Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz zt”l (1937-2020) foi um professor, filósofo, crítico social e autor prolífico. Ele foi a única pessoa na História a concluir uma tradução completa e um comentário sobre todo o Talmud Bavli e o Tanach.
O Rabino Adin Even-Israel Steinsaltz nasceu em 11 de julho de 1937 em Jerusalém. Seus pais, Avraham Moshe Steinsaltz e Rivkah Leah Krokovitz, eram imigrantes do Leste europeu que se identificavam como comunistas. Avraham Steinsaltz, bisneto do primeiro Rebe de Slonim, era um fiel comunista que lutou na Espanha, ao lado das Brigadas Internacionais, na Guerra Civil Espanhola contra as forças fascistas do General Francisco Franco. Era também membro do Le’hi, acrônimo em hebraico para Lohamei Herut Israel, Lutadores pela Liberdade de Israel (o Grupo Stern) – organização paramilitar sionista, atuante de 1940-1948, que lutava para expulsar as forças de ocupação inglesas da Terra de Israel.
Os intelectuais mais venerados na família Steinsaltz não eram rabinos, mas Marx, Lenin e Freud. Mas, apesar de sua ideologia, Avraham Steinsaltz, nacionalista judeu imensamente orgulhoso de seu judaísmo, contratou um professor de Talmud para seu filho Adin, quando este tinha apenas 10 anos de idade. E disse ao filho: “Não me importo se você for um Apikores (um herege), mas filho meu não será um Am Ha’aretz (um ignorante em questões da Torá)”.
É assombroso que um marxista fervoroso como Avraham Steinsaltz pudesse considerar os estudos de Torá de importância capital, mas aquilo deixou uma marca profunda em seu filho. De fato, o Rabino Adin Steinsaltz creditava a seu pai o fato de lhe ter indicado o caminho para a obra de sua vida. Foi aquela exposição ao estudo da Torá, juntamente com o que o Rabino Steinsaltz descreveu como seu ceticismo inato, o que o levou à religião. “Por natureza, sou um cético”, declarou em uma entrevista ao The New York Times, há uma década, “e as pessoas muito céticas começam a questionar o ateísmo”. Em outra ocasião, ele disse ao mesmo jornal americano: “Cheguei ao ponto em que o mundo não conseguia conter minha busca pela verdade”.
Conhecido ao longo de sua vida por sua incontida curiosidade intelectual, o Rabino Adin Steinsaltz estudou Matemática, Física e Química na Universidade Hebraica de Jerusalém, enquanto completava seus estudos rabínicos na Yeshivat Tomchei Temimim – do movimento Chabad-Lubavitch – na cidade israelense de Lod. Após completar os estudos, passou a fundar várias instituições educacionais. Aos 24 anos, tornou-se o mais jovem diretor de escola em Israel.
Em 1965, Rabi Adin Steinsaltz fundou o Instituto Israelense de Publicações Talmúdicas, dando início ao monumental trabalho de sua vida: um projeto iniciado quando ele tinha apenas 27 anos e que trouxe à tona seu conhecimento enciclopédico sobre um texto enciclopédico – o Talmud. Como, à época, ele era diretor de escolas, ele chamava a tradução e elucidação do Talmud de “meu hobby”, mas esse “hobby” se tornaria o coroamento de sua realização intelectual. Ele passou 45 anos escrevendo uma tradução para o hebraico moderno e comentários sobre todo o Talmud Babilônico, o Talmud Bavli, que é escrito no hebraico do período Mishnaico e no aramaico Babilônico, sem pontuação e sem vogais. A tradução e comentários do Rabino Steinsaltz tornaram o Talmud acessível a milhões de pessoas. Esse projeto épico foi completado em 2010, após um longo trabalho de 16 horas diárias, no mínimo.
O trabalho do Rabi Steinsaltz foi bem além de traduzir, pontuar e inserir as vogais nas 2.711 páginas duplas do Talmud Bavli. Ele também forneceu seus próprios comentários, elucidando cada frase do texto labiríntico e enigmático. Sua obra inclui biografias dos Sábios talmúdicos e explicações sobre expressões e conceitos do Talmud.
