Morashá teve a oportunidade de entrevistar o Rabino Korsia, recentemente. Abaixo, os principais pontos dessa entrevista.

O Rabino Haïm Korsia nasceu em 27 de setembro de 1963 em Lyon, França, filho de judeus argelinos que migraram para a França. Seu pai, o Rabino André Korsia, tornou-se rabino na região parisiense do 2o Arrondissement. Após terminar os estudos secundários, o Rabino Korsia cursou o Séminaire Israélite de France (SIF). Em paralelo, diplomou-se com o título de Mestrado em Administração de Empresas pela Reims Management School com uma tese sobre uma estratégia de desenvolvimento para o rabinato francês. Obtém, em seguida, um Diploma de Estudos Avançados da École Pratique des Études Avancées. Em 2006, na Universidade de Poitiers, ele defende uma tese de Doutorado intitulada Jacob Kaplan ou o Rabino da República. Estudou também no Centro para Estudos Avançados sobre a África e a Ásia Moderna.

Antes de assumir o Rabinato-Chefe, exerceu o cargo de Rabino por duas décadas, ocupando o púlpito na sinagoga de Reims e dirigindo um seminário rabínico em Paris. Foi elevado a Capelão Judaico do exército francês, tendo também trabalhado ao lado de dois Rabinos-Chefes da França, o Rabino Joseph Sitruk Zt”l (de 1987 a 2008) e o Rabino Gilles Bernheim Zt”l (de 2009 a 2013).

Em junho de 2014, após o então Rabino-Chefe, Gilles Bernheim, ter pedido demissão, um comitê do Consistório Central da França escolheu o Rabino Korsia para o cargo, que, a princípio, teria a duração de sete anos. Korsia foi reeleito em 6 de junho de 2021. Martine Cohen, especialista em Judaísmo no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, destacou que a eleição de Korsia representava uma mudança para uma Ortodoxia Moderna.

A França abriga a maior comunidade judaica da Europa e a terceira mundial, após Israel e Estados Unidos. Quando Haïm Korsia foi alçado à posição de Rabino-Chefe, os judeus franceses enfrentavam tempos difíceis. Desde a virada do século 21, houve um acentuado aumento nas atividades antissemitas no país e, ademais, a França atravessava sérios problemas econômicos que também afetavam a vida da comunidade judaica.

Morashá teve a oportunidade de entrevistar o Rabino Korsia, recentemente. Abaixo, os principais pontos dessa entrevista.

Rabi Korsia, o Sr. obteve vários diplomas de instituições laicas. De que forma a sua educação laica contribui para seu trabalho como Grão-Rabino?

RK – Estudei em uma escola judaica, mas não era um cheder, pois não havia um onde nós morávamos. A seguir, completei meus estudos em uma escola pública. Posteriormente, tirei minha smichá, isto é, meu certificado para atuar como rabino, em um seminário por correspondência. No meu entender, uma pessoa se consolida em decorrência de tudo o que faz na vida; e sempre considerei perigoso alguém se prender a um único ponto de vista, por isso decidi diversificar meus estudos. Muitas pessoas se perguntavam por que razão um rabino deveria obter um MBA- um título de Master in Business Administration. Pois bem, quando me tornei rabino o MBA e o fato de ter trabalhado, quando jovem, durante os meses de verão, em vários empregos, permitiram que eu entendesse melhor os problemas empresariais e econômicos de minha congregação.

As escolas judaicas ensinam noções suficientes de Judaísmo a seus alunos?

