Como não há ninguém na Terra em que possamos nos apoiar, não temos outra opção a não ser nos voltar ao nosso Pai Celestial. A sequência de “sábios, escribas, funcionários públicos” implica uma estrutura na qual esperamos depender de outras pessoas. A afirmação feita por Rabi Eliezer não é tanto um grito de desespero, e sim, um chamado para uma mudança de direção. Temos dependido de outras pessoas há tanto tempo que esquecemos nossa conexão e nosso comprometimento com o Mestre do Universo. Essa é a razão por que há uma deterioração geral. Por tempo demais temos dependido de rabinos, professores e líderes comunitários para trabalhar por nós: para orar e estudar por nós, educar nossos filhos, cuidar de pobres e necessitados e perpetuar o judaísmo e a integridade do Povo Judeu. Rabi Eliezer nos ensina: o dia em que você não encontrar ninguém de quem depender – “sábios, escribas, funcionários públicos” –voltará à Fonte de tudo. Em outras palavras: quando não houver alternativa, seremos obrigados a reconstruir nosso caminho e nosso relacionamento pessoal com D’us.
O Talmud ensina que um judeu pode se aproximar de D’us por meio dos Sábios, que são a personificação da Sabedoria Divina. Mas o que se faz quando não há mais Sábios na Terra? Deve-se ir, então, direto à Fonte. O que ocorrerá quando deixarmos de depender de rabinos e professores para ensinar a Torá a nossos filhos? Talvez, então, comecemos a aprender e a cumprir o mandamento Divino de “ensinarás (a Torá) completamente aos seus filhos”. Na ausência de “sábios, escribas e funcionários públicos”, não apenas interromperemos o processo de deterioração, talvez, mas o reverteremos; começaremos não apenas a perguntar, mas a procurar. E não apenas a procurar, mas a exigir.
Na Torá, consta o seguinte verso: “O que o Eterno, Seu D’us, pede a você?” (Deuteronômio 10:12). Essa pergunta é dirigida a cada indivíduo em particular. E na descrição do momento em que é selada a Aliança entre D’us e o Povo Judeu, tal pergunta é feita não apenas a cada indivíduo, mas a cada geração: “Não foi com os nossos antepassados que o Eterno fez essa Aliança, mas conosco, com todos nós que hoje estamos vivos” (Deuteronômio 5:3). O versículo enfatiza que a Aliança não foi selada apenas com a geração que recebeu a Torá, mas com todas as futuras gerações incluindo, é claro, a nossa.
Como a Palavra Divina é atemporal e eterna e fala a todo ser humano em toda geração, a exigência de D’us é muito real. Exige o comprometimento de cada pessoa. A Torá não foi dada apenas “aos sábios, aos escribas e aos funcionários públicos”. Foi entregue a cada judeu. Consequentemente, não nos permite transferir a obrigação para outros e responsabilizar a falta de liderança por todo e qualquer mal. Se desejamos uma solução para o problema da deterioração espiritual, é necessário criar uma relação pessoal com D’us, não apenas na teoria, mas na prática. E isso é difícil, pois nosso Pai Celestial, diferentemente dos “escribas e dos funcionários públicos”, não pode ser enganado.
No período entre a destruição do Templo e a vinda doMashiach, em que não podemos mais depender dos outros e há uma decadência espiritual contínua – uma geração sendo espiritualmente inferior à anterior –, e em que não há mais ninguém a seguir, cada um deve andar por conta própria. A prática dos mandamentos do judaísmo e o conhecimento da Torá não podem ser relegados aos rabinos, e a realização de boas ações não pode ser responsabilidade apenas dos funcionários públicos. Em vez disso, cada indivíduo deve se responsabilizar pela prática, contínua e ininterrupta, dos três pilares que sustentam o mundo: o estudo da Torá, o serviço a D’us (por meio da oração e do cumprimento dos mandamentos Divinos) e a prática de boas ações e de atos de bondade e generosidade com todos os seres humanos e criaturas que habitam a Terra. Assim, cada um deve começar não apenas falando, mas sim, vivendo de acordo com o ensinamento de que “o mundo foi criado para mim” (Talmud, Sanhedrin 37a). Em outras palavras, cada um deve ser responsável pelo que acontece no mundo. Quando alguém se sente pessoalmente responsável pelo bem-estar do mundo, começa a viver de maneira muito diferente. Quando não há mais em quem se apoiar, surge a esperança de que o ser humano estabelecerá uma comunicação direta com D’us e, o que é essencial, a viver de acordo com ela.
