Nos livros Vayicrá (Levítico 11:1–7) e Devarim (Deuteronômio 14:6–8), a Torá ensina que, para serem considerados casher, os animais terrestres devem ter cascos completamente fendidos e ruminar. Qualquer espécie que satisfaça apenas um (ou nenhum) desses critérios é considerada não casher e, portanto, proibida para consumo.

Por: Tev Djmal

Além de estabelecer esses dois parâmetros, a Torá identifica quatro animais que atendem a apenas um deles: o gamal (camelo), o shafan (hírax), a arnevet (lebre) e o chazir (porco), pois os três primeiros ruminam, mas não têm cascos fendidos, enquanto, no caso do último, verifica-se justamente o contrário. A Torá apresenta-os como uma lista exclusiva e observa que nenhum outro animal terrestre apresenta essa combinação parcial de sinais, uma afirmação com implicações teológicas profundas.

O Pentateuco foi transcrito há mais de 3.300 anos, quando nosso conhecimento sobre a natureza era geograficamente limitado e vastos ecossistemas nos eram desconhecidos. Se verdadeira, a informação de que só quatro espécies atendem a um único critério de cashrut estaria além da capacidade humana daquela época remota. Tal precisão reforça um princípio central da fé judaica: a origem Divina da Torá. Segundo o Talmud Bavli (Chulin 60b): “Moshé Rabenu não era caçador nem arqueiro” (ou seja, não tinha familiaridade com todos os animais do mundo), o que é “uma refutação àqueles que dizem que a Torá não é dos Céus”.

Apesar dos avanços da biologia, da taxonomia e da exploração do planeta, jamais foi identificada uma quinta espécie terrestre que apresente apenas um dos sinais de cashrut. Milhares já foram catalogadas, e a constatação de Vayicrá e Devarim permanece plenamente válida.

Respostas às contestações dos céticos

A identificação, pela Torá, das quatro únicas espécies terrestres que exibem apenas um dos dois sinais de cashrut tem um propósito teológico claro. Como, para ser considerado casher, o animal deve ruminar e ter cascos totalmente fendidos, pareceria desnecessário mencionar os que só atendem àquele critério, algo evidente à observação.

O porco, que, devido a sua anatomia externa, pode parecer apropriado para consumo, é a exceção. Como pode passar despercebido o fato, menos evidente, de ele não ruminar, é compreensível sua inclusão explícita. Já nas outras três espécies, que não têm cascos fendidos, a condição de não casher é bem aparente.

A Torá, no entanto, não se restringe à classificação de animais. Ao nomear essas quatro espécies, faz uma afirmação implícita, mas profunda: apenas elas, em todo o mundo, apresentam essa combinação parcial de sinais. Isso revela um conhecimento da natureza que ultrapassa a capacidade humana da época e reforça a crença na origem Divina da Torá. Só um Ser onisciente poderia afirmar, com segurança, que não existe uma quinta espécie com apenas uma das características exigidas para ser casher.

Contudo, ao afirmar que essas leis servem como evidência da autoria Divina da Torá, é preciso estar preparado para responder a questionamentos. Ao contrário do que ocorre com o gamal (camelo) e o chazir (porco), a ciência moderna levantou dúvidas quanto à identificação do shafan e da arnevet. Com base em versículos de Salmos e Provérbios, muitos estudiosos associam essas duas últimas espécies ao hírax (Procavia capensis) e à lebre (Lepus), as quais, de acordo com a Torá, não são casher porque, embora “ruminem”, não têm cascos fendidos. Segundo os críticos, porém, esses animais nem possuem estômago compartimentado, nem regurgitam o alimento de forma que, conforme a definição técnica moderna, não são ruminantes.

Uma possível resposta seria que, como não há certeza absoluta sobre a identificação do shafan e da arnevet, que, inclusive, já podem estar extintos, é possível que a Torá não se refira ao hírax e à lebre. Nesse caso, embora a ciência moderna não inclua essas espécies na subordem Ruminantia, a afirmação da Torá permaneceria plenamente válida.