RK – O Judaísmo é basicamente ensinado pelos pais, no lar judaico. A escola não deve suplantar os pais, mas deve construir a educação judaica das crianças conjuntamente com eles. Por exemplo, se, na escola, os alunos aprendem a comer alimentos casher e, ao chegar em casa, os pais lhe dizem para “parar com essa conversa”, as crianças ficam confusas. Nesse caso, os pais estão ensinando aos filhos que os ensinamentos judaicos são relativos, mas nós sabemos que nossas Leis não são relativas. Deve haver portanto uma adequação daquilo que as crianças aprendem na escola judaica e aquilo que vivem em sua casa. Há casos, porém, de crianças cujo único vínculo com o Judaísmo é a escola, pois os pais não têm possibilidades de cuidar de sua educação judaica, mas querem que seus filhos sejam capazes de praticar o Judaísmo. Em casos assim, a escola judaica tem um papel primordial.

Como os judeus franceses estão enfrentando o nível recorde de antissemitismo no país?

RK – Serei muito honesto com os leitores de Morashá, os números por si só não querem dizer muito. E, aliás, em 2023, os atos antissemitas diminuíram bastante na França. No entanto, ainda há antissemitismo. E, não é o fato de os incidentes terem diminuído ou aumentado o que vai nos preocupar ou tranquilizar. Mas, o maior perigo, o mais grave, é o fato de nos estarmos acostumando com o antissemitismo. O ensaísta francês, Charles Péguy, afirmou: “O pior não é ter uma alma perversa, mas ter uma alma acostumada”. Vivemos em uma sociedade de violência, verbal e física. Temos que ter consciência disso e enquanto ocorrer um único ato antissemita não devemos pensar que estamos seguros.

A verdade é que não há um lugar, hoje, onde os judeus estejam seguros. Londres, por exemplo, é uma cidade multicultural, sendo assim, em teoria, deveria ser um lugar ideal para um judeu viver. Ledo engano. O número de incidentes antissemitas é três vezes maior do que o número de atos ocorridos na França. Mas lá não houve mortes – e nós, infelizmente, tivemos. É a única e grande diferença.

Toda sociedade deve combater o antissemitismo. No ano 2000, na época da Segunda Intifada, em Israel, quando eu trabalhava com o grande Rabino Sitruk, Zt”l, explodiu em certos subúrbios franceses uma violência descontrolada contra os judeus. Na época as autoridades francesas nos diziam: “Não falem dos atentados antissemitas, pois isso provocará outros atentados”. O governo negava o que ocorria, e nós não podíamos reagir. O fato do governo não ter se pronunciado contra a violência foi um grande erro. A situação mudou quando entrou o governo de Jean Pierre Raffarin, em 2002. O governo passou a relatar os incidentes antissemitas e nós pudemos reagir e combater o antissemitismo.

A verdade é que uma sociedade que se entrega ao antissemitismo cria um modo de vida que incorpora o ódio. Ao combatê-lo, a sociedade não está defendendo apenas os judeus, mas, ao reconhecer e respeitar a diferença que há nos outros, defende a alteridade existente em seu meio.

Quais os meios mais eficazes de lutar contra o antissemitismo?

RK – Nós, judeus, soubemos como combatê-lo durante três mil anos. E o fizemos mantendo quem nós somos. O Judaísmo nos ensina a dedicar nossa energia a viver e a sobreviver. Como vemos na noite do Seder de Pessach, ano após ano, Lechol dor vador, omdim alenu lehalotenu, em cada geração, algum povo se levanta para nos exterminar. E Hashem nos salva, com “mão forte e braço vigoroso” para continuarmos vivendo e realizando nossa missão. E isso formou nossa resiliência como povo. Então, como lutar contra o antissemitismo? Continuando a ser quem nós somos!

O Sr. diria que na França há algo que atrai os judeus para esse país?

RK – Em primeiro lugar, a França foi o primeiro país no mundo que deu o status de cidadão plenos aos judeus, em 27 de setembro de 1791. Isso por si só constitui um forte apelo. Diz-se em toda a Europa em relação à França: “Nesse país é possível viver”, daí o antigo provérbio, “Feliz como um judeu na França”.