Em outras palavras, deve estar bem claro para nós que, apesar de todo o progresso e tecnologia, há muita escuridão no mundo e necessitamos desesperadamente de mais luz. No passado, os Sábios eram os faróis. E agora, já que não há mais esses faróis para nos guiar, cada um de nós deve acender sua própria vela. Se milhões de velas forem acesas, juntas criarão uma grande luz, talvez maior do que a de qualquer farol.
Nas palavras de Rabi Eliezer: “De quem podemos depender? De nosso Pai Celestial”, há uma esperança genuína – não apenas de que há Alguém de quem depender, mas também de que somos capazes de fazer a transição da dependência de outros para uma postura na qual assumimos nossas responsabilidades pessoais.
Felizmente, D'us não exigiu que recorramos a um intermediário para conseguir chegar a Ele. Todo ser humano pode sempre apelar para o Eterno. Mas devemos nos lembrar de que nosso relacionamento com o Ser Supremo é recíproco. Invocamos a D’us e Ele invoca a nós. A pergunta que o Eterno fez a Adão no Jardim do Éden, “Onde você está?” (Gênese 2: 9), cujo significado é, “o que você está fazendo com a sua vida?”, é dirigida a cada um de nós: aplica-se a cada ser humano em toda geração. A pergunta de D’us a Adão se aplica especialmente à nossa geração, na qual a desunião e a apatia são gritantes. Nossa sociedade deve, mais uma vez, perguntar, procurar, exigir e construir um novo mundo baseado na contribuição, pequena ou grande, de cada indivíduo. Se cada um fizer sua parte, o mundo se tornará um lugar muito melhor. Se cada um acender a luz de sua alma, o mundo será preenchido com luz. Se cada um der um passo adiante, o mundo inteiro será transformado e outro novo e mais bonito será construído.
Alguns místicos sugerem que nossa geração é a reencarnação dos judeus que foram libertados da escravidão egípcia. Antes de ocorrerem os milagres e a subsequente libertação, desceram ao 49º nível de impureza espiritual – chegaram próximo ao nível mais baixo, o 50º, do qual seria impossível serem redimidos. E mesmo assim, não apenas presenciaram grandes milagres, como também foram liderados por Moshé Rabenu e receberam a Torá, entregue pelo próprio Eterno. Atualmente, encontramo-nos em uma situação semelhante. De várias maneiras, a situação não poderia ser pior. Ao mesmo tempo, estamos no limiar de uma nova era. No entanto, quando exatamente e como isso acontecerá depende de nós.
A Redenção Messiânica é comparada à redenção do Egito. Também será anunciada por grandes milagres. Mas precisamos estar cientes de que quando D’us tirou nossos ancestrais do Egito, apesar de todos os grandes milagres por Ele realizados – as Dez Pragas, a entrega da Torá, o envio do maná dos céus e muitos outros –, não foi Ele quem construiu o Tabernáculo.
O lar físico de D’us na Terra não caiu dos Céus, mas foi erguido com a contribuição de cada judeu. Rabi Eliezer, o Grande, fala sobre os tempos que antecedem a vinda do Mashiach, quando ensina: não sabemos quando o Templo será reconstruído, mas seremos nós, cada um de nós, que contribuirá para suas fundações. Cada indivíduo – não apenas os “sábios, os escribas e os funcionários públicos” – devem dar sua “pedra”, sua própria e única contribuição, grande ou pequena. Quando cada um contribuir com sua “pedra”, o Templo e a Cidade de D’us serão construídos. Mais do que isso: um novo mundo surgirá. Antes de serem redimidos do Egito, os judeus clamaram a D’us e seu clamor ascendeu aos Céus. Foi apenas a partir desse momento que o Eterno agiu para libertá-los da escravidão e da opressão. Se fizermos o mesmo com sinceridade – se clamarmos a nosso Pai Celestial com sinceridade e do mais fundo de nosso coração – nossos apelos também ascenderão às Alturas.
E Ele, que é “bondoso com todos e Suas misericórdias se estendem a todas as Suas Criações” (Salmo 145:9), enviará o Profeta Eliyahu, que anunciará que a paz finalmente chegou ao mundo e que se iniciará uma nova era na qual a morte e todas as formas de sofrimento desaparecerão da Terra. Será um tempo no qual “não haverá guerra, nem fome. Inveja e competição não mais existirão, todas as coisas boas serão totalmente plenas e todas as delícias serão tão comuns quanto o pó da terra. A principal tarefa da humanidade será então conhecer a D’us”. (13 Princípios da Fé Judaica, Maimônides).
Que tal dia possa chegar muito em breve, Bimhera Beyamenu, rapidamente em nossos dias. Amen, Ken Yehi Ratson.
Bibliografia:
Rabi Steinsaltz, Adin (Even Israel), On Whom Can We Rely? A Dear Son to Me: A Collection of Talks and Writings, Maggid Books, Koren Publishers, Jerusalem