No entanto, essa explicação, embora plausível, apenas evita a objeção em vez de enfrentá-la. Por isso, partiremos do pressuposto de que a Torá se refere, sim, ao hírax e à lebre. A seguir, demonstraremos que a identificação feita pelo texto sagrado, se interpretada com base no Talmud, a Torá Oral, é totalmente compatível com o conhecimento biológico moderno.

O que significa ruminar: a Torá, o Talmud e a biologia moderna

A zoologia inclui na subordem Ruminantia os animais cujo estômago se constitua de múltiplas câmaras (em geral quatro) e que regurgite o alimento parcialmente digerido (“bolota”) para remastigá-lo. Assim, o hírax, a lebre e, em certa medida, o camelo não se enquadram nessa categoria taxonômica, pois não apresentam, em sua totalidade, a estrutura anatômica apontada.

O ponto mais sujeito a contestações na descrição da Torá é a associação do shafan ao hírax, que nem possui estômago compartimentado, nem regurgita o alimento. No entanto, é comum observar nesses animais, mesmo em repouso, movimentos mandibulares repetitivos semelhantes à ruminação. Além disso, alguns relatos apontam comportamentos indicativos de uma forma de mastigação regurgitativa, os quais, no entanto, ainda não foram comprovados pela ciência. Segundo alguns, o hírax, por vezes, traz à boca material vegetal parcialmente digerido para remascá-lo. Embora se assemelhe à ruminação, isso, a rigor, não a caracteriza.

Já a identificação da arnevet com a lebre apresenta menos dificuldades, pois é bem documentada, entre esses parentes dos coelhos, a prática da cecotrofia: ingestão e mastigação de fezes macias para delas extrair uma maior quantidade de nutrientes. Embora diferente da ruminação por não envolver a regurgitação propriamente dita, trata-se de um processo digestivo cíclico e visível, semelhante à remastigação de material parcialmente processado.

A inclusão do hírax e da lebre entre os ruminantes depende da classificação adotada. A zoologia moderna não os enquadra nessa categoria. No entanto, o aparente conflito entre a Torá e a ciência pode decorrer de critérios distintos. O texto sagrado não define a ruminação com base em características anatômicas, como a presença de estômago compartimentado.

Há diferenças relevantes entre os ruminantes casher, como vacas, ovelhas e cabras,  e aqueles proibidos para consumo (hírax, lebre e camelo). De fato, de acordo com a biologia moderna, nenhum desses três últimos faz parte da subordem Ruminantia. Embora regurgite e remastigue o alimento, o camelo possui apenas três compartimentos estomacais e não tem omaso, parte essencial do sistema digestivo dos animais dessa categoria taxonômica. Por isso, é considerado um “pseudoruminante”. Já o hírax apresenta movimentos de mastigação, mas não de regurgitação, e a lebre pratica a cecotrofia, semelhante à ruminação, mas distinta dela. Para a Lei Judaica, essas diferenças são irrelevantes: por não terem cascos fendidos, os três não são casher.

Ainda assim, o padrão é notável. A Torá parece identificar os únicos animais que remastigam alimento parcialmente digerido sem serem ruminantes no sentido técnico. Isso sugere que sua classificação se baseia em comportamentos visíveis, perceptíveis a um observador comum, e não na anatomia interna.

E é, de fato, extraordinário que se encontre tal precisão em um texto de mais de três mil anos, muito anterior à zoologia moderna.

Analisemos a linguagem usada pela Torá na descrição de animais que possuem a característica casher de ruminar. A expressão utilizada é ma’aleh geirah. A primeira palavra vem de alah (“subir”), e a segunda relaciona-se a gerirah (“arrastar” ou “puxar”), uma clara referência ao movimento de trazer o alimento de volta à boca. Não há menção a nenhuma característica anatômica interna. Essa interpretação é confirmada pelo Targum Onkelos, que traduz a expressão como “traz de volta o que foi dissolvido”, e por Rashi, que explica tratar-se de alimento amolecido e parcialmente digerido por meio de repetidas mastigações.