O Rabi Steinsaltz declarou que sua tradução e comentário dessa obra destinavam-se a atender até mesmo os iniciantes, que tivessem um mínimo de conhecimento. Esse projeto, que levou mais de quatro décadas para ser completado, foi um feito revolucionário – um divisor de águas na História Judaica que causou grande comoção. O ex- Rabino-chefe sefardita Shlomo Amar louvou sua capacidade de “expandir as fronteiras da Santidade” de modo a abarcar aqueles que não são versados nos estudos do Talmud.
Durante séculos, o estudo do Talmud era restrito às ieshivot. O grande feito do Rabi Steinsaltz foi estendê-lo para além de sua esfera relativamente seleta e, com uma tradução e comentários no hebraico moderno, permitir que os judeus que nunca haviam frequentado uma ieshivá pudessem estudá-lo e entendê-lo. Como muitos judeus que vivem na Diáspora não dominam o hebraico, a Edição Steinsaltz do Talmud foi totalmente traduzida ao inglês. Alguns volumes também foram traduzidos a outros idiomas, entre os quais francês, espanhol e russo. Em 1996 foi publicado o primeiro volume em russo, constituindo a primeira edição russa do Talmud permitida na Rússia desde a Revolução Bolchevique de 1917. À época, a notícia mereceu destaque no The Washington Post.
Essa realização épica do Rabino Steinsaltz desvendou para milhões de pessoas um texto judaico fundamental, mas quase sempre impenetrável, de dois mil anos de idade. Em 2010, ao terminar o último dos 45 volumes de sua tradução e comentários do Talmud, o The New York Times publicou que três milhões de cópias já tinham sido vendidas, mundo afora.
“O Talmud é o pilar central da sabedoria judaica, muito importante para a total compreensão do significado do Judaísmo”, disse certa vez Rabi Steinsaltz à Jewish Telegraphic Agency. “Mas é um livro que os judeus não conseguem entender. Trata-se de uma situação perigosa, como uma amnésia coletiva. Tentei abrir caminhos pelos quais eles pudessem penetrar no Talmud sem encontrar barreiras intransponíveis. Trata-se de algo que sempre será um desafio, mas tentei diminuir esses desafios ao máximo”.
Em 2012, o Rabino Steinsaltz disse ao The Times of Israel que “O Talmud é o livro da sanidade mental. E quando você o estuda, ele lhe dá uma certa medida de sanidade”. Afinal, ele explicava, essa obra consiste principalmente de insistentes discussões lógicas e racionais sobre questões legais, que visam a chegar à verdade factual. O que poderia ser mais são do que isso? A propósito, o Rabino Steinsaltz, que nasceu e viveu em Israel durante praticamente toda a sua vida, dizia o seguinte sobre o estudo da Torá nas escolas israelenses: “Foi um grande erro basear tanto a educação em Israel no Tanach (Torá, Profetas e Escritos). Pois o Tanach foi escrito por profetas. E quem o lê, de certa forma se torna, em sua mente, um pequeno profeta. E é assim que os israelenses falam um com o outro – eles não conversam; todos se autoconsideram donos de um conhecimento total e ilimitado. O estudo do Talmud mudaria a forma de pensar israelense, pois essa obra versa sobre e se conecta com a dialética1”.
Sua tradução e comentários do Talmud fizeram com que o Rabi Steinsaltz fosse comparado a Rashi – o Sábio do século 11, nascido na França, que escreveu o comentário clássico sobre o Tanach e quase todo o Talmud Babilônico. A revista Time saudou Rabi Steinsaltz como a once-in-a-millennium scholar: um erudito como ele vem a este mundo uma vez em cada mil anos. Já a revista Newsweek assim se manifestou: “A tradição judaica está repleta de histórias de rabinos excepcionais. Mas certamente nenhum dos que hoje estão vivos pode ser comparado em talento e influência a Adin Steinsaltz, cujos talentos extraordinários como estudioso, mestre, cientista, escritor, místico e crítico social atraíram discípulos de todas as facções da sociedade”.
