Era o ano de 1808 na cidade de Hamburgo, Alemanha, quando nascEU o futuro rabino Shimshon Refael Hirsch, filho do casal Refael e Guila Hirsch, dois jovens que formavam uma família rica e respeitada em sua comunidade. Em sua primeira infância, a educação religiosa do jovem Shimshon se deu no ambiente familiar. As aulas eram dadas por seu pai, homem religioso que atuava no comércio, e por seu avô, pai de seu pai, Menachem Mendel Frankfurter, rabino e comerciante.
Paralelamente à educação que recebia em casa, Shimshon foi inscrito em um ginásio cristão onde aprendeu latim e outras matérias laicas. Depois do Bar Mitzvá, iniciou os estudos regulares de Talmud.
De acordo com a definição do próprio Rabino Hirsch, sua família era “esclarecida e religiosa”. Ainda que esta não fosse uma combinação comum naquele tempo, o Rabino Hirsch, seguindo os passos de seu pai e de seu avô, foi a terceira geração de sua família a aliar estudos laicos a religiosos, sendo influenciado tanto pelo pensamento iluminista quanto pelo Judaísmo.
Para melhor ilustrar a relação da família Hirsch com a Haskalá, vertente judaica do Iluminismo, convém nos atermos um pouco mais sobre a trajetória de Mendel Frankfurter (1742-1823), avô e professor do Rabino Hirsch, que abriu o caminho que seria seguido por seus descendentes.
Em sua juventude, Mendel Frankfurter estudou na ieshivá de Altona, um bairro na cidade de Hamburgo, sob a direção do renomado Rabino Yonathan Eibschuetz, onde prosperou em seus estudos. Apesar de atuar como juiz no tribunal rabínico de seu mestre, Frankfurter foi buscar seu sustento no comércio. Em uma estada em Berlim, conheceu Moses Mendelssohn (1729-1786) com quem manteria uma forte ligação.
O contato de Frankfurter com Mendelssohn, considerado o pai da Haskalá, acabou influenciando a educação dada a seus filhos e netos. Um dos filhos de Frankfurter, por exemplo, chegou a mudar seu sobrenome para Mendelssohn-Frankfurter em homenagem ao escritor amplamente reconhecido por ter sido o primeiro judeu a ser admitido pela sociedade alemã com respeito e admiração.
Além disso, seguindo as diretrizes do pensador e poeta Naftali Wessely, outro expoente da Haskalá, Frankfurter fundou, em 1805, uma instituição de ensino voltada a crianças judias órfãs e carentes na cidade de Hamburgo. A missão de sua escola era oferecer educação judaica religiosa ao lado de uma formação secular, a fim de proporcionar àquelas crianças a habilitação necessária para alcançar seu sustento com dignidade e respeito. Por seu ineditismo, a escola fundada por Frankfurter serviria de principal inspiração para o Rabino Hirsch quando da fundação de sua própria escola, quatro décadas depois. Contudo, a despeito de seus laços com a Haskalá, a família Frankfurter-Hirsch se manteve dentro da Ortodoxia, havendo registros da veemente oposição de Mendel Frankfurter à inauguração de um templo reformista em Hamburgo, no ano de 1828.
A saga da família Frankfurter-Hirsch pode ser entendida como um exemplo do caminho percorrido por parte do judaísmo europeu, em diferentes graus, a partir do advento do Iluminismo, entre os séculos 17 e 18, até o Holocausto.
O Iluminismo foi um movimento que enfatizava a razão e os direitos naturais do homem e reivindicava a extensão da liberdade humana. E, assim que surgiu, tinha a religião entre seus principais alvos ao promover a aplicação do raciocínio lógico e da metodologia científica a todas as áreas do conhecimento humano. O ser humano e a Ciência tomavam o lugar central que, até então, era ocupado por D’us e pela religião.
Contudo, apesar da influência do Iluminismo, durante todo o “Século das Luzes”, na maioria dos países europeus os judeus ainda estavam sujeitos a restrições e discriminações medievais. Os caminhos da emancipação judaica e da Haskalá, o Iluminismo judaico, iriam se cruzar.
