Em 18 de setembro de 1946, após semanas de planejamento e preparativos, equipes de judeus e poloneses, lado a lado, preparavam-se ansiosamente para escavar as ruínas do Gueto de Varsóvia, em busca dos Arquivos do Oineg Shabbes. Tratava-se de uma valiosa fonte de informações sobre o judaísmo polonês, principalmente de Varsóvia, durante a ocupação nazista.

As equipes de busca sabiam ser imprescindível encontrar as caixas de metal e os latões de leite onde haviam sido escondidos os documentos coletados pelo projeto Oineg Shabbes, liderado pelo historiador e líder comunitário Emanuel Ringelblum (ver matéria à pág. 63). Ao perceber que o Judaísmo polonês não tinha esperança de sobreviver, Ringelblum não mediu esforços para deixar documentado o testemunho da terrível e poderosa máquina nazista. E da ainda mais poderosa resiliência e valentia dos judeus poloneses.

Há inúmeras maneiras de se lutar contra os inimigos e Ringelblum escolhera a palavra escrita, uma arma poderosa que atravessa o tempo e o espaço e permite ao mundo ouvir as vozes das vítimas. Com essa arma ele desmascarou os crimes que os nazistas procuraram ocultar e ajudou a impor justiça aos assassinos. Para conseguir cumprir sua missão Ringelblum reuniu à sua volta judeus que dedicaram a vida ao projeto, como: Hersh Wasser, Eliahu Gutkowski, David Cholodenko, Rabino Shimon Huberband e Israel Lichtensztajn. Assim como os membros da YIVO e do JDC, Yitzhak Gitterman, Shmuel Winter, Shie Rabinowitz, Menakhem Linder, Abraham Lewin e Rachel Auerbach, entre outros.

O Oineg Shabbes reuniu mais de 35 mil páginas de material, que hoje fazem parte do acervo do Instituto Histórico Judaico de Varsóvia. Uma exibição online sobre o trabalho da equipe dirigida por Ringelblum é mantida pelo Instituto Yad Vashem (www.yadvashem.org). E, em 1999, a Unesco, braço da ONU para ciência e cultura, reconheceu a importância dos Arquivos Oineg Shabbes, também conhecidos como os Arquivos Ringelblum, ao incluí-lo no Registro da Memória Mundial.

Uma das grandes preocupações de Ringelblum era impedir que a posterior rotulagem de mártires e de vítimas viesse a anular a identidade dos judeus de Varsóvia. Como historiador, ele sabia que a tragédia sempre se sobrepõe ao “antes”. Ele queria que os Arquivos abrangessem a vida dos judeus de Varsóvia: o “antes”, o “agora” e o “depois”, os momentos derradeiros quando os judeus de Varsóvia se deram conta de que não sobreviveriam. Acima de tudo, ele queria individualizar a catástrofe, não permitir que os números avassaladores de mortes tirassem o foco do sofrimento de cada um dos judeus. Não iria permitir que se tornassem apenas uma estatística.

Ringelblum e seus colaboradores acreditavam que era de importância vital criar uma infraestrutura de documentação que fornecesse uma descrição da trajetória da comunidade judaica de Varsóvia em todos os seus níveis. Por essa razão, foram muito cuidadosos em reunir testemunhos que expressassem as diferentes perspectivas da vida no Gueto. Por exemplo, procuraram educadores e lhes pediram que escrevessem textos sobre a educação judaica no Gueto, mas, ao mesmo tempo, também coletaram os testemunhos das próprias crianças. E, ainda que o Oineg Shabbes tivesse por foco central os judeus de Varsóvia, incluía também relatos e testemunhos documentando o destino de seus irmãos de toda a Polônia.

A ordem do Oineg Shabbes era coletar e reunir absolutamente tudo o que conseguissem, tudo tinha a sua importância. Foram reunidos documentos, informações, entrevistas, testemunhos, poemas, diários, fotografias, relatórios médicos, relatos sobre a fome, o tifo, as mortes “por causas naturais”, relatórios de reuniões, boletins dos grupos clandestinos, as ordens dos nazistas. Assim como ensaios de jornalistas e filósofos, professores e rabinos, trabalhos e desenhos de crianças, cartazes de eventos e até papeis de balas.