Além de, como vimos, ter traduzido e comentado linha por linha do Talmud Babilônico inteiro, Rabi Steinsaltz também escreveu um comentário sobre todo o Tanach (que também foi todo traduzido ao inglês), sobre a Mishná – o núcleo da Torá Oral, sobre o Mishnê Torá – o Código da Lei Judaica, de Maimônides, e também o Tanya – trabalho central sobre a Cabalá, de autoria do Rabi Shneur Zalman de Liadi, fundador e primeiro Rebe da dinastia Chabad-Lubavitch. Além de todas essas obras magistrais, o Rabino Steinsaltz escreveu 60 livros, entre os quais um volume considerado referência no Misticismo Judaico, The Thirteen Petalled Rose, um clássico que foi traduzido em oito idiomas, inclusive o português, com o título A Rosa de Treze Pétalas: Introdução à Cabala e a Fé Judaica (Editora Maayanot). Ele também escreveu centenas de artigos sobre uma variedade de assuntos judaicos.
Tendo fundado uma rede de ieshivot em Israel e na antiga União Soviética, o Rabino Steinsaltz foi muito atuante no trabalho com os judeus na Cortina de Ferro. Em 1989, fundou uma ieshivá em Moscou, que foi a primeira instituição judaica sancionada pelo governo russo em 60 anos.
Entre os inúmeros títulos honorários, prêmios e homenagens que recebeu, inclui-se o renomado Prêmio Israel, em 1988 – a mais alta honraria do país.
O Rabino Steinsaltz e o Lubavitcher Rebe
Sem sombra de dúvida, as épicas realizações do Rabino Adin Steinsaltz foram o produto de sua mente privilegiada, seus dotes intelectuais e espirituais e sua dedicação incansável. Ele era conhecido por seu amor a D’us, sua reverência à Torá, sua proeza intelectual, sua voraz sede de conhecimento e significado, sua sabedoria profunda, sua determinação em terminar seus projetos e ignorar seus críticos, e sobretudo, sua humildade e humanidade que fizeram com que fosse apreciado e amado por tantas pessoas. No entanto, há algo de muito intrigante na trajetória de sua vida: como o filho de comunistas ardorosos – que admitia ter estudado as obras de Marx e Lenin antes mesmo de ler a Torá – podia ter se tornado o erudito sobre o Talmud mais respeitado e influente de sua geração? Quem teria capturado o coração e a mente desse jovem prodígio e ajudado a acender sua alma?
Muito crédito merece seu pai, Avraham Steinsaltz – que, apesar de comunista ferrenho, insistia em que nenhum filho seu fosse ignorante em Torá. O Rabino Steinsaltz reconhecia a importância de uma série de figuras rabínicas na sua juventude – começando certamente pelo professor de Talmud contratado por seu pai para lhe ensinar, aos 10 anos. Mas a influência suprema em sua vida e que ofuscou todas as demais foi a do Lubavitcher Rebe, e a tal ponto que na pedra tumular do Rabino Steinsaltz, o epíteto que mais se destaca foi que ele era “devotado, de corpo e alma, ao Lubavitcher Rebe”.
A trajetória a partir de uma casa não religiosa e marxista até se tornar um dos mais importantes estudiosos e comentaristas da Torá, de todos os tempos – que abriu para milhões de pessoas o portão para o estudo do Talmud e de outros textos judaicos fundamentais – foi em grande parte impulsionada pelo Rebe e seus emissários – rabinos do movimento Chabad-Lubavitch – que, nas palavras do próprio Rabino Steinsaltz, “esbanjaram amor, tempo e paciência em um certo rapaz”.
O Rebe de Lubavitch foi o mestre, guia e a fonte de inspiração de Rabi Steinsaltz – e este, por sua vez, foi seguidor dedicado do Rebe, de quem recebeu uma atenção e uma proximidade excepcionais, e que lhe retribuiu por meio de suas conquistas épicas. De inúmeras formas, pode-se dizer que Rabi Steinsaltz se tornou um desdobramento do Rebe. Ele teve um papel central na visão do Rebe e em seu objetivo de atingir todos os judeus e os trazer para mais perto do Judaísmo.