Sob essa perspectiva, os comportamentos do hírax, da lebre e, certamente, do camelo estão de acordo com a descrição de ma’aleh geirah. Embora não se enquadrem na ruminação propriamente dita, os processos digestivos dessas espécies alinham-se aos critérios linguísticos e comportamentais apontados na Torá.

Alguns críticos argumentam que, se a lebre é considerada “ruminante” por causa da cecotrofia, outras espécies, como hamsters ou chimpanzés, que também reprocessam alimentos, deveriam incluir-se nessa definição, o que poria em questão a exclusividade das quatro espécies com apenas um sinal de cashrut. No entanto, essa objeção ignora que a Torá se baseia em hábitos visíveis e regulares, não em ações raras ou sutis. Ao contrário do hírax e da lebre, esses outros animais não apresentam movimentos regulares de mastigação que possam ser interpretados como ma’aleh geirah. Esporádicos e pouco evidentes, seus comportamentos semelhantes à ruminação não correspondem aos sinais externos descritos pela Torá e seus comentadores. Assim, a classificação do texto sagrado mantém sua coerência e não é invalidada por exceções que não se encaixam nos critérios estabelecidos com clareza.

A inclusão da lebre, do hírax e, sobretudo, do camelo destaca a notável precisão da Torá em vez de enfraquecê-la. Esses animais ocupam uma posição intermediária: não são ruminantes de acordo com a definição técnica da biologia moderna, porém, aos olhos de um observador comum, exibem comportamentos semelhantes aos das espécies dessa subordem. Se a Torá os tivesse omitido, muitos, sobretudo antes da zoologia moderna, poderiam ter questionado sua exatidão por não mencionar animais que aparentam ruminar, mas não têm cascos fendidos. O camelo ilustra bem esse ponto: como a Torá deveria classificar um mamífero que a própria ciência atual classifica de maneira imprecisa? Ele rumina ou não? Isso depende da definição adotada. O mesmo vale para a lebre e até mesmo para o hírax.

Alguém poderia objetar, porém, que a Torá deveria ser inequívoca e descrever a realidade com precisão científica. A colocação é válida: de um texto que afirma ter autoria Divina, espera-se exatidão. Sob essa ótica, faria sentido incluir o camelo, mas não o hírax e a lebre, que nem sequer se enquadram como pseudoruminantes.

Curiosamente, essa correção está preservada na Torá Oral, o Talmud.

O Talmud em harmonia com a biologia moderna

Ao abordar como as leis sobre os animais casher evidenciam a autoria Divina da Torá, o Talmud (Chulin 59a) adota uma perspectiva notavelmente compatível com a compreensão biológica moderna. Em sua análise das espécies que possuem apenas um dos sinais de cashrut, destaca dois exemplos inequívocos: o camelo e o porco, aquele, porque rumina, mas não tem cascos fendidos e este, pela razão contrária.

Ao tratar das espécies que têm aquele hábito, mas não esta característica anatômica, o Talmud, curiosamente, não menciona nem o hírax, nem a lebre. Em vez disso, afirma: “Como ensinou a Escola de Rabi Ishmael: o versículo diz: ‘O camelo, porque rumina, mas não tem pés fendidos; (comê-lo) vos torna espiritualmente impuro’ (Levítico 11:4). O Soberano de Seu mundo sabe que nenhum outro animal, além do camelo, rumina e, ainda assim, não é casher. Por isso, o versículo o destaca com a palavra ‘ele’ – ou seja, ele, e nenhum outro”.

Ao tratar dos animais com cascos fendidos que não ruminam, o Talmud repete o mesmo princípio aplicado ao porco: “Como ensinou a Escola de Rabi Ishmael: o versículo diz: ‘E o porco, porque tem pés divididos que são completamente fendidos, mas não rumina; (comê-los) vos torna espiritualmente impuros’ (Levítico 11:7). O Soberano de Seu mundo sabe que nenhum outro animal, além do porco, tem os cascos fendidos e, ainda assim, não é casher. Por isso, o versículo o destaca com a palavra ‘ele’ – ou seja, ele, e nenhum outro”.

