A presença judaica na Síria, uma das comunidades judaicas mais antigas do mundo, beirou seu desaparecimento. Estima-se que, em 1948, após a criação de Israel, milhares dos cerca de 40 mil judeus que lá viviam tenham deixado o país. Nas décadas seguintes, alvo de violenta repressão do governo, a população judaica foi minguando. Hoje restam apenas quatro judeus na Síria.
No início do século 20, a comunidade judaica na Síria ainda era numerosa, apesar de que milhares de judeus já tivessem deixado o país em busca de melhores oportunidades. As duas maiores comunidades ainda eram Damasco, onde viviam, em 1911, 11 mil judeus e Alepo, com 9 mil.
Quando, em julho de 1914, eclode a 1ª Guerra Mundial, os otomanos alinham-se à Alemanha e Áustria em sua luta contra a França e o Reino Unido. No fim da guerra, o Império Otomano é desmembrado entre as nações vitoriosas e, na Conferência de San Remo, em 1920, a França recebe o mandato sobre o Líbano e a Síria, e a Grã-Bretanha, sobre a Palestina Otomana e o Iraque.
No território sob Mandato Francês, Paris estabelece duas entidades políticas: o Líbano e a Síria. A oposição ao domínio europeu faz crescer o nacionalismo árabe secularista1, ferrenho opositor do envolvimento ocidental no mundo árabe. O nacionalismo árabe entrara em confronto com o Sionismo que almejava a criação de um Lar Nacional Judaico na Terra de Israel. Esse confronto resultara em uma mudança na atitude geral dos árabes com relação aos judeus, que passaram a ser vistos como uma ameaça política.
Em 1925, estoura na Síria uma insurreição armada contra o Mandato Francês. Nessa ocasião, os rebeldes sírios entraram no bairro judeu de Damasco, Haret Al-Yahud, localizado na Cidade Velha, saqueando lojas e residências, matando vários judeus e ferindo dezenas de outros. As tropas francesas suprimiram com violência a rebelião, que duraria até 1927, chegando a bombardear a Cidade Velha de Damasco.
A violência dos combates e a procura de novas oportunidades econômicas levaram muitos judeus a deixar Damasco e Alepo para se estabelecer em Beirute, na época a sede do Alto Comissariado Francês. A cidade desenvolvia-se graças aos significativos investimentos em portos, rodovias, estradas de ferro e infraestrutura.
Vida judaica durante o Mandato
Os judeus receberam com entusiasmo a vinda dos franceses e, com eles, o fim das arbitrariedades do governo otomano. Sua vida na Síria melhorou significativamente. Com os franceses vieram a lei e a ordem, assim como os princípios de liberdade e igualdade muitas vezes ausentes nas colônias inglesas. As terras das províncias voltaram a ser cultivadas e grandes quantidades de lã, trigo e algodão passaram a ser exportadas. O comércio com o Ocidente representava a chave para a prosperidade da região e de muitos judeus.
Durante o Mandato havia judeus em órgãos públicos criados pelos franceses, e, em 1932, uma cadeira para um membro da comunidade judaica foi incorporada à nova Constituição. Mesmo assim, não se poderia afirmar que os judeus tinham participação na vida pública síria, sendo que eles enfrentavam a hostilidade não apenas dos muçulmanos nacionalistas, mas também dos cristãos.
Ao contrário da Inglaterra, a França penetrava na vida social e cultural dos países sob seu domínio e, praticamente cada um dos aspectos da vida da população síria, inclusive da judaica, viu-se influenciado ou controlado pela França. Os franceses levaram para a Síria a cultura francesa e a modernidade. O franco se tornou a base da economia e a administração financeira ficou em mãos dos bancos franceses. Houve um aumento nas instituições educacionais europeias e o idioma francês se tornou obrigatório em todas as escolas. A existência dessas instituições no Levante foi um dos principais vetores para a ocidentalização e modernização do mundo muçulmano.
