Os Judeus viveram por mais de 2.500 anos em países do Oriente Médio e do norte da África. A partir da chegada do Islã, no século 7 de nossa Era, os judeus podiam viver em domínios islâmicos como dhimmis, condição legal e social de segunda classe. As vezes eram protegidos pelo governante e às vezes perseguidos, mas raramente se observava migrações maciças por perseguição em massa. No entanto, nas últimas décadas, mais de 99% deles foram obrigados a deixar as nações muçulmanas, de ambas as regiões.
Nesta edição, traçaremos, de forma resumida, a História dos judeus que viveram nas atuais Argélia e a Tunísia, duas nações muçulmanas que fazem parte do chamado “pequeno Magrebe1”, no noroeste da África.
Perdurou por mais de 2.500 anos a presença judaica na região, com comunidades estabelecidas mil anos antes da conquista árabe, no século 7 de nossa era.
De acordo com uma tradição, remonta à época do rei Salomão a presença judaica na África Setentrional. As tripulações das expedições marítimas do monarca de Israel estabeleceram entrepostos nas costas do Mediterrâneo, inclusive nessa região.
Segundo o Prof. Richard Ayoun, renomado historiador judeu argelino, no primeiro milênio antes da Era Comum, durante os períodos fenício e cartaginense (sécs. 9-2 a.E.C.), já havia, na área, judeus envolvidos em atividades comerciais. No entanto, os primeiros núcleos só se estabeleceram após a tomada de Jerusalém e a destruição do Templo por Nabucodonosor II em 586 a.E.C.
Os conquistadores levaram para o exílio, na Babilônia, grande parte da população do Reino de Judá, porém alguns fugiram para o norte da África. De acordo com uma tradição, um grupo de Cohanim levou consigo, das ruínas do Grande Templo, uma pedra que foi utilizada na construção da sinagoga de El Ghriba, em Djerba.
Os judeus contribuíram para o desenvolvimento de Cartago, que dominou o sudoeste do Mediterrâneo comercial e militarmente, até o séc. 3 a.E.C. Nessa época, a grande potência africana passou a enfrentar a concorrência de Roma, que conseguiu arrasá-la em 146 a.E.C. e, com isso, se assenhorou do Mediterrâneo.
Nos primeiros séculos do domínio romano, a comunidade judaica aumentou no Magrebe, que gozava de uma situação relativamente boa na chamada África Proconsular. A lei reconhecia o Judaísmo como uma religio licita (religião lícita) e garantia a seus seguidores os direitos de erguer sinagogas e cemitérios, além de cobrar impostos e coletar recursos para o Templo de Jerusalém. Os judeus também estavam isentos do serviço militar e do culto aos deuses romanos.
Os acontecimentos na Terra de Israel foram determinantes para o crescimento da população judaica do Magrebe, a qual aumentou muito no início da Era Comum em decorrência das rebeliões de judeus contra o domínio romano. No ano 70, o general romano Tito conquistou Jerusalém, devastou o Segundo Templo e sufocou a Primeira Guerra Judaica. Um milhão de judeus foram massacrados e milhares foram escravizados, mas outros conseguiram fugir. Segundo Flávio Josefo, historiador do século 1, Tito ordenou a deportação para a Cartago Romana de 30 mil judeus. Eles se estabeleceram no litoral e no interior. Em resposta à rebelião, Roma adotou, no tocante aos judeus, uma dura política que resultaria em mais revoltas, como a de Cirenaica, em 115, e a de Bar Kochba, em Eretz Israel em 132.
Datam dos séculos 2 e 3 de nossa Era as primeiras evidências arqueológicas de sua presença na atual Tunísia com um cemitério em Gammarth e uma sinagoga em Hamman-Lif. No início do século 3, restabelecida a Pax Romana, as comunidades do Magrebe entraram em um período de desenvolvimento, com direitos garantidos pela legislação do Império. No entanto, a situação legal dos judeus voltou a piorar com o fortalecimento do Cristianismo, legalizado em 313 pelo Imperador Constantino e, posteriormente, em 380, elevado à condição de religião oficial. A partir daí, iniciou-se uma progressiva degradação da situação legal do Judaísmo, que culminaria com seu banimento.