Além das questões teóricas e filosóficas, as transformações políticas e tecnológicas do século 18 também tiveram um papel fundamental no estabelecimento da Haskalá em meio a uma nova condição judaica no Velho Continente. Em 1789 a Europa era sacudida pela Revolução Francesa. Dez anos mais tarde, os exércitos napoleônicos conquistam grande parte do continente, levando consigo os ideais revolucionários de liberdade e igualdade. Derrubam-se os guetos e os judeus são emancipados. Embora a Emancipação não tenha acontecido de modo linear, com muitas idas e vindas e particularidades locais, sua efetivação foi de suma importância para os judeus da época.
Começaram a ser admitidos na sociedade maior judeus e outras minorias que, até então, tinham tido seus direitos e deveres negados, fazendo com que capitalistas e intelectuais judeus se aproximassem, cada vez mais, dos não judeus e, pouco a pouco, assimilassem seu estilo de vida aos da burguesia local. Não surpreende o fato de que a parcela da coletividade judaica que melhor se integrava à sociedade maior tivesse a intenção de apagar os traços de um passado que a havia segregado. Emancipados, muitos judeus quiseram sair do gueto – literal e figurativamente – e não pouparam nenhum esforço para tanto. Esta tendência que se fez sentir em todo o judaísmo europeu foi ainda mais intensa nas comunidades alemãs, de onde partiram as reações mais significativas.
As respostas da comunidade a esses processos não obedeceram a nenhum padrão. Houve de tudo, desde conversões voluntárias ao Cristianismo, como meio de assimilação, até a mais completa rejeição às mudanças, posição vocalizada sobretudo pelo Rabino Moshé Schreiber, conhecido como Chatam Sofer (1762-1839). Mas, ao contrário do que aconteceu na Europa Oriental, o Chatam Sofer foi pouco ouvido na Alemanha, e a maior parte da comunidade germânica continuou a aderir à sociedade alemã sempre que novos espaços eram abertos aos judeus.
Nunca é demais lembrar que este encadeamento histórico jamais se deu com harmonia e facilidade. No começo desse processo, ao final do século 18, os alemães que aplaudiam Moisés Mendelssohn faziam-no a despeito e por causa de sua origem, como se fosse impossível que um judeu se destacasse intelectualmente, em uma celebração de seu próprio preconceito e antissemitismo. Mais adiante, na primeira metade do século 19, quando toda a Alemanha se rendeu à poesia de Heinrich Heine, nada foi suficiente para impedir que o poeta se visse forçado a se converter proforma ao Cristianismo, de modo a seguir adiante em sua carreira que já vinha enfrentando uma série de percalços em razão de sua origem.
Não obstante tudo isso, os anos se passaram e o encontro dos judeus alemães com a cultura local foi-se tornando tão profícuo que gerou alguns dos nomes que ficariam marcados para sempre como os maiores esteios da sociedade ocidental, até os dias de hoje, como Albert Einstein, Sigmund Freud, Franz Kafka, Walter Benjamin e tantos outros.
Foi em meio a essa ebulição ideológica e intelectual do final do século 18 e início do século 19 que Mendel Frankfurter forjou sua atuação comunitária e a educação de sua família, exposta à riqueza religiosa e aos avanços da Ciência e da Modernidade.
Desta forma, entre os anos 1826 e 1827, o futuro Rabino Hirsch completou seus estudos ginasiais e recebeu aulas particulares do Rabino Isaac Bernays (1792-1849), cuja esposa viria a ser avó de Sigmund Freud, e então seguiu à casa de estudos do Rabino Jacob Ettlinger (1798-1871), em Mannheim, onde iria receber sua ordenação rabínica, no ano de 1828. No ano seguinte, o Rabino ingressou na Universidade de Bonn para se graduar cientificamente, tal qual seus mestres religiosos, e estudar línguas clássicas, História e Filosofia. Em Bonn, iniciou uma relação de amizade e estudos com o Doutor Abraham Geiger, futuro líder do Movimento Reformista, com quem viria a antagonizar por décadas a fio em razão de divergências religiosas que se acentuariam cada vez mais.