Tanto em Alepo quanto em Damasco uma grande parcela dos meninos e meninas da comunidade judaica frequentavam escolas da Alliance Israélite Universelle. Criada em 1860 na França, a primeira escola foi estabelecida em Damasco em 1864, mas fechou cinco anos depois, só reabrindo em 1880. Em Alepo foi estabelecida em 1869. Muitos jovens judeus tornaram-se bilíngues, falando o francês, além do árabe. Em Alepo havia jovens judeus estudando também nas escolas da Mission Laïque, e uns poucos continuavam os estudos na escola americana, onde aprendiam o inglês. No entanto, apesar da educação e da cultura mais europeia, a comunidade judaica síria manteve as tradições judaicas.
As comunidades de Damasco e Alepo
Na época do Mandato, a comunidade de Damasco contava com oito sinagogas, além da antiga, em Jobar, e com quatro sociedades beneficentes encarregadas de cuidar dos mais carentes da comunidade. A cidade era, também, o centro das atividades sionistas na Síria.
As diferenças socioeconômicas entre membros da comunidade judaica eram acentuadas, e a imprensa judaica europeia enfatizava em suas publicações a pobreza da maioria judaica de Damasco e, em contraposição, o alto padrão de vida dos mais abastados, que tinham modos e estilos de vida europeus. As famílias de grandes posses viviam em mansões na Cidade Velha de Damasco, mas a maioria dos judeus ainda vivia em Haret Al-Yahud, bairro de edifícios velhos e ruelas estreitas. Apenas algumas famílias de maiores recursos passaram a viver fora desse bairro. Em 1930, o diretor da Alliance Israélite Universelle estimou que viviam em Damasco 8 mil judeus, não tendo havido aumento na população judaica devido à contínua emigração de judeus de Damasco para Beirute, para as Américas e para a Palestina sob Mandato Britânico.
As diferenças socioeconômicas entre a população judaica eram menos acentuadas em Alepo do que em Damasco. A maioria pertencia à classe média, muitos eram corretores, ou dalal, em árabe. Havia também um pequeno número de banqueiros, de grandes comerciantes e de representantes das principais empresas europeias. Os mais abastados viviam nos bairros residenciais fora da cidade velha, principalmente em Jamilie. Tinham modos e estilos de vida cada vez mais europeus e falavam francês, além do árabe. Os judeus de classe média-baixa ou baixa viviam em Bahsita, o antigo bairro judeu onde estava localizada a Grande Sinagoga, chamada pela população local al-Safra. Eram em sua maioria artesãos, empregados e outras funções não qualificadas. A grande maioria não tinha acesso à educação moderna, e a diferença econômica que dividia os bairros de Bahsita e Jamilie passou a incluir diferenças culturais.
Em Alepo havia cafés, salões de chá, cinemas e clubes onde se podia jantar e dançar. Esses modernos tipos de diversão constituíam novos pontos de encontro para os judeus. No Clube Halab, frequentado por cristãos, franceses e alguns jovens judeus, havia uma orquestra para danças de salão. No clube judaico, além do salão para o carteado, havia um local para dançarem ao som de um gramofone. Na década de 1930, já havia carros particulares, ônibus e táxis. A chegada da modernidade, no entanto, não abalou os alicerces do estilo de vida tradicionalista e religioso da comunidade. Essas características foram mantidas pelos judeus que emigraram de Alepo, instalando-se em outros países.
Além da Grande Sinagoga, havia em Alepo cerca de 50 sinagogas, muitas delas eram pequenas casas de oração estabelecidas em residências particulares. A comunidade de Alepo era conhecida por ter grande capacidade de organizar e financiar as instituições comunitárias e suas atividades.
Os anos de 1930-1940
A violência antijudaica que, em 1929, eclodiu na Palestina britânica, repercutiu na Síria. Em Alepo, suas manifestações foram em escala bem menor do que em Damasco, centro do nacionalismo árabe já infectado por violento antissionismo e consequente antissemitismo.