O significado da obra magistral do Rabino Steinsaltz
O Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz ostenta a distinção especial de ter sido a única pessoa na História a escrever um comentário tanto sobre todo o Tanach como sobre todo o Talmud Bavli. Ele foi um dos mais – senão o mais – prolífico comentarista da Torá de todos os tempos. Os inúmeros e belos artigos publicados após seu falecimento nos veículos de comunicação mais destacados, como o The New York Times e o The Washington Post, louvam suas obras e conquistas, em particular o fato de ele ter tornado o estudo do Talmud acessível a milhões de pessoas. Mas há algo fascinante e fundamental sobre a vida do Rabino Steinsaltz que os autores desses emocionantes obituários não cogitaram: como foi possível que ele tivesse escrito tamanha quantidade de trabalhos? Ainda que o Rabino Steinsaltz trabalhasse 16 horas ou mais por dia, e que tivesse alunos seus o auxiliando, há algo muito surpreendente – talvez sobrenatural, mesmo – no fato de ele ter conseguido escrever tanto.
Certa vez, o Rabi Steinsaltz disse: “A maioria das pessoas pensam que todos dispõem de 24 horas por dia, mas isso talvez não seja verdade. Algumas pessoas, como o Rambam (Maimônides), pareciam ter mais de 24 horas em seu dia”. E, ao que tudo indica, o Rabi Steinsaltz era uma dessas pessoas, pois não é possível explicar como ele conseguiu produzir tanto quanto ele o fez em vida. E nisso reside uma das várias semelhanças entre o Rabi Steinsaltz e Rashi – o maior de todos os comentaristas da Torá. Um dos aspectos sobrenaturais da vida de Rashi é que é impossível que um ser humano tenha escrito tanto quanto ele conseguiu, ao longo de sua vida. No entanto, não há dúvidas de que foi ele mesmo quem escreveu tudo o que leva seu nome. O mesmo pode ser dito acerca do Rabino Adin Steinsaltz.
Ainda que ele não tivesse feito nada mais além de escrever, na vida, teria sido impossível produzir tamanha quantidade de textos como ele o fez, especialmente se considerarmos a profundidade e complexidade de todas as suas obras. O mais espantoso é que ele fez muito mais do que escrever. Era pai, era esposo; era rabino, professor e conselheiro. Era um homem profundamente religioso que se imergia em orações e amava recitar os Salmos. Tendo um conhecimento enciclopédico sobre a Torá – e sendo um de seus mais prolíficos disseminadores – ele estudou a fundo todos os principais trabalhos sobre a Torá. Um de seus filhos, o Rabino Meni Even-Israel Steinsaltz, revelou recentemente que seu pai estudava, todo ano, tanto o Talmud Bavli como o Talmud Yerushalmi na sua totalidade. Mesmo para um Mestre do Talmud, como ele era, isso constitui uma desmedida quantidade de estudo da Torá, bem mais do que conseguem os grandes eruditos que estudam Torá o dia inteiro. Ainda mais marcante é o fato de que ele não estudava apenas os textos religiosos judaicos. Rabi Steinsaltz era uma verdadeira enciclopédia – cientista e matemático com profundo conhecimento sobre uma enormidade de áreas. Ele lia e apreciava a boa literatura laica e até se permitia desfrutar das histórias de detetives e de ficção cientifica. Além de tudo o que estudou e escreveu, o Rabino Steinsaltz trabalhou com todas as forças para disseminar o Judaísmo. Fundou e dirigiu escolas, ieshivot e centros educacionais, dando aulas, palestras e entrevistas em Israel e na Diáspora. Não há explicação racional para se entender como ele encontrou tempo para produzir suas obras épicas, especialmente se considerarmos o quanto ele estudava e trabalhava. Mas, ainda assim, da mesma forma como quando nos referimos a Rashi, não há dúvida de que o Rabino Steinsaltz escreveu tudo o que foi publicado em seu nome. Talvez ele não o admitisse, mas havia um toque de sobrenatural na história de sua vida. Ao contrário do Lubavitcher Rebe, que foi um quase-profeta e fazedor de milagres, não foram atribuídos poderes sobrenaturais ao Rabi Steinsaltz. Ele é famoso por suas qualidades de Sábio e gênio – um intelectual extraordinário, erudito, cientista, professor, crítico social, escritor e comentarista da Torá. Contudo, quem examina sua vida e tudo o que ele produziu, invariavelmente se pergunta se ele, a exemplo de nossos mestres Rashi, Rambam e o Rebe, também transcendia os limites naturais de nosso mundo.