E, quando chegaram as notícias dos massacres de inteiros povoados judaicos, o Oineg Shabbes passou a reunir informações e documentos sobre a Solução Final, os massacres, as deportações, os campos de morte e, no final, sobre os preparativos para o Levante do Gueto. Muitos dos relatórios compilados pelo Oineg Shabbes foram enviados para o exterior, para que o mundo soubesse dos crimes dos alemães, e do sofrimento dos judeus da Polônia.

Depois do início da Grande Deportação de julho de 1942, o comitê do Oineg Shabbes decidiu esconder os documentos coletados num local seguro. Ringelblum e Wasser incumbiram o professor Israel Lichtensztajn de enterrá-los no porão da antiga Escola Ber Borochov, na Nowolipki 68. Ele era encarregado da “secção técnica” e era o único que conhecia a localização física de todos os documentos.

Ringelblum tomou essa precaução para garantir que caso ele ou outro membro do comitê caíssem em mãos nazistas, ainda assim o segredo estaria a salvo. Lichtensztajn colocou parte do material recolhido pelo arquivo em dez caixas metálicas e, no dia 3 de agosto, as enterrou.

Em fevereiro de 1943, a notícia do reinício das deportações espalha-se pelo Gueto. Lichtensztajn coloca outro lote de documentos em dois latões de leite e os esconde no edifício da Escola Ber Borochov. Havia ainda um terceiro lote que foi enterrado na Swietojerska 34, em 4 de abril de 1943, que continha material importante sobre a resistência judaica.

Infelizmente, nem Ringelblum nem a quase totalidade dos que haviam participado do projeto do Oineg Shabbes sobreviveram. Apenas três membros da “Sociedade Sagrada”, como ele intitulara o grupo de seus colaboradores mais próximos, estavam vivos no final da Guerra: Rachel Auerbach, Hersh Wasser, seu braço direito, e a esposa deste, Bluma.

Em um de seus últimos encontros com Rachel Auerbach, Ringelblum lhe revelou que a “lenda”, como chamava os Arquivos, fora escondida num local onde estaria a salvo “do fogo e da água”. Mas, à medida que ele percebe que o Gueto e sua população seriam liquidados, uma possibilidade sinistra passa a angustiá-lo: E se ninguém sobrevivesse à catástrofe, o mundo do pós-guerra conseguiria encontrar os Arquivos?

Seis dias antes de os alemães descobrirem o bunker onde ele estava escondido e o prenderem Ringelblum envia uma mensagem a seu grande amigo, Adolf Berman, pedindo-lhe que fizesse chegar à sede da YIVO, em Nova York, a informação sobre os locais onde se encontravam os arquivos: “Se nenhum de nós sobreviver, ao menos isso permanecerá”.

A Divina Providência fez com que Hersh Wasser, um dos poucos que sabiam onde os arquivos haviam sido enterrados, sobrevivesse à guerra. Ele ainda estava vivo por uma série de milagres. Em 1943, capturado pelos nazistas, é embarcado num trem com destino a Treblinka. Mas conseguiu pular do trem e voltou a Varsóvia. No ano seguinte, os alemães encontraram o esconderijo onde ele, sua esposa e outros três de seus amigos estavam escondidos. No curto tiroteio que se seguiu, os três companheiros morreram, mas Wasser e sua esposa conseguiram sobreviver.

E, naquele dia de setembro de 1946, Wasser estava nas ruínas do que restara do Gueto de Varsóvia, dirigindo as buscas. Praticamente nada restava. O local fora reduzido a um amontoado de escombros pelos nazistas. Durante o Levante do Gueto ocorrido há 80 anos, em abril de 1943, os alemães haviam ateado fogo, sistematicamente, a cada edifício existente, para forçar os judeus a saírem de seus esconderijos. Após o fim do Levante, Hitler ordenou que o pouco que ainda restava de pé fosse totalmente destruído. Os Arquivos haviam sido escondidos em três lotes diferentes. Encontrar as ruas e os edifícios era de certo modo uma expedição arqueológica, como chegou a afirmar Rachel Auerbach. Sem Hersh Wasser dirigindo as buscas, muito provavelmente não os teriam encontrado.