A partir da década de 1930, após a Alemanha nazista estreitar seus laços com os líderes árabes sírios, a propaganda antijudaica intensificou-se no país, principalmente em Damasco. A tranquilidade dos judeus ficou mais crítica em 1939, quando, instigadas pelo Mufti de Jerusalém, Haj Amin el-Husseini, turbas islâmicas começam a atacar judeus em Eretz Israel, espalhando violência. Antissemita e admirador de Hitler, o Mufti incitara os muçulmanos de todo o Oriente Médio contra os judeus. Em 1939, eclode a 2ª Guerra Mundial. Em junho do ano seguinte, o marechal Pétain firmou um armistício com a Alemanha, e a Síria e o Líbano se viram submetidos à autoridade francesa do regime de Vichy, submisso ao nazismo.
O movimento nacionalista sírio ficou fortalecido quando, em 1940, dois professores formados pela Sorbonne, em Paris, Michel Aflaq e Salah Bitar, fundaram um “clube de discussões” – o Movimento do Renascimento Árabe, em Damasco. Apesar de pregar que a nação árabe devia livrar-se da influência do Ocidente, Aflaq e Bitar eram fascinados pelas ideias nazistas. A grande admiração que o movimento nutria por Hitler fez com que alguns grupos mantivessem estreito contato com a Alemanha nazista. Em 1947, o “Movimento do Renascimento Árabe” passa a ser o partido Baath2 (ou do renascimento, em árabe), que esteve no poder na Síria por cerca de 50 anos.
Em maio de 1941, o governo de Vichy autoriza a aviação alemã a pousar e se reabastecer em território sírio, próximo a Alepo – a notícia deixa a comunidade temerosa. Para deter o avanço alemão no Oriente Médio, em junho daquele ano de 1941, tropas britânicas e da França Livre invadiram a Síria e o Líbano. Após derrotar as forças de Vichy, ocupam os dois países. Os nacionalistas árabes obtêm, dos aliados, o reconhecimento da independência do país.
Os judeus continuavam temendo uma possível invasão alemã, pois o Afrika Korps, sob o comando
do general alemão Rommel, a “Raposa do Deserto”, conquistara diversas vitórias contra as forças britânicas no Norte da África. Respiraram aliviados quando a ofensiva alemã foi finalmente interrompida pelos britânicos, no início de 1942, em El Alamein, a menos de 300 quilômetros da capital egípcia.
A República Síria
A República Síria foi proclamada em 1944, tendo o reconhecimento oficial das Nações Unidas, em 1945, e a independência de facto em abril de 1946, quando as tropas francesas deixaram o país. A Síria tornou-se membro da Liga Árabe em março de 1945, sendo um dos sete membros fundadores.
Enquanto o país estava sob Mandato Francês, as autoridades francesas locais, mesmo na época de Vichy, defendiam os judeus de ataques de árabes extremistas. Com a saída dos franceses, a situação muda rapidamente. O governo da nova república árabe logo promulga medidas persecutórias. Entre estas, a proibição da emigração de judeus para a então Palestina britânica e a restrição ao ensino do hebraico nas escolas.
Em Damasco, os boicotes contra estabelecimentos comerciais judaicos e os atos de violência se tornam cada vez mais comuns. O crescente antagonismo entre judeus e muçulmanos, na então Palestina, cristalizara ainda mais a hostilidade contra os judeus. Nas rádios e nos jornais, era cada vez mais comum a propaganda antissionista e antissemita. Ademais, a Síria passou a abrigar criminosos nazistas, em parte por afinidade ideológica e, em outra, porque o governo queria sua “expertise” na guerra que pretendia travar contra um possível Estado Judeu. Isto de fato ocorreu, pois eram alemães muitos dos oficiais que comandavam as tropas sírias que atacaram o norte de Israel em 1948.
O clima de tensão cresceu durante os debates da ONU sobre a partilha da região e criação de um estado judeu independente. Em fevereiro de 1947, o jornal The New York Times publicou a declaração de Faris Al-Khuri, delegado sírio nas Nações Unidas: “Teremos dificuldade de proteger os judeus no mundo árabe”. Não era uma ameaça vazia. Em todo o mundo árabe os políticos haviam criado um clima de histeria, ajudados pela mídia que bombardeava seus leitores com matérias sobre a “perfídia” e o “perigo” sionistas.
