O dia mais reverenciado do calendário judaico, Yom Kipur, tem como tema central o perdão divino pelos pecados e transgressões dos seres humanos. Chamado, com mais precisão, de Yom HaKipurim (Dia das Expiações), marca o ápice e o encerramento dos Dez Dias de Teshuvá (arrependimento) iniciados em Rosh Hashaná, o Ano Novo.
A festividade toca fundo a alma judaica: em Israel, as ruas silenciam, e é raro ver algum carro circulando, até mesmo em Tel Aviv, centro financeiro do país. Na Diáspora, as sinagogas se enchem, sobretudo durante a prece final, a Ne’ilá.
Embora, para a surpresa de muitos, não seja mais sagrado que o Shabat, Yom Kipur é o dia mais reverenciado e observado do nosso calendário devido à sua singularidade em diversos aspectos. É o único jejum ordenado pela Torá (todos os demais são de origem rabínica), tanto que deve ser respeitado mesmo quando coincide com o Shabat, ocasião em que a prática é normalmente proibida. Além disso, na data maior do ano judaico, passamos na sinagoga quase todas as horas em que estamos acordados, imersos em oração. Também é o único dia do ano em que fazemos cinco rezas distintas: Arvit, Shacharit, Mussaf, Minchá e Ne’ilá. A liturgia é permeada por melodias comoventes e evocativas, por exemplo, o Kol Nidrei, sobretudo na tradição asquenazita, bem como o El Norá Alilá, recitado no início da prece de Ne’ilá nas comunidades sefarditas. Por fim, ao longo de todo o dia, repetimos inúmeras vezes os Treze Atributos da Misericórdia Divina, revelados por D’us a Moshe no Monte Sinai. Outro aspecto singular é que de acordo com a Cabalá, apenas no Yom Kipur temos acesso aos cinco níveis da alma: Néfesh, Ruach, Neshamá, Chaiá e Yechidá. É por essa razão que, só nessa ocasião, recitamos esse mesmo número de rezas distintas.
Segundo o Talmud, o Povo Judeu, ao se afastar das necessidades materiais e dos prazeres físicos em Yom Kipur, assemelha-se aos anjos durante a festividade. Esse dia também é o único em que o Satán, o anjo que incita os seres humanos ao pecado e atua como principal acusador nos Céus, é silenciado e privado do poder de denunciar os Filhos de Israel. É por essa razão, entre outras, que o momento é considerado o mais propício do ano para a teshuvá,o retorno a D’us.
A despeito de sua singularidade, da reverência que desperta e de seu poder tanto de atrair judeus à sinagoga quanto de inspirar à reflexão, Yom Kipur ainda é incompreendido por muitos. Seus temas centrais, o arrependimento e o perdão Divino, apesar das muitas ideias equivocadas sobre eles, estão no âmago do Judaísmo e ainda têm enorme relevância para cada um de nós, em todas as gerações. Na verdade, possuem ressonância universal e oferecem lições de fundamental importância para todos os seres humanos.
Yom Kipur e a Torá Oral
Um dos aspectos mais notáveis de Yom Kipur é que a ocasião põe em evidência a centralidade da Torá Oral, a Mishná e a Guemará, que juntas compõem o Talmud. Nesse sentido, cabe destacar a obrigação do jejum. Em todas as comunidades judaicas, até nas mais liberais, a abstenção de comida e bebida por mais de 25 horas, prática central da festividade, é observada.
No entanto, a Torá Escrita, em nenhuma parte, traz esse mandamento de maneira explícita. Em vez disso, diz, em diversas passagens, “afligireis vossas almas”, uma formulação vaga e indefinida sem a explicação fornecida pela tradição oral. A expressão aparece repetidas vezes nos trechos que tratam de Yom Kipur. Em Levítico 16:29, lê-se: “E isso será para vós por estatuto perpétuo; no sétimo mês, no dia 10 do mês, afligireis as vossas almas” e, em 23:27, “Mas aos 10 dias deste sétimo mês é o Dia das Expiações (Yom Hakipurim); convocação de santidade será para vós, e afligireis as vossas almas”. Essa linguagem volta a ocorrer no mesmo livro em 16:31 e 23:32, bem como em Números 29:7. No entanto, nenhuma dessas passagens explica, de forma clara, o significado dessa prescrição.
A principal obrigação de Yom Kipur só foi definida com clareza na Torá Oral, transmitida por D’us a Moshe no Sinai e preservada pela tradição oral, de geração em geração, até ser codificada no Talmud. Segundo esse texto sagrado, o “afligireis as vossas almas” abrange cinco proibições distintas: não comer ou beber, banhar-se ou lavar-se, usar calçados de couro, aplicar óleos ou perfumes, ou manter relações conjugais. O conjunto dessas formas de abstinência confere um caráter singular e transcendente à festividade, um período de mais de 25 horas em que o Povo Judeu busca reproduzir a pureza e o desprendimento dos anjos.
A importância da Torá Oral para a compreensão de Yom Kipur torna-se ainda mais evidente em um dos tratados do Talmud: Yoma (nomeado, com precisão, como “O Dia”), dedicado às leis, aos rituais e ao significado espiritual desse momento único do calendário judaico. Esse tratado talmúdico não só esmiúça, discute e elucida o serviço no Templo e as obrigações legais da ocasião solene, mas também aborda, sobretudo nas páginas finais, a essência teológica da expiação e o processo de arrependimento. Os ensinamentos talmúdicos constituem a base de nossa compreensão de Yom Kipur, assim como da visão judaica mais ampla sobre o pecado e todo o processo que leva à sua remissão.
Perdão Divino
Um equívoco bastante comum sobre Yom Kipur é a ideia de que, nessa ocasião, todas as transgressões são automaticamente expiadas, como se o jejum nesse dia sagrado garantisse o perdão completo e um recomeço absoluto. Com essa concepção errônea, corre-se o risco de apresentar a festividade como uma brecha na ordem moral, a possibilidade de agir de maneira irresponsável ao longo do ano e apagar tudo com um único ato ritual: 25 horas de abstinência.
Entretanto, essa visão está totalmente incorreta. Embora sem dúvida seja uma forma de aflição, o jejum, sem o consumo até mesmo de água por mais de um dia, não pode funcionar como uma panaceia espiritual, capaz de compensar, por si só, todas as faltas e transgressões cometidas ao longo do ano. Em uma Mishná do Tratado de Yoma,o Talmud ensina explicitamente que: “Para os pecados entre o homem e D’us, Yom Kipur expia; mas para os pecados entre o homem e seu semelhante, Yom Kipur não expia até que ele apazigue seu próximo”. O Rabi Elazar ben Azariá deduz, das Escrituras, o seguinte: “De todos vossos pecados diante do Eterno [isto é, entre você e D’us], sereis purificados (Levítico 16:30)”. (Mishná, Talmud Bavli, Yoma 85b).
A compreensão adequada desse ensinamento talmúdico passa pelo reconhecimento de que os mandamentos da Torá se dividem, de modo geral, em duas categorias: bein adam laMakom (entre o homem e D’us) e bein adam lachaveirô (entre o ser humano e seu próximo). As transgressões contra o Eterno incluem a inobservância do Shabat, o consumo de alimentos não casher e as relações sexuais proibidas. Já aquelas contra o próximo são, entre outras, o roubo, a difamação, a maledicência, a agressão e a humilhação.
Embora proporcione a remissão dos pecados contra D’us, Yom Kipur não traz a absolvição das faltas que cometemos contra outras pessoas sem um pedido sincero de desculpas, seguido de reconciliação e reparação. Esse apelo tem que ser pessoal e autêntico: enviar, antes da festividade, uma mensagem genérica pelas redes sociais a “quem quer que eu possa ter ofendido”, além de ineficaz, banaliza a obrigação sagrada de buscar o perdão daqueles que prejudicamos. Devemos procurá-los pessoalmente, expressar arrependimento sincero e fazer o que for preciso para reparar o dano que causamos.
A ineficácia do Yom Kipur para expiar as transgressões contra o próximo sem o perdão deste parece ir de encontro ao Vidui, a prece confessional repetida ao longo de todo o dia sagrado, sobretudo na liturgia asquenazita, em que quase todos os pecados listados são contra o semelhante. Qual é, então, o sentido de pedir a D’us o perdão por faltas cometidas contra outras pessoas?
A resposta está na ideia de que qualquer transgressão em relação a alguém também é uma ofensa ao Onipotente. Ao ferir um semelhante, cometemos duas faltas ao mesmo tempo: violamos a dignidade humana e infringimos a lei Divina, que proíbe causar dano ao próximo. Assim, o Vidui só é eficaz após fazermos as pazes com quem prejudicamos. Apenas então podemos pedir o perdão Divino pelo componente espiritual da falta. No entanto, segundo o Talmud, certos pecados só contra D’us não são automaticamente perdoados em Yom Kipur. São transgressões tão sérias que nem a observância correta dos preceitos da festividade leva à expiação completa. De fato, seria uma afronta à justiça Divina crer na absolvição para faltas gravíssimas após um jejum de um único dia.
O Tratado de Yoma ensina que Yom Kipur expia, principalmente, transgressões menores, como os pecados por omissão ou as violações de preceitos menos severos. Já as infrações mais graves, em particular a maior de todas, Chilul Hashem (a profanação do Nome de D’us), que abrange qualquer comportamento que desonre o Judaísmo ou afaste outras pessoas da observância da Torá e de seus mandamentos, exigem muito mais do que o jejum. A plena expiação das faltas dessa natureza requer uma teshuvá profunda e contínua, com arrependimento sincero e transformação espiritual.
O papel dos sacrifícios
Um equívoco comum tanto sobre Yom Kipur quanto sobre o Judaísmo em geral diz respeito ao papel dos sacrifícios animais, prática que, para muitos, soa anacrônica e irrelevante. De fato, desde a destruição do Templo Sagrado de Jerusalém, há quase dois mil anos, esses rituais não só deixaram de ser praticados, mas também foram expressamente proibidos pela Lei Judaica até que o Terceiro Templo seja construído.
No entanto, o tema ainda é uma questão teológica relevante, sobretudo, no âmbito de Yom Kipur. O terceiro livro da Torá, Vayicrá (Levítico), dedica a ele atenção significativa, incluindo a porção de Acharei Mot, que descreve os rituais realizados pelo Cohen Gadol, o Sumo Sacerdote, nesse dia sagrado. Isso leva muitos a supor que as ofertas de sangue eram o principal meio instituído pela Torá para alcançar o perdão em Yom Kipur.
Essa ideia, no entanto, revela um equívoco fundamental sobre o propósito dos sacrifícios no Judaísmo. É certo que algumas oferendas apresentadas no Templo Sagrado faziam parte da expiação por pecados intencionais, mas a grande maioria estava relacionada a violações involuntárias, cometidas por descuido, negligência ou desconhecimento da lei.
O exemplo mais emblemático é o Korban Chatat (sacrifício pelo pecado), oferecido quando se infringia inadvertidamente um mandamento grave cuja violação intencional acarretaria karet (exclusão espiritual). Por exemplo, se uma pessoa violasse o Shabat por esquecimento ou ignorância da proibição de determinada ação nesse dia sagrado, deveria levar um sacrifício.
Por outro lado, as transgressões intencionais, como a violação consciente e deliberada do Shabat, não podiam ser expiadas por meio de nenhum sacrifício. Constitui um grave equívoco a ideia de que, na época do Templo, fosse possível violar de propósito alguma lei da Torá, mesmo aquelas punidas com karet, e simplesmente apagar a falta com uma oferenda animal.
Os ensinamentos cabalísticos lançam ainda mais luz sobre esse conceito. Todo pecado alimenta as forças da impureza (kelipot, as “cascas” que ocultam a luz Divina) em uma intensidade proporcional à gravidade da falta. Isso causa danos não só à alma do transgressor, mas à própria estrutura espiritual do Universo. Um mal dessa natureza não pode ser desfeito com um sacrifício animal. É verdade que certas oferendas, como o Korban Asham (sacrifício pela culpa), podiam ser feitas devido a alguns pecados intencionais específicos. No entanto, esses casos raros estavam, em geral, relacionados a infrações que envolviam o Templo, sua santidade ou roubos passíveis de restituição. A imensa maioria das transgressões graves e deliberadas descritas na Torá, como idolatria, assassinato e adultério, entre outras, não eram, em nenhum caso, passíveis de expiação por meio de rituais.
Além disso, a crença de que os sacrifícios visavam a apaziguar D’us é uma distorção de seu verdadeiro propósito. O sistema dessas práticas era complexo e multifacetado. As oferendas, em sua maioria, não eram completamente queimadas sobre o Altar, mas só porções específicas, como certas partes de gordura. A carne daquelas trazidas por motivo de pecado (chatat) ou culpa (asham) era consumida pelos kohanim. Esse alimento, inclusive, era parte do sustento desses sacerdotes, excluídos de herança territorial na Terra de Israel. Apenas algumas oferendas, como o Korban Olá (sacrifício totalmente queimado), eram inteiramente consumidas pelo fogo, porém, mesmo nesses casos, os kohanim recebiam ao menos o couro dos animais.
Por fim, cabe destacar que até os poucos rituais destinados a expiar pecados intencionais, como roubo, exigiam o arrependimento prévio e a plena restituição do valor roubado, além do pagamento de uma multa à vítima. De fato, o Talmud ensina que, sem teshuvá, os sacrifícios não expiam (Shevuot 13a; Keritut 7a). Esse princípio está enraizado na própria Torá: “E, quando for culpado de uma destas coisas, confessará aquilo em que pecou” (Levítico 5:5); “E confessará os pecados que cometeu, e fará plena restituição e lhe acrescentará a sua quinta parte, e dará tudo àquele contra quem pecou”. (Números 5:7). Em outras palavras, é essencial a confissão, acompanhada de remorso genuíno, restituição do roubo e pagamento de uma multa. Sem isso, a oferenda não tem o poder de expiar o pecado.
O bode expiatório e a lã escarlate
Um dos elementos mais singulares e enigmáticos do serviço de Yom Kipur, conforme descrito no capítulo 16 do livro de Levítico, é o ritual do bode expiatório. Entre dois bodes idênticos, havia um sorteio para definir qual seria oferecido como sacrifício no Templo. O outro, designado bode expiatório, era simbolicamente carregado com os pecados do Povo Judeu e enviado a Azazel, termo cujo significado exato é objeto de debate, mas, de modo geral, entende-se que seja um penhasco escarpado, o topo de uma montanha com queda abrupta e não uma encosta gradual.
Teologicamente complexo, o ritual é tratado não só nos comentários clássicos da Torá, mas também nas obras do misticismo judaico. Os escritos cabalísticos revelam as dimensões profundas do envio do animal a Azazel. De acordo com esses ensinamentos, a finalidade é reparar os danos espirituais causados pelo pecado e expulsar as energias negativas, conhecidas na Cabalá como kelipot, que se alimentam da transgressão e obscurecem a luz Divina.
Ainda assim, o bode expiatório, por si só, não proporcionava a expiação automática das faltas. Isso fica demonstrado em um milagre associado ao ritual. Conforme descrito no Talmud, o emissário encarregado de conduzir o animal até Azazel dividia uma faixa de lã escarlate em duas partes, uma das quais era amarrada entre os chifres do bode. Já a outra era fixada no Ulam, o vestíbulo do santuário interno (Hechal) do Templo, onde podia ser vista por todos. Após a conclusão do serviço sacrificial e o envio do bode expiatório, se D’us tivesse perdoado o Povo de Israel naquele Yom Kipur, este segundo fio de lã tornava-se branco, em cumprimento ao versículo de Isaías (1:18): “Ainda que vossos pecados sejam rubros como o escarlate, eles se tornarão brancos como a neve. Ainda que sejam como o carmesim, tornar-se-ão alvos como a lã”. No entanto, se o fio permanecesse inalterado, isso indicava a não concessão do perdão Divino apesar do jejum, de todo o serviço de Yom Kipur e até mesmo do ritual do bode expiatório.
O Talmud Bavli (Rosh Hashaná 31b) revela que, durante as quatro décadas que precederam a destruição do Segundo Templo, a faixa escarlate, além de não embranquecer, assumiu um tom ainda mais intenso de vermelho, sinal de que os pecados do povo, além de não terem sido perdoados, se haviam agravado. Clara e inequívoca, a mensagem do Alto foi tragicamente ignorada. Apesar de presenciar esse sinal milagroso de rejeição quarenta anos consecutivos, a nação não corrigiu seus caminhos. A recusa em responder a um aviso Divino tão explícito e persistente foi parte da decadência espiritual que culminou na destruição do Templo Sagrado e nos acontecimentos devastadores que a ela se seguiram.
O ritual do bode expiatório tinha um aspecto essencial revelado pelo milagre da mudança de cor da lã. Contudo, apesar de seu profundo caráter espiritual, não possuía, por si só, o poder de remover os pecados do povo, caso contrário a faixa escarlate teria se tornado branca, todos os anos, como sinal do perdão Divino. Como o próprio Yom Kipur, com o jejum, os sacrifícios e o serviço conduzido pelo Cohen Gadol, só era eficaz quando acompanhado de um arrependimento coletivo sincero. O milagre era uma resposta a uma teshuvá efetiva (não um substituto para ela), a qual, por sua vez, resultava em uma expiação plena e, por conseguinte, na concessão do perdão de D’us. Sem o arrependimento, o fio permanecia escarlate, sinal de um processo falho ou pelo menos incompleto. Quando o comportamento coletivo se degradava ainda mais, a lã adquiria um tom de vermelho ainda mais intenso, indicando a gravidade crescente das transgressões dos Filhos de Israel.
Mesmo o Rambam, para quem o envio do bode expiatório a Azazel apagava todos os pecados da nação (Comentário à Mishná, Shevuot 1:6), deixa bem claro que a eficácia da prática dependia da teshuvá. Se o povo realmente se arrependesse, o animal cumpria sua função espiritual e mística; caso contrário, o ritual não surtia efeito, e a nação precisava corrigir suas ações antes do Yom Kipur seguinte.
Isso em nada diminui a profunda importância dos mandamentos e ritos da data maior do calendário judaico, todos ordenações da Torá, com origem Divina e consequências tanto físicas quanto espirituais inimagináveis. No entanto, sem uma teshuvá genuína, um verdadeiro retorno a D’us, todo o serviço religioso da festividade, o ritual do bode expiatório inclusive, produziam efeitos limitados.
Como ensina o livro de Provérbios: “Praticar a tzedacá e a justiça é mais desejável ao Eterno do que o sacrifício” (Provérbios 21:3). Essa mensagem, repetida pelos profetas, está no cerne de Yom Kipur.
Teshuvá e o perdão Divino
Com base em tudo o que foi exposto, torna-se evidente que, sobretudo em nossa época, sem o Templo Sagrado, o principal requisito para alcançar o perdão de D’us em Yom Kipur é a teshuvá, o arrependimento sincero. Na ausência do serviço sacrificial e do ritual do bode expiatório, a única via disponível para a expiação é o trabalho interior de retorno: o reconhecimento de nossas falhas, o remorso genuíno, o compromisso de não repetir os erros e o empenho na reparação do que for possível.
Segundo o Rambam, mesmo com o Templo de pé e os sacrifícios, o perdão Divino só era concedido àqueles que se arrependiam do fundo do coração, quanto mais agora que a teshuvá é o único caminho possível para a remissão das transgressões.
Como explica o Rambam: “O que é teshuvá? É quando o pecador abandona o pecado, o afasta de seus pensamentos e decide, com firmeza no coração, jamais cometê-lo novamente, conforme está dito: ‘Abandone o perverso seu caminho, e o iníquo, seus pensamentos’ (Isaías 55:7). Deve também sentir profundo pesar pelo passado, como está escrito: ‘Depois que a Ti me voltei, o remorso me tomou’ (Jeremias 31:18). E sua resolução deve ser tão sincera que Aquele que conhece os segredos do coração possa testemunhar que ele jamais retornará àquele pecado”. (Hilchot teshuvá 2:2).
É um princípio fundamental que nenhum transgressor é perdoado sem arrependimento, como ensina o Meiri (Rabi Menachem ben Shlomo, renomado comentarista talmúdico e pensador religioso de Perpignan, no sul da França, 1249–1316). O versículo “Porque neste dia se fará expiação por vós, para purificar-vos de todos vossos pecados; diante do Eterno sereis purificados” (Levítico 16:30) leva muitos a crer que o Yom Kipur, por mérito do próprio dia, já traz a expiação, a qual, contudo, de acordo com o Meiri, não se concretiza sem arrependimento genuíno. Essa ideia é confirmada pelo Maharal de Praga, na observação de que o poder singular do momento mais importante do nosso calendário reside na oportunidade que oferece para uma verdadeira transformação interior.
O livro de Provérbios ensina: “Pela bondade e pela verdade é expiada a iniquidade” (Provérbios 16:6). Com base nesse versículo, Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Alter Rebe, explica, no Igueret Hateshuvá, que os atos de tzedacá expressam a bondade enquanto o estudo da Torá representa a verdade. Juntos, aqueles e este, constituem o alicerce da retificação espiritual.
Esse tema encontra poderosa expressão na Haftará, uma passagem comovente do livro de Isaíaslida na manhã de Yom Kipur. Nela, o profeta repreende quem se apoia unicamente no jejum, enquanto negligencia a justiça, a compaixão e o cuidado tanto com os oprimidos quanto com os necessitados. Observa ainda que essa abstinência, embora essencial para alcançar o perdão Divino, não é suficiente por si só, mas deve ser acompanhada por uma renovação moral e por um verdadeiro compromisso com os mais vulneráveis.
A teshuvá genuína, sobretudo quando se busca expiação por transgressões graves, exige muito mais do que jejuar por 25 horas e comparecer à sinagoga em Yom Kipur, por mais louváveis que sejam essas práticas.
O verdadeiro arrependimento demanda profundo remorso, um compromisso verdadeiro com a mudança e ações concretas para corrigir o passado: fortalecer o vínculo com D’us por meio do estudo da Torá e da observância de Seus mandamentos, bem como reparar os danos causados ao próximo. Isso inclui pedir perdão de forma sincera, redimir as injustiças cometidas e demonstrar verdadeira transformação pessoal por meio da ação concreta e do caráter.
Conforme o Talmud, no Tratado de Yoma, a teshuvá acelera a chegada da redenção messiânica. Cada ato de arrependimento sincero aproxima o mundo de seu propósito final. Como escreve o Rambam, em confirmação a um célebre ensinamento dos nossos Sábios, cada pessoa deve enxergar a si mesma como se vivesse em um mundo inteiro em equilíbrio e, com uma única boa ação, conseguisse inclinar a balança para o lado do mérito de maneira a trazer salvação a todos.
O futuro do Povo Judeu, tanto em Israel quanto na Diáspora, e, de fato, de toda a humanidade está nas mãos de cada um de nós. É com essa consciência que devemos adentrar os Dez Dias de Teshuvá, sobretudo seu clímax: Yom Kipur, o Dia da Expiação.