Mas a singularidade da obra do Rabi Steinsaltz não reside apenas na quantidade de trabalhos dele, mas em seus efeitos espirituais. Para se compreender a magnitude de seu legado, é necessário entender que o estudo da Torá é incomparável ao de qualquer outro campo de sabedoria e conhecimento. Como ensina a Cabalá, a Torá é a interface que permite que nós, seres humanos finitos, possamos interagir com D’us Infinito. É por meio do estudo da Torá que o homem e D’us se comunicam. Portanto, ao traduzir e escrever comentários sobre todo o Talmud, o Rabino Steinsaltz foi muito além de desvendar o estudo desse trabalho enciclopédico, enigmático e complexo, fundamental para que se entenda realmente o Judaísmo. Sendo assim, Rabi Steinsaltz também construiu pontes sobrenaturais que levam a D’us. Ao democratizar o estudo do Talmud, ele abriu novos canais de comunicação entre o ser humano e o Santo, Abençoado o Seu Nome. Seu filho, o Rabino Meni Even-Israel Steinsaltz, contou que seu pai dizia que “a Torá é o registro de D’us falando com o ser humano. No entanto, o Talmud registra o ser humano falando com D’us”. E seu pai disse certa vez: “Essa obra é essencial para nossa existência”.
Além de ter sido o estudioso do Talmud mais influente de nossa geração, o Rabino Adin Steinsaltz também foi um místico e um mestre da Cabalá. Sendo assim, não surpreende o fato de ele ter decidido traduzir e escrever comentários sobre os textos sagrados fundamentais do Judaísmo: o Tanach, a Mishná, o Talmud Bavli e obras Cabalísticas como o Tanya. Ele dedicou sua vida a tornar acessíveis esses textos magistrais ao máximo possível de judeus, pois, como ensina a Cabalá, o estudo dessas obras é o caminho para os Quatro Mundos que constituem a Existência: Assiyá (o Mundo da Ação), Yetzirá (o Mundo da Formação), Beri’á (o Mundo da Criação) e Atzilut (o Mundo da Proximidade Divina). O estudo do Tanach é associado ao mundo de Assiyá – nosso mundo físico. O estudo da Mishná é a escada para Yetzirá – o mundo dos anjos. O estudo do Talmud (Guemará) é a ponte para Beri’á, que é o mundo dos anjos mais elevados. Finalmente, o estudo dos trabalhos Cabalísticos, como o Tanya, forja uma conexão com o mais elevado dos Quatro Mundos – Atzilut, onde a Luz Divina irradia e se une ao Santo, Bendito é Ele. As traduções e comentários do Rabi Steinsaltz sobre o Tanach, Mishná, Talmud Bavli e Tanya possibilitam a praticamente qualquer um de nós, judeus, alcançar os Quatro Mundos da Existência.
Mas, apesar dessas contribuições singulares ao Povo Judeu e ao universo do estudo da Torá, Rabi Steinsaltz – como muitos dos gigantes em Torá do passado, como o Rambam e o Ramchal – teve também sua parcela de críticos e oponentes. Eles o criticavam por ter facilitado o estudo do Talmud. “Ler o Talmud Steinsaltz em inglês é como tentar entender um quebra-cabeças depois de o mesmo ter sido desvendado”, escreveu um de seus críticos no The Nation,revista prestigiosa norte-americana. Mas, algo que aparentemente esse crítico e outros do trabalho do Rabi Steinsaltz não entenderam é que o Talmud não é um tipo de quebra-cabeças complicado nem um desafio para o intelecto. D’us não deu Sua Torá ao Povo de Israel para que os judeus pudessem usá-la para aguçar sua mente e sair vencendo uma infinidade de Prêmios Nobel. Na verdade, um dos pontos mais mal compreendidos sobre o estudo da Torá é que seu propósito não é a realização intelectual. O que verdadeiramente importa é a pureza do relacionamento com o texto e não o grau de sua compreensão intelectual. Utilizá-lo para aprimorar ou mesmo provar suas capacidades intelectuais é um uso indevido do Talmud e talvez até uma blasfêmia. O Talmud é um canal para a Luz Divina – um trabalho de santidade que constitui um meio de comunicação entre o homem e D’us – e é apenas com esse espírito que deve ser estudado.