No dia 29 de novembro de 1947, em todas as partes do mundo, os judeus estavam atentos às vozes que vinham dos aparelhos de rádio. Assim que foi transmitido o resultado da votação que decidiu a favor da partilha da então Palestina em um estado judeu e um árabe, milhares de judeus saíram às ruas, abraçando-se e chorando. Em todo o mundo árabe, porém, a situação era tensa, sentindo-se no ar a frustração e o ressentimento que tomavam conta das massas.
As retóricas beligerantes das lideranças árabes, que se recusaram a aceitar a resolução da ONU, e os crescentes ataques violentos contra as comunidades judaicas de Eretz Israel, eram um indicativo de que os judeus que lá viviam deviam se preparar para enfrentar a guerra que se avizinhava. Na Síria, o medo e a incerteza tomaram conta da população judaica, pois os sinais do tratamento que o novo governo daria aos judeus eram cada vez mais preocupantes.
O pogrom de Alepo
Apesar de variarem os números, acredita-se que por volta de 10 mil judeus vivessem em Alepo, em novembro de 1947. No dia 1º de dezembro, dois dias após a votação da Partilha, as ruas da cidade foram tomadas por árabes exaltados. O governo, que dera ordens para que nenhum judeu fosse morto ou ferido, autorizou a destruição de qualquer propriedade judaica. Tendo recebido o sinal verde, turbas árabes começam a invadir, destruir e queimar sinagogas, locais de estudo, escolas e residências. As lojas cujos donos eram judeus eram marcadas, para, a seguir, serem saqueadas e destruídas. A violência que se abateu sobre os judeus da cidade não poupou nem a Grande Sinagoga, orgulho da comunidade alepina. Soldados foram deslocados para a porta e o entorno da sinagoga a fim de protegê-la, mas essa proteção não passava de uma grande farsa.
No início da tarde, uma multidão foi-se agrupando nas proximidades da Grande Sinagoga, gritando: “A Palestina é nossa terra e os judeus, nossos cachorros”. No final da tarde, os mais exaltados subiram nos ombros de outros, inclusive de soldados, para pular o muro e entrar no pátio da sinagoga. Alguns conseguiram escancarar os portões da sinagoga e a multidão, enfurecida, entrou. Em menos de meia hora, arrancaram 40 Sifrei Torá dos sete Hechalot (Aaron Hakodesh) da sinagoga. Jogaram-nas no pátio, rasgaram os rolos sagrados e depois atearam fogo. Centenas de tefilin foram atirados à mesma fogueira.
Os soldados sírios incentivaram e ajudaram o vandalismo. Quando os bombeiros chegaram, em vez de usar água para apagar o fogo, jogaram diesel e querosene nos textos sagrados, alimentando as chamas. O Keter de Aram Tzobá, o manuscrito mais antigo que se conhece do texto completo da Torá, foi danificado no incêndio. Zelosamente guardado há mais de 600 anos entre suas paredes, esse Códice era mantido em um cofre de ferro, dentro do local chamado Gruta de Eliyahu Hanavi.
Em seguida, a turba árabe atacou residências e lojas de judeus, saqueando-as e as incendiando. A violência durou a noite inteira e somente nas primeiras horas da manhã os soldados sírios surgiram para dispersar a multidão. O Keter ficou em meio à pilha de cinzas e escombros, durante quatro dias, até que foi permitida a entrada dos judeus no local. Os primeiros foram um grupo de rabinos que encontraram o manuscrito, mas das 487 folhas originais só 295 foram recuperadas. Estas foram entregues ao rabino-chefe Moshe Mizrahi, que, por sua vez, as levou para a casa do cônsul da Áustria. Assim que a situação se estabilizou, o precioso manuscrito foi escondido entre mercadorias, em um almoxarifado pertencente a um judeu. Em 1957, o manuscrito foi levado secretamente para a Turquia e, de lá, finalmente, para Jerusalém, em 1958. Entregue ao Instituto Ben-Zvi, foi colocado em compartimento especial, climatizado. E, em 1986, foi levado para restauração nos laboratórios do Museu de Israel, onde passou a ser exposto.