Discriminados pelas autoridades cristãs, muitos judeus abandonaram as cidades litorâneas e refugiaram-se entre os berberes, nas montanhas Atlas. Subsistiram, no entanto, na região costeira, importantes comunidades como atestaram os escritos de dois teólogos cristãos: Agostinho, Bispo de Hipona (Santo Agostinho) e Jerônimo de Estridão (São Jerônimo). Vale ressaltar que ambos nutriam um sentimento profundamente antijudaico.
No fim do século 4, o Império Romano dividiu-se em dois: o do Ocidente e o do Oriente (ou Bizantino), com capital respectivamente em Roma e Constantinopla. O Império do Ocidente, enfraquecido, foi invadido por tribos de bárbaros. No Norte da África, essa fragilidade permitiu aos berberes retomarem o controle de seu antigo território, com exceção das áreas nas quais, no século 5, os vândalos2, uma tribo germânica, estabeleceram seu reino e revogaram as medidas antijudaicas.
A tolerância terminou com a retomada da região pelo imperador bizantino Justiniano, em 533. Sob os novos senhores, profundamente antissemitas, os judeus enfrentaram discriminações e conversões forçadas. Além disso, sinagogas foram transformadas em igrejas. Ainda assim, a vida das comunidades judaicas no Magrebe era melhor do que na Espanha visigoda, onde se promulgaram duras leis antijudaicas. Sujeitos a perseguições e conversões forçadas, milhares deixaram o país ibérico e se estabeleceram nas atuais Tunísia e Argélia.
Em meados do século 7, surgiu o Islã. Após a morte do profeta Maomé, seus seguidores iniciaram o processo da expansão militar e, em poucas décadas, conquistaram um vasto império. Os exércitos árabes iniciaram a conquista do Magrebe em 642. Para a população judaica, foi um período de intenso sofrimento.
A História dos judeus do Magrebe sob o novo jugo, em comparação com a das outras comunidades em Dar al-Islam, apresenta tanto similaridades quanto particularidades. De acordo com a lei muçulmana, os judeus, assim como os cristãos, podiam viver em domínios islâmicos sem se converterem como dhimmis, condição legal e social inferior à da população muçulmana. Conforme a interpretação que cada dinastia dava à legislação, estavam sujeitos a uma série de impostos, penalidades e humilhações públicas. A períodos de tolerância, seguiam-se outros marcados por perseguições conforme se sucediam no poder diferentes dinastias islâmicas mais ou menos tolerantes com os não muçulmanos. Sob o domínio islâmico, que se estendeu até os meados do século 20, os judeus vivenciaram períodos de tolerância alternados com outros de humilhações, perseguições e morte.
Em 670, os governantes árabes fundaram uma nova capital, Kairouan (na atual Tunísia) e lá permitiram o estabelecimento de ieshivot, academias de estudos judaicos, de forma que a cidade se tornou um importante centro intelectual e econômico para o nosso povo. Após a conquista da Espanha, em 711, por Tarik ibn-Ziyad, governador do Magrebe Ocidental, as comunidades dessa região estreitaram os laços com o país ibérico e tornam-se parte da tradição babilônico-sefardita. No início do século 8, judeus vindos de todo Oriente Médio reergueram a vida comunitária na atual Argélia e estabeleceram populações em Bugia, Argel, Orã, Constantina e Mostaganem.
Livres para atuar em várias atividades comerciais, os judeus, com o quase monopólio de diversos produtos, como peles e sedas, contribuíram para o crescimento econômico local. As condições de vida favoráveis atraíram judeus imigrantes que formaram novas comunidades em cidades como Sousse, Monastir, Sfax e Gabès.