Em 1895, o Caso Dreyfuss abalou profundamente a comunidade judaica francesa, mas o grande filósofo francês, judeu, Emmanuel Levinas, nascido em Kaunas, na Lituânia, contava que seu pai lhe dissera: “Um país que se divide e dilacera pela honra de um simples capitão judeu é um país onde os judeus devem viver”. Pois é, nós vimos o episódio como um horror, mas ele o via como algo incrível.

Há outro vínculo entre o Judaísmo e a França. Rashi, o comentarista da Torá e do Talmud, nasceu em 1040 e morreu em 1105, em Troyes, na França. Ao longo dos séculos, os judeus do mundo leem a Torá e a Guemará com “um espírito francês”, pois as explicações de Rashi nos guiam ao longo do texto. Rashi explicou algumas frases da Torá por meio de palavras em francês.

Qual a atitude do Presidente Macron em relação aos judeus franceses?

RK – O presidente Emmanuel Macron foi eleito em maio de 2017 e seu primeiro discurso importante foi, em julho, durante a cerimônia dos 75 anos do Vél d’Hiv1 (Vélodrome d’Hiver), realizada no memorial erguido em 1994 para homenagear os judeus deportados de Paris para os campos de concentração, durante a
2ª Guerra. Ele convidou para o evento o então primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu. Era a primeira vez que um dirigente israelense era convidado para participar do evento. Macron homenageou publicamente Jacques Chirac, que reconheceu oficialmente, em 1995, a responsabilidade que a França teve na deportação dos judeus que viviam na França.

Temos uma excelente comunicação com o governo e o presidente Macron se pronuncia em defesa de tópicos sensíveis, como o abate ritual (shechitá), o brit milá, os exames escolares e universitários no Shabat, e a manutenção de nossas sinagogas, ou seja, tudo aquilo que diz respeito a nós, judeus da França.

Qual a sua opinião sobre as mulheres Agunot2?

RK – Para mim, isso é algo inadmissível e eu utilizo todos os meios de que disponho para combatê-lo. O pior é utilizar o guet como uma forma de chantagem. A princípio o casal se ama, depois deixa de se amar. O casal se separa, o marido concede o guet à esposa. Essa é a atitude correta, deixar que a ex-esposa refaça a sua vida, e volte a ser feliz. Eu não quero que os casais se divorciem, mas caso cheguem a isso, que se respeitem e permitam que o outro siga sua vida.

Qual é o maior desafio para o Grão-Rabino da França?

RK – O maior desafio é transmitir de maneira compreensível a mensagem da Torá aos judeus e aos não judeus, à sociedade como um todo. Sendo o Rabino-Chefe da França eu sou chamado a apresentar à sociedade maior o ponto de vista do Judaísmo. Isto significa que quando há um debate sobre questões de ética na ciência, eutanásia assistida, debates sociais, eu apresento o ponto de visa judaico.

Outro grande desafio é criar um vínculo permanente entre as comunidades, que, infelizmente, tendem a se manter muito isoladas. Ajudo, também, as comunidades judaicas a entrarem com pedido de ajuda ao governo, pois nem sempre sabem como formalizar uma solicitação.

1        Em julho de 1942, a polícia francesa prendeu 13.512 judeus – homens, mulheres e crianças, levando quase todos para o Vélodrome d’Hiver, em Paris. Essa foi a maior operação de detenção de judeus na França, durante a 2ª Guerra Mundial, e foi executada exclusivamente por policiais franceses, sem o envolvimento de um alemão sequer. A maioria desses judeus foram assassinados em Auschwitz.

2        Agunot (no singular aguná) é um termo em hebraico que literalmente significa mulheres “acorrentadas” ou “ancoradas”. Na Lei Judaica, refere-se a uma mulher que está “presa” em um casamento porque seu marido se recusa a lhe conceder um guet, que é o documento de divórcio no Judaísmo. Isto pode ocorrer se o marido desaparecer sem conceder o guet ou se ele se recusar a fazê-lo.