O violento pogrom deixou um saldo pesado. Tinham sido arrasados 18 sinagogas, 150 residências, 50 lojas, 5 escolas, um orfanato e um centro de juventude. Haviam sido queimados centenas de Sifrei Torá e um número incontável de livros e manuscritos. Os prejuízos materiais da destruição foram avaliados, na época, em US$ 2,5 milhões.
Mais de 6 mil judeus deixaram a cidade nos meses que se seguiram, a maioria atravessando as fronteiras para a Turquia e o Líbano, onde se estabeleceram ou seguiram viagem para outros países. Deixaram a cidade para nunca mais voltar. Fecharam as portas procurando não chamar a atenção dos vizinhos árabes, e deixaram tudo para trás – propriedades, lojas, dinheiro e lembranças. Não podiam levar consigo nada que despertasse a suspeita de estarem fugindo. Alguns saíram disfarçados de árabes ou beduínos. Muitos foram de trem até o Líbano ou de carro por uma das duas estradas que levavam até Beirute.
Após 1948
Com a criação do Estado de Israel, em 15 de maio de 1948, a situação dos judeus sírios se agrava ainda mais. No dia seguinte, uma guerra é deflagrada pela Síria, Egito, Jordânia, Líbano e Iraque contra o novo país. O exército sírio invadiu a Galileia, mas as Forças de Defesa de Israel (FDI) interromperam seu avanço e rechaçaram os sírios de volta para as Colinas de Golã. A humilhante derrota militar atiça o ódio dos sírios contra os judeus.
Bairros judeus são invadidos e o governo sírio promulga novas leis antijudaicas. Os passaportes dos judeus que saíram da Síria foram cancelados, tornando-os apátridas, e as carteiras de identidade dos que ficaram no país portavam o carimbo Mussaw, judeu, em grandes letras vermelhas.
Um artigo publicado no The New York Times, em 16 de maio daquele ano, revela a posição do governo: “Pôs-se em prática uma política de discriminação econômica contra os judeus, na Síria. Virtualmente, foram demitidos todos os cidadãos judeus empregados pelo governo. Na prática, aboliu-se a liberdade de movimentos. Postos especiais de fronteira foram estabelecidos para controlar o movimento dos judeus”. Em 1949, a situação se deteriorou ainda mais. Em Damasco, uma bomba explodiu na Sinagoga Al-Manshiyeh, localizada no bairro judaico, matando 12 pessoas, a maioria crianças.
Apesar da proibição de deixar a Síria, as lideranças organizaram-se para facilitar a partida. Os riscos eram grandes, pois, se capturado, um judeu que tentasse fugir podia ser executado ou condenado à prisão perpétua, em regime de trabalhos forçados. Os que conseguiram fugir, tiveram que abandonar tudo o que possuíam, pois o governo proibira aos judeus a venda de suas propriedades.
Os que ficaram para trás sofreram todo tipo de discriminação, tendo de conviver com o estrangulamento social e econômico. As instituições religiosas e de assistência social, assim como as escolas judaicas, ficaram sob o controle das autoridades muçulmanas. O governo confiscou inúmeras propriedades judaicas, entregando-as a refugiados palestinos. Em Damasco, por exemplo, esses refugiados foram alojados nas mansões do bairro judeu, transformando-as em cortiços. O edifício da Alliance Israélite Universelle, inaugurado em 1939, virou escola para crianças palestinas.
Em 1953, as contas bancárias foram congeladas. A situação levou ao empobrecimento da comunidade, com muitos de seus membros vivendo à custa das entidades beneficentes comunitárias. A temida polícia secreta síria, conhecida como Muhabarat, treinada pelo nazista Aloïs Brünner3, criou um departamento especial para cuidar dos chamados “assuntos judaicos” e seus agentes passaram a vigiar os judeus. Todas as atividades religiosas e comunitárias eram monitoradas, contatos com estrangeiros eram controlados e toda a correspondência era violada. As poucas linhas telefônicas que lhes eram concedidas eram grampeadas. Só tinham permissão de viver nos bairros judaicos em Damasco, Alepo e Qamishli e, se tivessem que ir a algum lugar, à mais de 3 km de distância de sua residência, precisavam de permissão do governo.