Não é por acaso que, embora a mesma página do Talmud afirme que o shafan e a arnevet ruminam, conforme ensina a Torá, ao mencionar o “Soberano de Seu mundo”, se refira apenas ao camelo. Ao notarem a ausência do hírax e da lebre, Rashi e os Tosafot (grupo de comentaristas medievais, em sua maioria alunos ou descendentes desse grande Sábio e conhecidos por suas análises detalhadas do Talmud) sugerem que ambas as espécies também deveriam ser incluídas. Curiosamente, o Rambam não as menciona.

Por que, então, o Talmud cita a afirmação da Escola de Rabi Ishmael de que “o Soberano de Seu mundo sabe que nenhum outro, além do camelo, rumina e ainda assim não é casher”, mas não cita o hírax e a lebre? É plausível que o faça porque apenas o primeiro, embora não tenha cascos fendidos, regurgita e remastiga os alimentos de forma clara e inequívoca. Já essas duas últimas espécies apresentam comportamentos semelhantes à ruminação, mas não à totalidade das características anatômicas exigidas. Assim, o Talmud menciona apenas o camelo, com uma precisão compatível com a do conhecimento biológico moderno.

Entre os quatro animais com apenas um dos sinais de cashrut, só o camelo e o porco representam casos inequívocos. Aquele, a despeito da classificação da biologia moderna, regurgita e remastiga os alimentos de forma clara, porém não tem cascos fendidos, exatamente o oposto do que se observa no caso dos suínos. Já a lebre e o hírax suscitam mais dúvidas: têm hábitos que, a rigor, não correspondem à ruminação, embora se assemelhem a ela.

Como base da Lei Judaica, o Talmud, por adotar critérios de precisão e clareza jurídica, concentra-se em exemplos definitivos. A Torá, por outro lado, antecipa percepções humanas, incluindo casos limítrofes, como animais que parecem ter um dos sinais de cashrut ainda que não atendam a todos os requisitos anatômicos. Por exemplo, o camelo, embora não se inclua na subordem Ruminantia, de fato regurgita e remastiga os alimentos. Já nos casos do hírax e da lebre, a ideia de que tenham esse hábito é mais subjetiva, pois depende da definição adotada.

A Torá expressa-se, muitas vezes, na linguagem da percepção humana, e boa parte de suas leis não se baseiam em definições técnicas ou estruturas ocultas, mas no que é visível a olho nu. Esse princípio evidencia-se sobretudo nas regras de cashrut, mas aplica-se amplamente à Halachá, a Lei Judaica, em que a aparência externa, em muitos casos, determina o status legal.

Por isso, é incorreto considerar argumento post hoc (criado apenas para justificar a Torá) a classificação do hírax e da lebre como ruminantes por apresentarem comportamentos semelhantes aos dos animais dessa subordem. Não se trata de uma tentativa retroativa de corrigir uma suposta imprecisão, mas de uma abordagem metodológica consistente e deliberada.

O Talmud, por sua vez, ao buscar precisão máxima, define os limites da Lei Judaica a partir de critérios rigorosos e lógica cristalina, portanto baseia-se na certeza enquanto a Torá se refere ao que é perceptível. A menção do hírax e da lebre como animais que ruminam não é uma concessão, mas uma escolha intencional, fundamentada na forma como esses comportamentos se apresentam aos olhos humanos. Já o Talmud, ao tratar do conhecimento de D’us Onisciente, expressa um padrão absoluto, baseado na exatidão anatômica.

Assim, mesmo o cético mais convicto pode questionar a inclusão do shafan e da arnevet pela Torá, mas não poderá contestar a afirmação da Escola de Rabi Ishmael sobre o camelo e o porco. O Talmud é cientificamente preciso, mesmo segundo os critérios da biologia moderna, tanto que, até hoje, não se identificou nenhuma espécie, além do camelo, que rumine, mas não tenha cascos fendidos, nem outra, além do porco, que apresente esta característica anatômica, mas não aquele hábito.

Outra contestação dos céticos diz respeito aos camelídeos sul-americanos, como as lhamas, que também ruminam, mas não têm cascos fendidos. A existência desses animais não contradiz a afirmação da Torá de que apenas quatro espécies apresentam um único sinal de cashrut e, por conseguinte, põe em xeque a ideia da autoria Divina do texto sagrado? De forma alguma!