No século 11, os almorávidas, tribos islâmicas do norte da África, tomaram o poder no Sul da Península Ibérica e no Norte da África, inclusive no Magrebe. Para a população judaica, iniciou-se um período de grande sofrimento. Os novos senhores, intolerantes com os não muçulmanos, expulsaram os judeus de Kairouan, mas curiosamente não perseguiram os estabelecidos na região da atual Argélia.
A situação piorou ainda mais quando os almôadas ocuparam o norte da África e a Península Ibérica. Ainda mais intolerantes que os almorávidas, escolheram, como alvo de suas perseguições, os judeus, que, sob a ponta da espada, foram obrigados a escolher entre o Islã e a morte. Sinagogas e ieshivot foram fechadas. Relatos da época descrevem massacres e destruição. Em 1142, a comunidade de Orã foi arrasada; em 1145, a de Tlemcen; em 1146, a de Bougie. Em 1198, desconfiados da “veracidade das conversões”, os opressores obrigaram os muçulmanos “novos” a usarem um traje especial amarelo para distingui-los dos “autênticos”. O Rabi Abraham Ibn Ezra descreve, em um poema, o sofrimento das comunidades de Túnis, Sousse, Mahdia, Sfax, Gafsa, Gabès e Djerba.
Em meados do século 13, com o fim do domínio dos almôadas, duas dinastias islâmicas mais tolerantes assumiram o poder na região e governaram até a chegada dos otomanos. Os ziânidas governaram o noroeste do território que é hoje a Argélia. Já os haféssidas dominaram a atual Tunísia e fizeram de Túnis sua capital. Além de liberdade religiosa, permitiu aos judeus exercerem diversas profissões e ocuparem cargos públicos.
Como sempre foram próximas as ligações entre as comunidades judaicas do Magrebe e as da Espanha, não foram poucas as ocasiões em que vítimas da violência em uma dessas regiões se refugiaram na outra. Devido a grandes perseguições em Castela, em Aragão e nas Ilhas Baleares, o fluxo de sefarditas em busca de abrigo na costa africana aumentou após 1391 e intensificou-se, ainda mais, após o Edito de Expulsão dos judeus da Espanha, em 1492. Os governantes muçulmanos autorizaram os foragidos ibéricos a se estabelecerem em seus domínios mediante o pagamento de uma taxa de admissão. Com isso, fixaram-se na Tunísia vários renomados rabinos e eruditos, banidos. Nesse período, eram boas, de modo geral, as relações judaico-muçulmanas, de forma que apenas ocasionalmente explosões de fanatismo davam origem a perseguições.
O domínio otomano do Magrebe foi um ponto de inflexão na história das comunidades judaicas da Tunísia e da Argélia.
Tunísia na era moderna e contemporânea
No século 16, os judeus da Tunísia viram-se no meio da luta entre turcos e espanhóis. Quando estes tomaram o poder no país, em 1535, muitos judeus foram presos e vendidos como escravos, mas, apesar de tão terrível prática, não houve perseguições sistemáticas durante os 40 anos de ocupação pela potência ibérica.
Após a vitória dos turcos sobre os espanhóis, em 1574, a Tunísia tornou-se uma província do Império Otomano e passou a ser governada pelos Bey, dinastia indicada pelo poder central, em Istambul.
Iniciou-se assim um período de ascensão econômica e cultural para os judeus, que monopolizavam o comércio de atum, coral e fios de lã e entre os quais surgiam, cada vez mais, estudiosos, banqueiros e diplomatas.
Desde o século 16, a população judaica local dividia-se entre tunisianos (o núcleo “nativo” ou tuansa em judeu-árabe) e livorneses, que criaram uma comunidade chamada Grana (Livorno traduz-se como El-Gorna, em árabe). Cada grupo tinha suas sinagogas, escolas, açougues, tribunal rabínico e cemitério.