Impedidos de sair do país, alguns perderam a vida tentando escapar; se capturados, eram trancados em prisões e torturados. Quando comerciantes judeus recebiam autorização para viajar ao exterior, tinham que pagar impostos exorbitantes e seus familiares eram mantidos como reféns, no país – como garantia até seu retorno.
Em 1971, quando Assad subiu ao poder, havia cerca de 5 mil judeus “presos” na Síria. Periodicamente, pressões externas, principalmente dos Estados Unidos, levavam o governo a permitir aos judeus viajar ao exterior, o que equivalia a uma clara oportunidade de “escapar”.
Mas, para obter um visto de saída, eram obrigados a pagar um resgate “legal” de US$ 800, tendo que desembolsar outros US$ 225 para garantir a liberação dos papéis. Os fundos necessários eram arrecadados principalmente entre os judeus sírios que viviam nos Estados Unidos. Em 1977, a canadense Judy Carr, que há anos abraçara a causa dos judeus sírios, envolveu-se pessoalmente em retirá-los do país. Nos 23 anos em que atuou, conseguiu fazer saírem da Síria 3.288 judeus.
A crueldade com a qual eram tratados ocupou as manchetes internacionais quando 10 judeus presos em 1988, sob a acusação de terem planejado fugir, são libertados e relatam os maus-tratos e a tortura. Pressionado, o governo prometeu facilitar a emigração de mais de 500 mulheres judias. Mas apenas 24 foram autorizadas a partir em 1989, e outras 20 em 1991.
Mais uma vez, por pressão americana, o presidente Assad iniciou, em 1990, uma política mais flexível em relação aos judeus, eliminando as restrições à venda de propriedades e prometendo facilitar a emigração, exceto para Israel. A partir de Pessach de 1992, cerca de 4 mil judeus receberam permissão para deixar a Síria, sendo que por volta de 300 permaneceram no país. Dos que partiram para os Estados Unidos, mais de 2.400 se estabeleceram em Nova York e 1.262 foram levados, algum tempo depois, para Israel em uma operação secreta. Estima-se que, ao final da década de 1990, restavam menos de 100 judeus na Síria.
Século 21
De acordo com estimativas do Departamento de Estado dos EUA, em 2005 viviam na Síria cerca de 80 judeus, a maioria em Damasco. Eles eram a única minoria cuja religião era explicitamente mencionada nas carteiras de identidade.
Essa pequena comunidade era sujeita a todo tipo de restrições e discriminações. Tornava-se cada vez mais difícil manter as práticas religiosas judaicas, como cumprir as leis de cashrut e reunir um minian – o quórum de dez judeus necessário para certas orações comunitárias, como a leitura da Torá e a recitação do Kadish. Um rabino vindo de Istambul visitava a comunidade a cada dois ou três meses para supervisionar a preparação da carne casher.
Em outubro de 2007, o jornalista israelense Ron Ben-Yishai conseguiu ir até Damasco e participar das orações de Yom Kipur na sinagoga “Al Franji”, localizada no coração da Cidade Velha de Damasco. Seis anos mais tarde, em 2013, a BBC revelou que o cemitério judaico de Damasco havia sido demolido para dar lugar à sede regional do grupo ISIS – Estado Islâmico do Iraque e da Síria.
Em 2011, a Síria foi palco de protestos da Primavera Árabe que acabaram levando o país para uma guerra civil. Os protestos, inicialmente pedindo reformas democráticas e a saída do presidente Bashar al-Assad, foram violentamente reprimidos pelo governo. Essa repressão levou à formação de grupos de oposição armados e à escalada do conflito.
Em outubro de 2014, estimava-se que restavam menos de 50 judeus no país. Diante da ameaça iminente do Estado Islâmico, em dezembro daquele ano todos os judeus que ainda viviam em Alepo foram resgatados e levados para Israel por meio de uma operação secreta.