1830-1841 (Oldenburg)
No ano de 1830, aos 22 anos de idade, o Rabino Hirsch decidiu abandonar sua graduação em Bonn para aceitar o cargo de Rabino-chefe do condado de Oldenburg, que abrangia sete comunidades e contava com cerca de mil membros. Em 1831, casou-se com Hana (Johanna) Ydel, filha de um banqueiro judeu, três anos mais velha que ele.
Nos 11 anos em que permaneceu em Oldenburg, o Rabino Hirsch produziu algumas de suas obras mais importantes e que o inseririam em um amplo e efervescente debate sobre o futuro do judaísmo alemão. Como a comunidade judaica germânica assistia à consolidação do Movimento Reformista, tornava-se imperativa uma resposta bem articulada por parte da Ortodoxia. Dada sua disposição em debater com representantes do Movimento Reformista e participar de discussões inter-religiosas com detratores do Tanach, o Rabino Hirsch se tornou o porta-voz mais eloquente da Ortodoxia e um ardoroso defensor de sua capacidade de conviver harmoniosamente com a Modernidade.
A assertividade adotada pelo Rabino Hirsch em relação à Modernidade coincidiu com certa retração enfrentada pelo racionalismo Iluminista, na época. O culto exacerbado da Razão, praticado pelo Iluminismo, levou ao surgimento do Romantismo Alemão cujo objetivo era resistir às ideias iluministas combatendo o excesso de racionalismo e materialismo. A seu modo, o Romantismo Alemão expressava o retorno a uma religiosidade reprimida e uma idealização de um passado remoto, glorioso, que deveria ser resgatado.
Com efeito, vários traços do Romantismo podem ser notados nas obras do Rabino Hirsch, que embora desgostasse da literatura tempestuosa de Goethe, tinha especial apreço pela poesia de Friedrich Schiller (1759-1805) e a forma como retratava os ideais de nobreza, justiça e moral, além de prezar por uma liberdade que não ultrapassasse os limites da lei. Tal apreço foi registrado em um tributo que o Rabino Hirsch proferiu a Schiller em uma noite de celebração organizada por sua escola, em Frankfurt, para homenagear o 100º aniversário do grande poeta. Seria plausível supor que a profunda relação mantida com o Romantismo e sua contestação à Modernidade tenham sido fundamentais para que o Rabino Hirsch tivesse a força e a audácia de fazer frente a todos os ataques dirigidos à religião pelo Iluminismo.
Assim, foi no ano de 1836 que o Rabino Hirsch se apresentou ao grande público como franco defensor da Ortodoxia judaica ao publicar o livro “Dezenove Cartas Sobre o Judaísmo”, ocasionando o rompimento de suas relações com Abraham Geiger e demais membros do Movimento Reformista. No ano seguinte, publicou o livro “Chorev: Ensaios Sobre os Deveres dos Judeus na Diáspora”, em que aprofundou as ideias levantadas em seu primeiro livro. O objetivo de ambas as obras era promover as tradições judaicas, ao explicá-las de forma racional e compreensível a um público laico que desconhecia o Judaísmo, além de buscar conter a evasão da Ortodoxia ao narrar as angústias que acometiam muitos dos que haviam deixado a Ortodoxia e aderido ao Reformismo.
Tendo sido o primeiro pensador ortodoxo a responder a uma realidade em que metade ou mais de seu público-alvo era secular, seria possível dizer que os dois primeiros livros do Rabino Hirsch inauguraram, muito antes de seu tempo, toda a obra que visava a transmitir valores religiosos a leitores não observantes.
No contexto desta atuação, o Rabino Hirsch adotou a expressão Torá im Derech Eretz (Torá com civilidade) como lema de sua ideologia. Ou seja, ao invés de afastar o Judaísmo da realidade de seu público, o Rabino Hirsch buscava a viabilização, em termos práticos e filosóficos, de um caminho que permitisse que todos os judeus mantivessem sua fé sem precisar alienar-se da sociedade ocidental em que estavam inseridos.