Foi justamente a ciência de que o estudo da Torá forja a conexão mais íntima possível entre o homem e D’us o que levou Rabi Steinsaltz a realizar algo que não tinha sido feito em quase um milênio. Há praticamente mil anos, Rashi escreveu o primeiro comentário abrangente sobre o Talmud Bavli. Aclamado por sua capacidade de apresentar o significado básico do texto de forma concisa e lúcida, Rashi atraiu tanto eruditos quanto iniciantes e seus trabalhos permanecem sendo centrais ao estudo do Talmud. Seria extremamente difícil entender o Talmud não fossem os esclarecimentos de Rashi.
Mas, apesar de seus comentários fundamentais e abrangentes, o Talmud continuou sendo um livro fechado para a maioria dos judeus, que não conseguiam ler e entender sua linguagem – em hebraico do período Mishnaico e aramaico do período Babilônico, sem vogais e sem pontuações. Foi o Rabino Steinsaltz quem deu continuidade ao trabalho de Rashi, democratizando ainda mais amplamente o Talmud – ele o tornou acessível mesmo àqueles que não o podem estudar em seu idioma original.
Há ainda outro paralelo marcante entre Rabi Steinsaltz e Rashi. O Rashbam, um dos netos de Rashi, revelou que seu avô lhe havia dito que se ele tivesse que reescrever seu comentário sobre o Chumash (os Cinco Livros da Torá), ele o teria feito de forma mais simples, mais literal. Sem dúvida alguma, Rashi é o pai de todos os comentaristas da Torá e seu trabalho sobre o Chumash é a obra clássica, escrita por ele com inspiração e assistência Divinas: cada uma de suas palavras transborda de santidade e sabedoria. Mas, por outro lado, de maneira oposta a seu comentário sobre o Talmud, seu comentário sobre o Chumash é complexo, apesar de que ele tivesse afirmado que tinha sido escrito para que uma criança de cinco anos pudesse entendê-lo. Na verdade, mesmo aquelas partes que parecem ser simples são tão profundas que há mais de 300 comentários que analisam sua escolha de linguagem e suas citações, de autoria de alguns dos maiores nomes na literatura rabínica, inclusive o Maharal de Praga. Por outro lado, o comentário do Rabino Steinsaltz sobre o Chumash é uma explanação clara e objetiva do texto da Torá, adequada para ser ensinada a uma criança de cinco anos. Talvez seja semelhante ao que Rashi teria feito se ele tivesse a oportunidade de reescrever um comentário mais literal sobre o Chumash.
Rabi Steinsaltz tem sido aclamado como “o Rashi desta geração”. Mas esse título é uma meia-verdade, um eufemismo, pois ninguém nas gerações passadas fez o que Rashi ou Rabi Steinsaltz fizeram. Ninguém, na História Judaica, tornou o estudo da Torá e do Talmud mais acessível aos judeus do que esses dois Sábios. De fato, há algo estranhamente semelhante na vida de Rashi e do Rabi Steinsaltz. Ao que parece, o Rabino Adin Steinsaltz veio a este mundo para terminar o que Rashi não pôde concluir em vida.
O Legado do Rabi Adin Steinsaltz
Na sexta-feira, 17 do mês de Menachem Av de 5780, 7 de agosto de 2020, o Mestre do Universo determinou que o Rabi Adin Steinsaltz completara sua missão neste mundo. E o Rabi Steinsaltz ascendeu ao Alto aos 83 anos de idade. Muito justo que sua partida deste mundo tenha sido de Jerusalém – a cidade onde ele veio ao mundo – a mais sagrada das cidades, capital eterna e espiritual do Povo Judeu. O Rabi Steinsaltz, que faleceu em virtude de uma pneumonia aguda, havia lutado heroicamente contra várias enfermidades ao longo dos anos. Em 2016, ele, um verdadeiro amante das palavras, que pontuou os dois milhões e meio de palavras em hebraico e aramaico do Talmud Babilônico, e que escreveu mais palavras sobre a Torá do que é humanamente possível, perdeu sua capacidade de falar após sofrer um derrame. Apesar de não conseguir falar, o Rabino Steinsaltz continuou a trabalhar e editar seu trabalho anterior, assinalando a seu filho, silenciosamente, o que era para ser editado.