Apenas um pequeno grupo de judeus idosos ainda permaneceu na Síria, todos em Damasco. As estimativas variavam, mas, segundo um relatório recente da organização Justice for Jews from Arab Countries (JJAC), apenas quatro judeus ainda residiam no país, todos em Damasco.
A guerra civil
A guerra civil na Síria, que durou 13 anos, causou uma devastação generalizada no país. Estima-se que mais de 600 mil pessoas morreram no conflito e milhões foram deslocadas, tanto internamente quanto para o exterior, gerando uma grave crise de refugiados. Diversas cidades, como Alepo, Raqa e Homs, foram praticamente destruídas. Uma ofensiva relâmpago conduzida por rebeldes liderados por grupos islamitas pôs fim ao regime da família Assad. No dia 8 de dezembro de 2024, o conflito culminou com a queda de Bashar al-Assad.
Essa guerra civil causou a destruição de inúmeros monumentos históricos e importantes locais culturais, judaicos e não judaicos. Em Alepo foram destruídas partes da estrutura da Grande Sinagoga – uma das mais antigas da cidade. Uma exposição recente em realidade virtual no Museu de Israel, em Jerusalém, permitiu que os visitantes explorassem virtualmente a sinagoga como ela era em 1947. Ainda em Alepo, os combates causaram danos à Grande Mesquita de Alepo e ao Souq al-Madina, um ícone da cidade que era o maior mercado coberto do mundo.
A sinagoga Eliyahu Hanavi, localizada em Jobar – um local associado ao profeta Eliyahu (Elias) – também foi severamente danificada, especialmente durante os combates em maio de 2014. Paredes e tetos desabaram e diversos artefatos desapareceram. Após a queda do regime de Assad, a área – incluindo a sinagoga – tornou-se mais acessível, permitindo que judeus sírios visitassem o local.
Os cemitérios judaicos também foram profanados, com lápides vandalizadas ou roubadas. Os especialistas demonstram preocupação com as ruínas de sinagogas da era romana, nas antigas cidades sírias, como Apameia e Dura-Europos. Imagens de satélite revelaram que Dura-Europos foi amplamente saqueada enquanto estava sob controle do Estado Islâmico.
Há uma preocupação por parte das comunidades judaicas sírias espalhadas pelo mundo em preservar o patrimônio e a cultura judaicos na Síria. Em janeiro de 2025, o rabino Binyamin Hamra – líder da comunidade judaica síria em Israel – escreveu ao chefe do novo governo sírio, Ahmed al-Sharaa, para parabenizá-lo por sua vitória sobre o regime deposto de Bashar al-Assad e destacar a importância de preservar a histórica comunidade judaica do país. Em fevereiro, o rabino Joseph Hamra – filho do rabino Avraham Hamra, que imigrou para Israel em 1994 – viajou a Damasco e, pela primeira vez em três décadas, leu em público um rolo da Torá em uma sinagoga no coração da capital síria.
A presença judaica na Síria, uma das mais antigas do mundo, chegou à beira do desaparecimento após décadas de repressão e os devastadores efeitos da guerra civil. Hoje, restam poucos vestígios físicos e humanos dessa história milenar. Ainda assim, iniciativas recentes de preservação e o retorno de representantes da comunidade demonstram que a memória judaica síria continua viva – não apenas como registro do passado, mas como parte essencial da herança cultural do Povo Judeu.
- O nacionalismo árabe secularista, que surgiu no final do século 19, se baseia na ideia de que os povos árabes constituem uma única nação, unida por fatores comuns como a língua, a cultura, a história e, em alguns casos, a religião.
- O Partido Baath foi liderado por Hafez al-Assad e depois por seu filho, Bashar al-Assad. A hegemonia do Partido Baath foi desafiada pela revolta árabe de 2011, que resultou em uma guerra civil. Após a queda do regime de Bashar al-Assad, o partido Baath declarou apoio à transição na Síria, defendendo a unidade do país.