A partir do século 19, aumentou a influência europeia na Tunísia. Bey Ahmed I (1837-1855) instaurou uma política de reformas e modernização. Beneficiados por uma nova legislação, os judeus ascenderam a importantes posições econômicas e políticas, mas ainda eram vítimas de explosões de violência que eclodiam sob os mais diversos pretextos.
No início de 1881, os franceses invadiram o país e lá estabeleceram um protetorado. Foram bem acolhidos pelos judeus, que, sob o novo domínio, prosperaram economicamente e se aculturaram. As famílias mais abastadas abandonaram o bairro tradicional e instalaram-se nos “europeus”.
Com a abertura de escolas da Aliança Israelita em Túnis, Sousse e Sfax, intensificou-se em todas as classes sociais, a adoção da cultura e dos hábitos franceses, porém não se chegou ao mesmo alto grau de assimilação que na França.
Demoraram para se concretizar as expectativas dos judeus tunisianos de obtenção da cidadania francesa. A concessão do direito, mas em caráter individual, só se iniciou em 1923. Entre esse ano e 1956, cerca de 35 mil foram beneficiados, segundo se estima.
Em 1939, eclodiu a 2ª Guerra Mundial. A França caiu ante a Alemanha nazista já em 1940. Firmou-se então um armistício que impunha a divisão do território da França, com o nordeste como zona de ocupação alemã e o sudoeste como um Estado fantoche pró-nazista, com capital em Vichy. Em outubro de 1940, o regime colaboracionista adotou o “Estatuto Judaico”, uma série de leis antissemitas válidas também nas colônias e protetorados franceses.
Na Tunísia, as autoridades francesas e muçulmanas procuraram adiar ao máximo possível a aplicação das novas disposições e a “arianização” impostas por Vichy. Além disso, as autoridades da Itália opuseram-se à aplicação das novas leis raciais aos cinco mil judeus, com cidadania desse país, estabelecidos no protetorado francês.
Em outubro de 1942, as forças alemãs ocuparam a Tunísia, o lar de 68 mil judeus com cidadania tunisiana, 3.200 italianos, 16.500 franceses e 1.660 de outras nacionalidades.
Logo de imediato, instituíram-se as leis raciais, extinguiram-se as organizações comunitárias judaicas e confiscaram-se os bens de todos os judeus, que foram obrigados a usar a Estrela de David em suas roupas. Cinco mil jovens judeus foram levados para campos de trabalhos forçados e a comunidade teve que pagar uma multa de vinte milhões de francos.
O sofrimento judaico terminou em maio de 1943, quando os Aliados entraram na Tunísia. Assim, os alemães foram expulsos meses antes de implementarem os planos para aniquilação de toda população judaica. Com o fim da ocupação nazista, restituíram-se os direitos dos judeus.
Ainda em meados de 1930, surgiu um movimento nacionalista que passou a lutar pela independência da Tunísia. Liderado por Habib Bourguiba, o grupo tinha em suas fileiras inúmeros judeus. Uma vez atingido o objetivo de autonomia, em 1956, um deles, André Barouche, passou a fazer parte do governo eleito.
O antissemitismo da população, em sua grande maioria muçulmana, no entanto, era uma realidade. O próprio Bourguiba, então presidente, ordenou a unificação das organizações judaicas em um único órgão com membros indicados por ele mesmo. Além disso, ordenou a destruição do bairro judaico tradicional e da mais antiga sinagoga da capital.
Apesar disso, entre os países muçulmanos, a Tunísia destacava-se por sua atitude moderada em relação ao Estado de Israel. Contudo, com o acirramento do conflito árabe-israelense, o antissemitismo cresceu. Durante e após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, intensificaram-se as manifestações e atos de violência. A Grande Sinagoga de Túnis foi incendiada e centenas de propriedades judaicas, depredadas.
Em resposta às agressões por parte dos muçulmanos, os judeus começaram a deixar a Tunísia. Dos 105 mil lá estabelecidos em 1942, restavam apenas 23 mil no fim de 1967 e nove mil em meados dos anos 1990. Grande parte emigrou para Israel.
A atitude em relação à comunidade piorou ainda mais quando a presidência do país foi assumida por Kais Saied, antissionista e forte opositor às relações com o Estado Judeu. Além disso, Saied tem um histórico de declarações antissemitas, tanto que chegou a afirmar que o ciclone Daniel, que devastou a Líbia e outros países mediterrâneos entre 4 e 12 de setembro de 2023, era produto da “influência sionista”.
A sinagoga de El Ghriba, em Djerba, foi abalada por ataques terroristas mortais. No primeiro, ocorrido em 2002 e atribuído à rede Al-Qaeda, o edifício foi alvo de um caminhão-bomba. No segundo, em 9 de maio de 2023, um guarda naval tunisiano dirigiu-se ao local, onde se realizavam as festividades de Lag BaOmer, matou dois judeus e um policial, antes de ser morto pelas forças de segurança (ver matéria na pág. 42).
Desde a incursão assassina do grupo terrorista Hamas em Israel, em 7 de outubro, a Tunísia tem sido palco de protestos antissionistas violentos e ataques a lugares sagrados para o Povo Judeu. Por exemplo, em 17 de outubro de 2023, durante manifestações violentas, centenas de pessoas incendiaram uma sinagoga do século 16 em Al Hammah, no centro do país africano. Embora não fosse uma sinagoga em atividade, devido à inexistência de uma comunidade judaica na região, o local abrigava o túmulo do Rabino Yosef Ma’aravi, cabalista do mesmo período da construção do edifício. Circularam amplamente, nas redes sociais, vídeos que mostram centenas de manifestantes enquanto incendeiam a sinagoga, quebram suas paredes de pedra e plantam bandeiras palestinas, tudo isso sem nenhuma intervenção policial. A antiga sinagoga, juntamente com o túmulo cercado do Rabino Yosef Ma’aravi, foram reduzidos a escombros.
Atualmente, só vivem na Tunísia cerca de 1.500 judeus, a maioria em Djerba.
Argélia na era moderna e contemporânea
Como vimos acima, eram estreitas as ligações entre as comunidades judaicas do Magrebe e da Espanha. Após os massacres no país ibérico, em 1391, a Argélia recebeu um fluxo maior de sefarditas, o que, porém, não ocorreu após o Edito de Expulsão, em 1492, quando a maioria dos refugiados, no Norte da África, foi para o Marrocos. Chamados de megorashim, “exilados” ou “expulsos”, os foragidos espanhóis fixaram-se em cidades do litoral e do interior da Argélia. Em todos esses locais, mantinham suas próprias sinagogas, cemitérios e entidades beneficentes. Como eram de um nível sociocultural e econômico mais elevado que os judeus locais, trouxeram novo elã à vida judaica na Argélia.
Após a queda de Granada em mãos cristãs, em 1492, a Espanha não encerrou sua cruzada contra os muçulmanos: construiu postos avançados fortificados ao longo da costa argelina e, assim, impôs sua influência sobre a costa do Magrebe. Com a nova ocupação, as comunidades judaicas de Orã e Bougie sofreram violentos ataques.
Nesse mesmo período, agiam, a partir da Tunísia, os irmãos corsários Aruj e Khair ad-Din, o Barbarossa. Em 1516, Aruj transferiu-se para Argel. No entanto, após sua morte, seu lugar foi tomado por Barbarossa, a quem o sultão otomano, desejoso de anexar a Argélia a seu Império, deu o título de Beylerbey (Bey dos Beys), com a função de governador. Em pouco tempo, Khair ad-Din dominou a região costeira e, em 1525, assumiu a administração da Regência de Argel.
Nessa província, os judeus tinham uma vida bem mais difícil do que em outras do Império Otomano. Além de viverem sob constantes ameaças, eram obrigados a pagar pesados impostos, residir em bairros específicos e usar um traje especial. Também estavam expostos a atos arbitrários por parte de dirigentes, como saques de suas residências pelo populacho, com autorização, não poucas vezes, dos próprios Beys locais.
Apesar de seu desprezo pelos judeus, os governantes utilizavam-se dos talentos daqueles da classe alta, sobretudo dos originários de Livorno, os chamados Gorenim, estabelecidos na Argélia nos séculos 17 e 18. Entre eles, incluíam-se conselheiros, médicos e os banqueiros dos Beys. Muitos se tornaram diplomatas com a difícil atribuição de manter relações com as nações europeias, tarefa quase impossível dada a intensa “atividade” dos piratas argelinos. Entretanto, mesmo para os judeus influentes, a vida na Argélia otomana era perigosa. Em 1805 foi morto um dos principais assessores do Bey, Naphtali Busnach. O assassinato foi seguido de um grande massacre.
Com a conquista do país pela França, em 1830, os judeus da Argélia, que na época totalizavam entre 15 mil e 17 mil (cerca de 6.500 em Argel, 3.000 em Constantina, 2.000 em Orã e 1.500 em Tlemcen), viram a vida melhorar. Receberam com alívio os franceses, cuja chegada significava o fim dos sofrimentos, humilhações e arbitrariedades impostas pelos otomanos. De fato, com a abolição do estatuto de dhimmis, passaram a ter direitos iguais aos dos muçulmanos.
A Argélia tornou-se o destino de milhares de imigrantes, conhecidos como colons, originários não só da nação conquistadora, mas também de outros países europeus, e foi declarada “território francês” em 1848.
As comunidades judaicas continuaram a se autogovernar até 1845, quando o governo metropolitano instituiu na Argélia o sistema conciliar, o mesmo que existia na França com a criação de consistórios em Argel, Orã e Constantina. Em 1867, esses órgãos passaram para o comando do Consistório Central dos Judeus da França.
Na Argélia, foi rápida a aculturação dos judeus ao estilo de vida e à cultura francesa. Apesar disso, surgiu no país uma intelectualidade judaica que manteve suas tradições. Em julho de 1865, a França concedeu a judeus e muçulmanos, mediante a sujeição às leis seculares e ao serviço militar, o direito à naturalização individual. Foi pequena a adesão. No entanto, por pressão da comunidade judaica francesa, o governo acabou por concordar com a naturalização coletiva. Assim, pelo Decreto Crémieux, de 1870, toda a população judaica da Argélia, que totalizava 35 mil, recebeu cidadania francesa, benefício que não foi estendido aos muçulmanos. De fato, a política colonial fomentava a oposição entre árabes e judeus. Com isso, os muçulmanos, à medida que piorava sua situação econômica, passaram a acusar os judeus de contribuírem para seu fracasso.
Na Argélia, a educação de crianças judias estava a cargo das escolas públicas francesas. Com a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino laico, acelerou-se a aculturação.
Em resposta à naturalização coletiva dos judeus, eclodiu na Argélia uma violenta onda antissemita entre os colonos, os “pieds-noirs”, com ataques em Tlemcen, em 1881; em Argel, em 1882, 1897 e 1898; em Orã e Sétif em 1883.
Na própria França, a posição dos judeus foi desestabilizada no fim do século 19 pelo “nascimento” do “antissemitismo político”3 e pelo Caso Dreyfus, um fator incandescente na campanha antijudaica na Argélia, onde chegou a ser criado um partido antissemita que conseguiu eleger vários membros. Durante a 1ª Guerra Mundial, com a mobilização de todos os cidadãos franceses, os da Argélia inclusive, houve um apaziguamento temporário do antijudaísmo dos colons. No entanto, essa “calmaria” durou pouco: em 1921, irrompeu nova onda de ódio em Orã.