É impressionante – e certamente não uma coincidência – o fato de que o Rabi Adin Steinsaltz tenha subido aos Céus na semana em que se leu a porção Ekev da Torá, sobre a qual Rashi escreve: “... o falecimento dos Justos é difícil perante o Eterno, Abençoado o Seu Nome, assim como o foi o dia em que as Tábuas foram quebradas” (Rashi ao comentar Deuteronômio 10:6-7). Tal analogia é particularmente aplicável ao Rabi Steinsaltz, que foi a personificação da Torá e um de seus maiores disseminadores em toda a nossa história. O dia em que ele ascendeu ao lugar mais alto das Alturas foi o dia em que nosso mundo perdeu um luminar que brilhava mais intensamente do que o Sol. Podemos aplicar a ele as palavras que o Talmud usa para falar de Rabi Akiva – o maior Mestre em Torá de todos os tempos: seu nome reverbera de um canto a outro do Universo.
A obra magistral e o legado do Rabi Steinsaltz transcendem o tempo e o espaço – são imensuráveis e eternos. Sozinho ele disseminou a Palavra de D’us a milhões de pessoas, possibilitando que eles entrassem em comunhão com o Eterno ao imergirem no estudo de Sua Torá. E graças a ele, o Talmud deixou de ser um livro fechado. O Talmud Bavli é atualmente estudado não apenas nas sinagogas e ieshivot, mas nos metrôs de Nova York e nos cafés de Tel Aviv. Hoje o Talmud é estudado não apenas pelos rabinos e alunos das ieshivot, mas até mesmo por judeus iniciantes no estudo do Judaísmo. Graças ao Rabi Steinsaltz, a luz da Torá fica cada dia mais forte, brilhando intensamente em inúmeros lares judeus mundo afora. Como seu Mestre, o Lubavitcher Rebe, o Rabino Adin Even-Israel Steinsaltz conseguiu realizar uma tarefa quase impossível – reverter a perda de conhecimento sobre a Torá decorrente do Holocausto, do Socialismo soviético e da enorme assimilação nos Estados Unidos.
Nossa geração teve o privilégio de ter em seu meio o Rabino Steinsaltz. Um comentarista da Torá prolífico como ele vem a este mundo uma vez em cada mil anos. Ele era um verdadeiro homem de D’us e a personificação da santidade, da bondade e da sabedoria. Aqueles de nós que fomos privilegiados de conhecê-lo sabemos quão grande era a bênção de apenas ficar em sua presença. Conhecê-lo pessoalmente foi uma experiência singular e inesquecível.
Gostaríamos de informar a nossos leitores que a maioria dos artigos religiosos que escrevemos na Morashá tomaram por base os escritos e ensinamentos do Rabino Steinsaltz. É raro não ver seu nome mencionado na bibliografia de qualquer dos artigos religiosos publicados nesta Revista ao longo dos anos. Ele e o Mestre que compartilhamos com ele – o Lubavitcher Rebe – são nossas principais fontes de sabedoria, conhecimento e inspiração.
Agradecemos ao Todo Poderoso por nos ter dado o Rabi Adin Even-Israel Steinsaltz, filho de Avraham Moshe e Rivka Leah. Agradecemos ao Rabi Steinsaltz por ter dedicado sua vida ao Povo Judeu – por nos ter dado, generosamente, o maior de todos os presentes: a dádiva da Torá – fonte de todas as bênçãos e bondade, a ponte até D’us, Abençoado o Seu Nome, e o portão para a Eternidade.
Zecher Tzadik Livrachá – que a memória do Tzadik seja uma bênção.
1Dialética é o conflito originado entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos.