Iniciativa diplomática no Oriente Médio mais impactante em décadas, os Acordos de Abraão, assinados entre Israel e quatro países árabes (Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão) apresentam significativos resultados dois anos após sua assinatura. Os tratados pavimentaram o caminho para laços comerciais em franca expansão, cooperação em áreas científicas e até militares, implementação de rotas turísticas e o florescimento de vida judaica, por exemplo, em Dubai e Abu Dhabi. 

Em 14 de setembro, o Hilton Abu Dhabi Yas Island recebeu mais de 1,5 mil convidados para o casamento de Levi Duchman e Lea Hadad. A festa virou reportagem do The New York Times, e um vídeo viralizou no Instagram, ao mostrar judeus e muçulmanos dançando entusiasticamente ao som de música chassídica.

Rabinos como Levi Duchman e Elie Abadie trabalham junto a uma comunidade em acelerada expansão, desde 2020. Estimativas oficiais registram cerca de 700 judeus vivendo nos Emirados, entre israelenses e oriundos de outros países. No entanto, há quem fale em cerca de 2 mil cidadãos de Israel com domicílio no país do Golfo Pérsico.

 

O meteórico ressurgimento de vida judaica em um cenário árabe, assim como o desenvolvimento de laços diplomáticos e comerciais, se deve aos Acordos de Abraão, assinados a 15 de setembro de 2020, em Washington. A cerimônia histórica reuniu o presidente Donald Trump, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, e os chanceleres emiradense Abdullah bin Zayed Al-Nahyan e barenita Abdullatif bin Rashid Al -Zayani.

Posteriormente, Marrocos e Sudão aderiram à caravana diplomática. Com papel preponderante na concepção e articulação de Jared Kushner, genro de Trump, os Acordos de Abraão na realidade trouxeram à luz um processo de contatos e diálogos discretos que vinham ocorrendo havia anos. Essencialmente, dois fatores levaram à gênese e consolidação de uma iniciativa responsável por levar Israel a saltar de dois para seis os países árabes com os quais assinou tratados de paz, com os passos pioneiros dados com o Egito (1979) e com Jordânia (1994).

Um elemento a levar à inédita aproximação diplomática chama-se ameaça iraniana. O regime de Teerã, no poder após a derrubada do regime pró-Ocidente do xá Reza Pahlevi, em 1979, rejeita os valores democráticos de EUA e de Israel e anuncia os dois países como seus principais inimigos.

País de maioria persa e xiita, o Irã também rivaliza, em busca de supremacia regional, com vizinhos de população majoritariamente árabe e sunita, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, entre outros.

Nos últimos anos, o regime iraniano investiu pesadamente no avanço de seu programa nuclear, clara ameaça à estabilidade regional e global. O desafio emanado de Teerã levou Israel e países árabes do Golfo Pérsico, vizinhos ao Irã, a entabularem um diálogo a fim de arquitetar estratégias voltadas a conter o expansionismo do governo persa.

Também o redesenho da geopolítica global contribuiu para a aproximação. Desde o governo Barack Obama, iniciado em 2009, os EUA implementam a política denominada “pivô para a Ásia”, que consiste em assumir a ascensão da China como principal desafio à liderança norte-americana no século 21. Uma consequência dessa opção é a diminuição da presença militar norte-americana no Oriente Médio, com a retirada, por exemplo, de tropas do Iraque e da Síria, a fim de concentrar mais recursos em fronteiras asiáticas.

 

A diminuição do foco da Casa Branca no cenário médio-oriental, para ampliar na região do Indo-Pacífico, também contribuiu para israelenses e lideranças árabes sunitas buscarem a construção de uma nova arquitetura de segurança, mais regional e menos dependente do apoio oferecido pelos Estados Unidos.

A chamada era pós-petróleo corresponde a mais um fator a aproximar antigos adversários. Com economias historicamente dependentes da riqueza petrolífera, países do Golfo Pérsico perceberam a inevitável perda de relevância do produto, devido à busca por fontes de energia limpas e renováveis.

A partir dessa premissa, sobretudo as monarquias conservadoras do Golfo Pérsico, lideradas pela Arábia Saudita, embarcaram num ambicioso processo de diversificação do modelo econômico, a fim de abrir novas fontes de recursos e compensar eventuais perdas de receitas da atividade petrolífera. Emirados Árabes Unidos, Qatar e Bahrein, por exemplo, mergulharam com mais intensidade nesse processo do que os vizinhos sauditas, dono de um ambiente social, político e econômico mais conservador.