Durante semanas as equipes estudaram como e onde proceder com as escavações. Naquele dia acreditavam estar, finalmente, perto de onde estava localizada a antiga Escola Ber Borochov, na Nowolipki 68.

O trabalho era lento e perigoso. As equipes cavaram túneis fundos sob os escombros, abriram poços de ventilação e inseriram longas sondas de metal através das rochas e tijolos. De repente, as sondas bateram em algo de metal. A euforia tomou conta das equipes: haviam encontrado os Arquivos!

Mas a euforia inicial se seguiu de uma grande ansiedade. As caixas estavam cobertas de uma grossa camada de bolor esverdeado e podia-se ouvir um som de água dentro delas. Ainda restaria algo legível?

Especialistas de museus e bibliotecas foram imediatamente ao local para mostrar às equipes do Instituto Histórico Judaico como abrir as caixas e secar os papeis. Por fim, abriram as primeiras caixas.

As dez caixas de metal foram recuperadas naquele dia de setembro de 1946. O segundo lote foi encontrado acidentalmente no dia 1 de dezembro de 1950, durante um trabalho de construção. No local em que foi enterrado o terceiro, apesar das pesquisas intensas, resgataram apenas alguns poucos papéis extremamente danificados.

Numa das caixas encontradas naquele setembro de 1946 estavam dois testamentos que rasgam a alma de quem os lê, mas que transmitem uma mensagem importante a toda humanidade. Israel Lichtensztajn escreveu no bilhete que deixou na caixa sua satisfação em ter cumprido a tarefa que lhe fora incumbida. Ele estava seguro de ter escondido a primeira parte dos documentos do Arquivo da melhor forma possível. Somente Wasser saberia onde encontrá-los. Terminou sua mensagem com um apelo às gerações futuras: “Não peço agradecimento, nem quero memoriais e nem louvores. Apenas quero ser lembrado”. Em seguida dirigiu seus pensamentos à sua mulher, a talentosa artista Gele Sekstein, e à sua amada filha, Margalit. “Gostaria que minha mulher Gele fosse lembrada, ... e que minha filhinha fosse lembrada. Margalit faz 20 meses, hoje. Não lamento por minha vida ou da minha mulher. Tenho pena apenas por essa menininha gentil e esperta. Ela, também, merece ser lembrada”.

Lichtensztajn sobreviveu à Grande Deportação e juntou-se aos preparativos para a resistência militar. Morreu junto com sua mulher e filhinha nos primeiros dias do Levante do Gueto de Varsóvia. Era abril de 1943.

A caixa continha os testemunhos e últimos desejos de dois estudantes da Escola Ber Borochov, Dawid Graber e Nachum Grzywacz, que haviam ajudado Israel Lichtensztajn a enterrar o precioso lote de documentos.

Dawid Graber, de 19 anos, escreveu: Aquilo que não nos foi possível chorar e gritar ao mundo, estamos enterrando neste terreno ... para que o mundo possa tomar conhecimento de tudo.... Que este Tesouro caia em boas mãos, ..., e que previna e alerte o mundo acerca do que ocorreu ...neste século 20.... Podemos, agora, morrer em paz. Cumprimos nossa missão. Que a História possa atestar por nós”.

Bibliografia

Kassow, Samuel D,“Who Will Write Our History?: Emanuel Ringelblum, the Warsaw Ghetto, and the Oyneg Shabes Archive” (edição em inglês) eBook Kindle

Ringelblum, Emanuel, “Notes From The Warsaw Ghetto: The Journal Of Emanuel Ringelblum” (edição em inglês) eBook Kindle