A Torá não considera essas espécies distintas do camelo, que pertencem à família Camelidae, da mesma forma como trata o javali, como sendo uma variação do porco. Não lista subespécies, mas categorias arquetípicas. Ao mencionar o gamal (camelo), inclui todos os membros de sua família, como as lhamas e seus outros parentes.

Até hoje, não se encontrou nenhum outro animal que, de forma observável, rumine e, ao mesmo tempo, não possua cascos completamente fendidos. Dessa forma, ainda é correta e completa a lista da Torá.

Peixes casher: escamas, barbatanas e a Sabedoria Divina do Talmud

A Torá, tanto em Vayicrá (Levítico 11:9–12) quanto em Devarim (Deuteronômio 14:9–10), estabelece que, para ser considerado casher, o peixe deve possuir barbatanas (senapir) e escamas (kaskeset).

Ao comentar essa lei, o Talmud Bavli (Chulin 66b) afirma: “Aprendemos em outra Mishná (Nidá 51b): todo peixe que tem escamas certamente tem barbatanas, mas há peixes que têm barbatanas e não têm escamas. Qualquer peixe que tenha escamas e barbatanas é casher. Se tiver barbatanas, mas não tiver escamas, não é um peixe casher”.

Em outras palavras, todos os peixes que têm escamas também possuem barbatanas, mas não o contrário. Dessa forma, basta verificar a presença daquelas para saber se a espécie pode ser consumida, caso contrário será proibida.

Esse ensinamento é notável por sua amplitude e precisão. Não se trata de uma observação restrita às águas de Israel ou da Babilônia (no atual Iraque), onde foi transcrito o Talmud Bavli, mas de uma afirmação biológica universal: o Talmud declara que, em todo o mundo, não existe, nem jamais existiu, uma única espécie de peixe com escamas que não possua também barbatanas.

É impressionante que, há cerca de 1.500 anos, o Talmud tenha feito tal afirmação com tanta convicção apesar da imensa diversidade da vida marinha, e, até então, em sua maior parte, desconhecida. Ao contrário dos biólogos modernos, os Sábios do Talmud não tinham acesso às profundezas oceânicas. Ainda assim, essa generalização, registrada muito antes da taxonomia científica ou da exploração dos mares, nunca foi refutada. Até hoje, não se encontrou nem um único peixe com escamas que não tenha também barbatanas.

A ictiologia, ramo da ciência moderna que estuda esses animais aquáticos, já identificou mais de 33.000 espécies. Ainda assim, nunca foi registrada uma única que possua escamas do tipo casher e não tenha barbatanas. Nenhuma.

Como o Talmud, transcrito há mais de 1.500 anos, muito antes do surgimento da biologia marinha ou da exploração do nosso planeta, poderia afirmar, com tanta convicção, uma verdade zoológica tão ampla e estar certo? O fato é que jamais se descobriu uma única exceção a essa regra.

Mesmo hoje, com tecnologia avançada e acesso a bancos de dados de todo o mundo, seria arriscado fazer uma colocação tão absoluta sem temer que se encontrasse uma exceção. No entanto, a declaração do Talmud ainda resiste ao tempo. Até mesmo o cético precisa deparar-se com a notável precisão de uma obra produzida em uma época de conhecimento empírico extremamente limitado, uma exatidão que, até hoje, só tem sido confirmada.

Por que a Torá menciona as barbatanas?

Na discussão sobre os animais terrestres, vimos que o Talmud demonstra uma precisão que vai além do que está escrito de forma explícita na Torá, como o ensinamento da Escola de Rabi Ishmael de que o único animal que, sem dúvida, rumina, mas não tem cascos fendidos é o camelo.

Algo semelhante ocorre com os peixes, que, segundo a Torá, só são casher se tiverem barbatanas e escamas. No entanto, é o Talmud Bavli (Chulin 66b) que revela o notável princípio de que todo animal que satisfaça ao segundo critério necessariamente atende ao primeiro. Em outras palavras, a presença de escamas já basta para considerar o peixe casher.

Isso levanta uma pergunta: se é assim, por que a Torá também menciona as barbatanas? À primeira vista, trata-se de uma exigência redundante de forma que se poderia até supor que esse texto desconhecia algo que o Talmud já o conhecia.

No entanto, essa conclusão é teologicamente insustentável. Afinal, a Torá, cada uma de cujas letras foi escrita por D’us e transmitida a Moshé, que as transcreveu, não pode conter erros. Assim, é inconcebível que o Talmud, a Torá Oral, detenha um conhecimento ausente da Escrita. Como, então, se explica a referência também às barbatanas?

O Talmud questiona: “Já que nos baseamos apenas nas escamas para considerar um peixe casher – presumindo que, se ele tem escamas, também tem barbatanas – por que o Misericordioso (D’us) mencionou tanto ‘escamas’ quanto ‘barbatanas’? Que a Torá mencionasse apenas ‘escamas’ e omitisse completamente as ‘barbatanas’ ”.

A resposta é a seguinte: “Se o Misericordioso tivesse escrito apenas kaskeset (escamas) e não tivesse mencionado senapir (barbatanas), poder-se-ia interpretar erroneamente a palavra kaskeset como significando ‘barbatanas’, e se acabaria permitindo peixes que têm barbatanas, mas não escamas – peixes que não são casher. Por isso, a Torá mencionou tanto senapir quanto kaskeset, para eliminar qualquer possibilidade de confusão e garantir a interpretação correta.” No entanto, não completamente satisfeito com essa resposta, o Talmud observa que poderíamos ter compreendido, com base em um versículo do Livro de Samuel, que kaskeset significa “escamas” e não “barbatanas”, mesmo que a Torá não tivesse mencionado também senapir (barbatanas).

Uma explicação mais profunda para essa aparente redundância é que ela visa a combater um equívoco comum: os Cinco Livros da Torá são amplamente aceitos pelos judeus como de origem Divina, mas o mesmo nem sempre se aplica ao Talmud. Alguns o consideram apenas o resultado de discussões rabínicas (valiosas, mas sujeitas a erros), portanto questionam sua autoridade, bem como sua pretensão de transmitir a vontade e a sabedoria de D’us.

No entanto, o Talmud revela uma verdade científica ausente da Torá, mas confirmada pela biologia moderna: todo peixe com escamas também possui barbatanas, sem nenhuma exceção conhecida. O fato dessa declaração ter sido feita há mais de 1.500 anos, muito antes da taxonomia, da exploração dos oceanos ou da sistematização da biologia, desafia explicações naturais.

Ao contrário dos animais terrestres, os peixes são difíceis de se observar diretamente, tanto que ainda são descobertas novas espécies. O fato de o Talmud apresentar uma afirmação universal nesse contexto indica o acesso a um conhecimento além do que era possível à humanidade naquela época.

É plausível, portanto, que um dos motivos para a Torá mencionar as barbatanas junto com as escamas seja criar a oportunidade para que o Talmud revele um conhecimento que transcende a compreensão humana. O que inicialmente parece uma repetição desnecessária revela ser um recurso sutil por meio do qual a Torá Escrita demonstra a origem Divina da Torá Oral. Ao apresentar uma formulação aparentemente redundante, permite que o Talmud manifeste sua autoridade como fonte de sabedoria Divina, não apenas como fruto do raciocínio humano.

Ao questionar por que a Torá menciona as barbatanas se todo peixe que tem escamas também as possui, o Talmud responde (Chulin 66b): “A escola de Rabi Ishmael ensinou: O Santo, bendito é Ele, quis agraciar o Povo de Israel. Por isso, tornou Sua Torá abundante, como está escrito: ‘O Senhor desejou, por causa de Sua justiça, engrandecer e glorificar a Torá’” (Isaías 42:21). Em outras palavras, o que parece uma redundância em Levítico e Deuteronômio serve para engrandecer a Torá como um todo por evidenciar que o Talmud também é expressão de sabedoria Divina. Este texto sagrado, embora não tenha sido escrito por D’us, como os Cinco Livros de Moshé, também contém verdades que só o Altíssimo poderia revelar.

Entretanto, além de seus aspectos teológicos, a exigência de escamas e barbatanas na Torá transmite também uma lição ética e espiritual. Segundo o Rebe de Lubavitch, aquelas simbolizam a integridade, a capacidade de manter-se firme diante das tentações, enquanto estas representam a ambição, a força que impulsiona o indivíduo a crescer e realizar seu potencial. O fato de o Talmud afirmar que todo peixe com escamas também tem barbatanas indica que, embora essencial, a integridade deve vir acompanhada de iniciativa e ação. A Torá, ao exigir ambos os sinais, ensina que o verdadeiro crescimento espiritual exige tanto proteção moral quanto movimento.

Esse ensinamento do Rebe demonstra que essa aparente redundância revela, na verdade, uma visão profunda da alma humana. Essa explicação reforça um princípio fundamental da Torá: nada nela é supérfluo. Mesmo o que parece redundância, como a menção conjunta de escamas e barbatanas, é um convite a explorar significados mais profundos. Os Cinco Livros de Moshé revelam-se como textos Divinos em que cada palavra carrega um propósito legal, teológico ou moral.

Há ainda outra explicação para a menção tanto de escamas quanto de barbatanas. Ao afirmar que um peixe precisa de ambos para ser considerado casher, a Torá não se limita a fornecer simanim (sinais) para a identificação. Se esse fosse o único propósito, como ensina o Talmud, as escamas seriam suficientes. Com isso, na verdade, a Torá estabelece que as duas características são essenciais para que um peixe seja, de fato, casher.

À primeira vista, essa exigência pode parecer redundante. Qual é a diferença entre considerar essas características meros sinais ou critérios determinantes? A resposta é que, embora o Talmud (Chulin 66b) afirme que todo peixe com escamas tem barbatanas, e o Shulchan Aruch, o Código de Lei Judaica, permita o consumo com base apenas na presença daquelas, esse princípio apoia-se na realidade biológica conhecida. No entanto, alguma nova espécie que eventualmente surgisse, por mutação natural ou engenharia genética, e tivesse apenas escamas (mas não barbatanas) não seria considerada casher. Nesse caso, prevaleceria o critério explícito da Torá, que exige ambas as características (Vayicrá 11:9).

Pode parecer uma hipótese remota, mas, em um mundo de avanços tecnológicos acelerados, o que é improvável hoje pode tornar-se realidade amanhã. Eterna como o D’us que a transmitiu, a Torá reflete uma visão que transcende o tempo e antecipa até as possibilidades mais remotas.

A origem Divina da Torá e do Talmud

As leis sobre os animais casher, registradas na Torá e explicadas com precisão no Talmud, contêm informações que seriam impossíveis de conhecer na época em que foram escritas. Segundo a Torá, quatro espécies de animais terrestres apresentam apenas um dos dois sinais de cashrut. Como vimos, apesar das discussões sobre a ruminação de duas delas, essa afirmação jamais foi refutada, pois, após milênios e inúmeros avanços na biologia, nunca se identificou uma quinta que apresentasse essa parcialidade. Além disso, a abordagem do Talmud sobre o tema apresenta uma compatibilidade surpreendente com os critérios da ciência moderna.

No caso dos peixes casher, o Talmud afirma que todo aquele que tenha escamas também possui barbatanas. De fato, entre mais de 33 mil espécies conhecidas, não se encontrou nenhuma exceção.

Esse nível de precisão tem implicações teológicas profundas. Ao tratar da classificação de animais terrestres e peixes, a Torá e o Talmud demonstram um conhecimento que transcende a capacidade humana da época, o que reforça um dos princípios centrais do Judaísmo: a origem Divina tanto da Torá Escrita quanto da Oral.

É assim que devemos nos aproximar do estudo da Torá: com o reconhecimento de que é muito mais do que um compêndio de leis, narrativas e história judaica. A Torá, tanto a Escrita quanto a Oral expressa a sabedoria e a vontade de D’us. Ao estudá-la, estabelecemos um vínculo direto com seu Autor: o Santo, bendito é Ele.