 

Em outras palavras, monarquias do Golfo Pérsico menores em território e em população passaram a ser uma espécie de laboratório na estratégia regional de substituir a economia profundamente dependente do petróleo por cenário de desenvolvimento baseado também na expansão do setor de serviços, com atividades como turismo, tecnologia, finanças e passando a serem motores fundamentais da atividade econômica.

Dubai se transformou num importante centro de finanças e de negócios, além de um entroncamento aéreo, com um dos aeroportos mais movimentados do planeta. Voos da Qatar Airways passaram a se espalhar globalmente, enquanto Bahrein passou, por exemplo, a receber uma corrida internacional de Fórmula Um.

Exemplos proliferam desse redesenho da economia. De olho num pragmatismo que contribua para a manutenção no poder de seus regimes monárquicos, países do Golfo Pérsicodecidiram ampliar a interação com Israel, antes limitada ao enfrentamento da ameaça iraniana, para uma parceria também em áreas como tecnologia e investimentos, ingredientes valiosos para a renovação de modelos econômicos historicamente baseados no petróleo.

Israel e Emirados Árabes Unidos já assinaram um acordo de livre comércio, com objetivo de atingir a marca de 10 bilhões de dólares em cinco anos. Em 2021, a balança comercial atingiu 1,2 bilhão de dólares e, para este ano, a estimativa é chegar a 2 bilhões de dólares. Os dois países firmaram diversos tratados de cooperação em áreas como investimentos, medicina, energia renovável. “Nem raspamos ainda a superfície do potencial de cooperação em todas as áreas”, declarou o primeiro-ministro Yair Lapid, ao receber em Jerusalém, a 15 de setembro, o chanceler emiradense Abdullah bin Zayed Al-Nahyan, no segundo aniversário da assinatura dos Acordos de Abraão. O visitante também conheceu o Yad Vashem.

Em março, o ministro Al-Nahyan havia aterrissado em Israel para um encontro com seus colegas de Israel, Bahrein, Marrocos, Egito e Estados Unidos, numa ação diplomática a escancarar o rearranjo provocado pelos Acordos de Abraão. E a reunião ocorreu num cenário simbólico: kibutz Sde Boker, onde morou David Ben-Gurion, pai da independência israelense.

Representações diplomáticas de Israel se estabeleceram em países signatários do histórico tratado. Voos diretos chegam a solo israelense oriundos de Abu Dhabi, Manama (Bahrein), Casablanca e Marrakesh (Marrocos). Visitas ministeriais acompanham o fluxo turístico e, em novembro de 2021, em Rabat, capital marroquina, reuniram-se os ministros da Defesa Benny Gantz e Abdellatif Loudiyi.

Mais um reflexo dos novos ventos se registrou em junho, com a primeira reunião de cúpula do bloco econômico I2U2, nome formado a partir das iniciais em inglês dos quatro integrantes: Israel, Índia, Estados Unidos e Emirados Árabes Unidos

O encontro inaugural ocorreu quando da visita de Joe Biden a Israel. O presidente norte-americano e o anfitrião Lapid se reuniram num hotel em Jerusalém, para dialogar, por videoconferência, com os líderes indiano e emiradense. A lógica envolvida corresponde a priorizar projetos em áreas como segurança alimentar, com EUA e Israel aportando tecnologia; a Índia oferecendo seu vasto mercado consumidor, enquanto os Emirados contribuem essencialmente com os recursos financeiros.

E, no campo dos projetos, destaca-se a ideia de criar uma ligação terrestre entre Israel e países do Golfo Pérsico, pois o comércio atual depende sobretudo de laços aéreos. Rodovias nesse trajeto também poderiam facilitar o fluxo de mercadorias entre Europa e nações médio-orientais, ampliando horizontes de negócios.

Históricos, os Acordos de Abraão alteraram algumas dinâmicas do Oriente Médio. O esforço agora se concentra em, além de aprofundar suas consequências, atrair outros países do mundo árabe e muçulmano para aderirem à caravana diplomática responsável por uma das maiores mudanças do cenário geopolítico do século 21.

Jaime Spitzcovsky colunista da Folha de São Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.