O caminho da prática de Torá im Derech Eretz sofreu grande resistência tanto de pensadores iluministas avessos à religião quanto de boa parte da Ortodoxia, que fazia questão de se manter apartada do que se passava a seu redor, o que não diminuiu a disposição do Rabino Hirsch em defender seu legadoem diversas frentes e circunstâncias, adaptando e refinando o ideal que se tornou o fio condutor de toda a sua obra intelectual e comunitária.
O ciclo do Rabino Hirsch em Oldenburg foi encerrado em 1841, quando aceitou um rabinato maior e mais desafiador. O seu posto rabínico foi ocupado por Bernard Weksler, um Rabino reformista radical que apoiava as posições controversas de Shmuel Holdheim em favor da flexibilização da proibição do casamento inter-religioso e da realização do Shabat no domingo.
1841-1851 (Emden e Morávia)
O Rabino Hirsch aceitou a tarefa de liderar uma comunidade um pouco maior no reinado de Hanôver e passou a morar na cidade de Emden. Em 1843, dois anos após desembarcar em Emden o nome do Rabino Hirsch foi cogitado para um dos cargos mais cobiçados do Judaísmo europeu, o posto de Rabino-chefe da Morávia, região que hoje constitui a parte oriental da República Checa. Tendo que supervisionar a vida religiosa de 52 comunidades e uma população de 40 mil judeus, o rabinato da Morávia tinha a jurisdição mais extensa da Europa.
Além da importância do cargo, o principal desafio do futuro Rabino da comunidade da Morávia seria lidar com a divisão interna que a assolava. De fato, os dias do Rabino Hirsch na Morávia foram muito turbulentos. Enquanto alguns setores ortodoxos não viam com bons olhos a forma ocidentalizada com a qual o Rabino Hirsch se apresentava, discordando de sua insistência em se comunicar apenas em alemão, os setores mais liberais da comunidade o pressionavam para que alterasse os textos das orações, no que também não foram atendidos.
Naquele ano de 1847 o Rabino Hirsch ingressou na política e foi eleito representante pela cidade de Nikolsburg no Parlamento daquela província. Segundo relatos, o Rabino não atrelou sua atuação política à causa judaica, entendendo que as questões judaicas eram parte de uma luta mais ampla em favor de uma Constituição Liberal que viesse a beneficiar vários outros segmentos da sociedade.
No ano seguinte, ocorreram as Revoluções de 1848, um conjunto de rebeliões e agitações que causaram grande abalo às estruturas sociopolíticas da Europa. Em consequência das jornadas da chamada Primavera dos Povos, foram derrubadas algumas monarquias, ao passo que eram conquistadas uma série de direitos para minorias e classes menos favorecidas. No bojo desses protestos, que contaram com a liderança de judeus, destacaram-se Karl Marx, à esquerda, e Ludwig Bamberger, à direita republicana, enquanto o Rabino Hirsch se engajava ativamente no movimento que lutava pela implantação da Emancipação Judaica, que, por sua vez, garantiria plenos direitos aos judeus residentes na Alemanha. Concedida em 1848, a Emancipação Judaica foi praticamente toda revogada com o revés da Primavera dos Povos, em 1849, conseguindo vigorar em poucas localidades até ser retomada nacionalmente em 1867.
Frankfurt (1851-1888)
Os direitos conquistados durante a Primavera dos Povos afetaram a comunidade judaica na cidade de Frankfurt. A comunidade oficial era controlada pelos liberais desde que haviam vencido as eleições gerais comunitárias do ano de 1839. Contudo, como os ortodoxos haviam obtido um terço dos votos nessas eleições, graças ao apoio da prestigiosa família Rothschild, a comunidade da cidade não aceitou o resultado do pleito.
Com as Revoluções de 1848, ambos os lados se sentiram encorajados a tomar medidas mais drásticas a fim de fortalecer suas posições. A maioria liberal decidiu elaborar uma nova constituição comunitária, a seu favor, ao passo que a minoria ortodoxa começou a se movimentar para pleitear a permissão governamental de se tornar independente da comunidade judaica oficial. Veio o ano de 1850 e os ortodoxos foram atendidos parcialmente e, apesar de terem que permanecer associados à comunidade judaica oficial, estavam liberados para fundar sua comunidade. Esta foi chamada de Kahal Adat Yeshurun, ou Sociedade Israelita Religiosa (IRG), em sua nomenclatura alemã.
O Rabino Hirsch andava cada vez mais desgostoso com as dificuldades que enfrentava para implementar seus projetos na Morávia. Assim, embora estivesse empregado em uma comunidade muito maior, o Rabino decide aceitar o convite da seção ortodoxa da comunidade de Frankfurt para lá iniciar um novo período em sua carreira. Não foram poucos os que estranharam sua decisão de abdicar de um rabinato tão importante em favor de uma comunidade pequena, com cerca de 100 famílias, recém- fundada. No entanto, sua decisão de se mudar para Frankfurt foi muito acertada. Afinal, tratava-se de uma cidade pujante e um dos maiores centros de abertura e liberalismo na Alemanha, sendo um terreno fértil onde o Rabino Hirsch pudesse colocar seus ideais à prova nos diferentes aspectos da vida comunitária.
A sinagoga Adat Yeshurun foi concebida e arquitetada de acordo com os padrões modernos; a escola comunitária oferecia educação laica e religiosa e a shechitá (abate ritual) de animais passou a obedecer a todas as regras sanitárias. Ao lado de outras iniciativas, um periódico de nome Yeshurun foi fundado em 1852 com o intuito de difundir e aprofundar os ideais propostos pelo Rabino Hirsch.
Aproveitando-se da liberdade que obteve em Frankfurt, o Rabino Hirsch desafiou algumas convenções vigentes e promoveu mudanças significativas em sua comunidade. Entre outras, a instituição da realização de prédicas semanais – até então, os rabinos ortodoxos apenas discursavam no Shabat anterior a Pessach, e, em alguns casos, também no Shabat anterior ao Yom Kipur. Igualmente, sua sinagoga contava com um coral masculino que acompanhava as orações, sempre oficiadas por chazanim (cantores litúrgicos) profissionais que apenas podiam ser corrigidos pelo Rabino ou por quem fosse indicado previamente para essa função. A participação de crianças pequenas era vedada uma vez que se buscava um ambiente de silêncio e serenidade.
Nem todos os ortodoxos de Frankfurt aderiram à Adat Yeshurun. Alguns criticavam certas deliberações do Rabino Hirsch, negando-se a aceitar a instituição do costume das Hakafot em Simchat Torá (quando os congregantes circundam o palanque central da sinagoga, a Bimá, com os rolos da Torá) e o ofício da reza em prol da realeza, que jamais fora recitada pelos judeus de Frankfurt em razão de suas preferências políticas republicanas e liberais.
De toda forma, esses foram casos menores e pontuais que não refletiam o consenso estabelecido entre a Ortodoxia. O Rabino Hirsch foi muito feliz ao adotar medidas que sintetizavam os valores do Iluminismo e da tradição judaica, vindo a ser uma figura decisiva para a Ortodoxia judaica em toda a Alemanha. No decorrer dos anos, o Rabino Hirsch teve a oportunidade de cooperar com o Judaísmo ortodoxo de outros países ao atender o chamado do Rabino Itzchak Elchanan Spektor. Além disso, suas obras sobre a Torá foram recomendadas calorosamente por líderes incontestes da Ortodoxia, como o Rabino Chaim Ozer Grudinski e Iaacov Israel Kanievski, o Steipler, de abençoadas memórias.
O sucesso obtido pelo Rabino Hirsch em Frankfurt ainda influenciaria outras comunidades na Alemanha que aderiram à Neo-Ortodoxia, como a comunidade de Berlim, liderada pelo Rabino Doutor Azriel Hildesheimer (1820-1899), que se somou ao Rabino Hirsch como um dos principais líderes do movimento do Torá im Derech Eretz.
A produção intelectual do Rabino Hirsch não cessou em Frankfurt. A publicação de sua tradução da Torá ao alemão com seus comentários, as intepretações do Sidur e dos Salmos, entre outros artigos e missivas, ocorreram durante a longa estada do Rabino Hirsch naquela cidade.
Escola Real de Frankfurt
Uma das ações mais importantes do Rabino Hirsch em Frankfurt, e que certamente contribuiu para o sucesso de toda a sua empreitada, foi a fundação da Escola Real da União Judaica Religiosa, no ano de 1853. Conta-se que assim que chegou a Frankfurt, os diretores externaram seu interesse em construir uma sinagoga grande e bonita, ao que o Rabino Hirsch lhes respondeu: “Primeiro vamos fundar uma escola onde educaremos nossos jovens em Torá e nos mandamentos, e apenas então teremos a necessidade de contar com uma sinagoga a ser frequentada por eles”.
O Rabino Hirsch atuou pessoalmente na direção da escola, vindo a colher os frutos de seus esforços ao ver o crescimento de sua comunidade e de sua escola a cada ano que se passava. Toda uma geração foi educada pela Escola Real de Frankfurt segundo os moldes de Torá im Derech Eretz em que os estudos laicos e religiosos mantinham um intercâmbio enriquecedor, lado a lado. A escola era voltada a crianças de seis a 15 anos, tinha classes separadas para meninos e meninas, uma ampla grade de matérias ensinada em hebraico e alemão e uma carga horária que, nas classes mais velhas, chegava a 10 horas por dia, cinco vezes por semana.
Ainda que pudesse ter-se inspirado no modelo pensado por seu avô ao fundar sua escola em Frankfurt, o Rabino Hirsch havia desenvolvido um projeto educacional próprio, cujos fundamentos teóricos foram expostos no livro “Chorev”, de 1837, e em diversos artigos no periódico Yeshurun.
Poucos rabinos e pensadores em toda a história de nosso povo entenderam a educação em sua complexidade como o Rabino Hirsch, que, a despeito de toda a sua importância, enxergava a si mesmo como um educador. Suas obras estão repletas de ensinamentos e orientações a pais e professores sobre a melhor forma de educar filhos e alunos. Para citar um dos exemplos do Chumash Bereshit, o Rabino Hirsch lê a passagem que relata as diferenças entre Jacob e Esaú como uma advertência aos pais que não dão a devida atenção às particularidades de cada um de seus filhos, deixando de educá-los de acordo com suas características pessoais. Toda a história de Esaú, diz o Rabino Hirsch, poderia ter sido diferente caso seus pais tivessem atentado ao fato de que suas necessidades eram muito distintas daquelas de Jacob, seu irmão gêmeo.
Ao final do ano letivo, a Escola Real de Frankfurt promovia uma aula pública em que pais e professores estimulavam os alunos a demonstrar seus conhecimentos sobre as matérias estudadas. A aula-prova era seguida de uma refeição festiva para todos os envolvidos, e o convite ao evento era acompanhado de um artigo da lavra do Rabino Hirsch sobre algum aspecto da educação, notadamente sobre as funções a serem exercidas pelos pais. Vários desses artigos foram traduzidos do alemão ao hebraico e reunidos no segundo volume da coletânea Yessodot Hachinuch (Fundamentos da Educação), publicada em 1968.
Aprovação da Lei da Secessão
Desde a sua fundação, a Adat Yeshurun mantinha uma relação conflituosa com a comunidade oficial de Frankfurt, que era gerida por dirigentes de orientação reformista. Com os desentendimentos cada vez mais acentuados, a filiação compulsória dos ortodoxos à comunidade oficial se tornou uma questão que precisava ser resolvida com alguma urgência.
Assim, ao lado de um parlamentar judeu de nome Isaac Lasker, o Rabino Hirsch encabeçou uma campanha pela aprovação da Lei da Secessão que permitiria a cada judeu se desligar unilateralmente dos quadros da comunidade oficial. Com a aprovação da lei, em 1876, o Rabino Hirsch exigiu que os membros de sua comunidade se desfiliassem formalmente, por entender que a permanência na comunidade representava uma legitimação moral e ideológica que não poderia ser concedida.
No entanto, houve uma divisão entre as lideranças ortodoxas sobre a vantagem e a obrigação de abrir tal dissidência, e apenas um quarto da comunidade seguiu a orientação do Rabino Hirsch a esse respeito. Aquele que foi o início de um dos embates mais longos e menos exitosos da carreira do Rabino Hirsch acabou tornando-se um marco temporal que dividiu em duas fases os 37 anos de seu rabinato em Frankfurt: os 25 anos de uma liderança consensual, entre 1851 e 1876, e os 12 anos em que a comunidade se cindiu, de 1876 a 1888.
Além dos contornos belicosos que envolveram essa disputa, sua história nos expõe um traço importante da ideologia do Torá im Derech Eretz. Mais que uma mera síntese entre os valores religiosos e modernos, a Neo-Ortodoxia do Rabino Hirsch via a Modernidade como um meio de ampliar e aprofundar o Judaísmo, e não como uma necessidade de fazer alguma concessão acerca do que fosse essencial à vida religiosa.
No ensaio “O que é contemporâneo” de 2009, o filósofo italiano Giorgio Agamben observa que o verdadeiro filho de seu tempo não é aquele que adere à sua época sem nenhum atrito, sentindo-se em harmonia total com seus elementos. Antes, o contemporâneo é aquele que consegue estabelecer uma relação ambígua de proximidade e distância em relação a seu tempo. Tal qual o nostálgico, que está alheio a seu tempo e não consegue vê-lo, quem coincide muito plenamente com os valores em voga não enxerga seu tempo por fora e nem é capaz de manter sobre ele um olhar fixo e atento. Ser contemporâneo, diz o filósofo, é ser capaz de captar a escuridão do presente, evitando ser ofuscado por suas luzes, para assim conseguir retornar ao passado, questionando-o quanto às suas consequências e vicissitudes no presente.
Esta descrição retrata bem a relação do Rabino Hirsch com o zeitgeist (espírito do tempo) em que viveu. Pode-se dizer com alguma tranquilidade que, apesar de todos os embates em que esteve envolvido, o Rabino Hirsch foi o representante mais radical que a Modernidade jamais teve dentro do Judaísmo ortodoxo. Vivendo em um período histórico em que todos falavam a linguagem das ideologias que abarcavam a tudo e a todos, o Rabino Hirsch formulou uma ideologia judaica que foi aplicada, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, pela maior parte do Judaísmo ortodoxo, desde então até os nossos dias.
Chegando ao final de sua trajetória, notamos que a história de vida do Rabino Hirsch se somou ao legado espiritual de suas obras como um exemplo de inspiração especialmente caro a quem coabita múltiplos mundos e se apropria de diferentes saberes para estar à altura e fazer jus ao desafio colocado a cada um de nós: ser humano e ser judeu, na acepção mais plena de ambos os termos.
BIBLIOGRAFIA
Del, Giglio, Prof. Dr. Auro, Rabino Hirsch e seu Tempo, em “Dezenove Cartas sobre Judaísmo”, Editora Sêfer, São Paulo, 2002
Paves, Rabino Saul, O Rabino Hirsch e o Desafio da Modernidade, Editora Sêfer, São Paulo, 2019
Elon, Amos, The Pity of It All: A Portrait of Jews in Germany, 1743-1933, Metropolitan Books, Nova York, 2002.
O texto acima é uma adaptação da seção ‘A vida e a Obra’ da Introdução do Chumash Torá Interpretada de autoria do Rabino Hirsch, a ser lançado brevemente pela Editora Sêfer.
Iossef Katri, diplomado Rabino, é escritor e tradutor