Com a subida de Hitler ao poder, saudada com júbilo por muitos colons, acirrou-se o antissemitismo entre os “pieds-noirs”. As campanhas contra os judeus resultaram, entre outros, em um massacre em Constantina, em 1934. Como vimos acima, em 1940, após a derrota da França e a assinatura de um armistício com Hitler, o governo colaboracionista de Vichy assumiu a administração das possessões ultramarinas francesas. Com isso, passaram a vigorar, na Argélia, as leis antissemitas promulgadas no “Estatuto Judaico”. Revogaram-se então o Decreto Crémieux e, por conseguinte, a cidadania francesa dos judeus locais. Devido ao sentimento predominante entre os colonos, as novas disposições foram aplicadas com grande severidade na Argélia.
Em 1940, os 17 mil judeus estabelecidos na Argélia foram excluídos da vida econômica, financeira e profissional, bem como de funções públicas. Foram ainda proibidos de lecionar e estudar em escolas e universidades públicas. Suas propriedades foram “arianizadas” e, em julho de 1941, confiscados seus imóveis, exceto a própria moradia.
As autoridades coloniais enviaram milhares de judeus para campos de detenção. Mais de quatro mil foram despachados para instalações no sul do Marrocos e da Argélia, para trabalho escravo na construção da ferrovia subsaariana.
Muitos jovens judeus juntaram-se às fileiras da Resistência. Entre seus líderes, estavam José e Colette Aboulker, Raphaël Aboulker, Roger e Pierre Carcassone, Jean Dreyfus, Jean Gozlan e Roger Jais.
Na cidade de Argel, a Resistência, composta em sua maioria de judeus liderados por José Aboulker, levou a cabo uma insurreição em 8 de novembro de 1942. Os jovens conseguiram neutralizar a capital enquanto tropas americanas desembarcavam no país, como parte da Operação Tocha.
Contudo, a chegada dos Aliados não resultou em uma melhoria da vida dos judeus argelinos, cujos direitos civis não foram restabelecidos. Com a cumplicidade de Robert Murphy, conselheiro de Roosevelt para questões da África do Norte, foram mantidas no poder as autoridades de Vichy, que não pretendiam nem abolir as leis discriminatórias, nem libertar os prisioneiros nos campos de detenção e de trabalhos forçados. Em dezembro daquele ano de 1942, foram capturados os jovens judeus argelinos que haviam levado a cabo a insurreição de Argel. Em reação à situação paradoxal, iniciou-se uma campanha mundial contra a complacência dos Aliados com os representantes da França colaboracionista na Argélia.
Em março de 1943, Henri Giraud, um general de Vichy que ocupava o posto de Comissário Superior para a África Francesa, revogou as leis racistas e discriminatórias; porém, como antissemita convicto, não reinstituiu o Decreto Crémieux. A cidadania francesa dos judeus locais só foi revalidada em outubro de 1943, após meses de uma campanha por parte do Congresso Judaico Mundial, do Comitê Francês para a Liberação Nacional e da intervenção do presidente Roosevelt.
A Guerra de Independência da Argélia determinou o fim da presença judaica no país. O conflito iniciou-se no fim de 1954, com ataques da Frente de Libertação Nacional (FLN) a instalações militares e policiais, além de uma campanha de terror contra os colonos. A resposta das autoridades foram prisões, torturas e bombardeios aéreos. Durante oito anos, até a independência argelina, em 1962, o exército francês, os colonos e a OAS, uma organização paramilitar francesa clandestina, lutaram contra a FLN.
Com a eclosão do conflito, os judeus, entre duas forças inimigas e em perigo constante, procuraram manter cautela quanto à tomada de um posicionamento no conflito, algo que, no entanto, os nacionalistas muçulmanos passaram a exigir. A FLN lançou um “apelo” aos “argelinos de origem judaica” para “optarem pela nacionalidade argelina”.
Nos anos seguintes, o reinado de terror e contraterrorismo da FLN e da OAStiveram consequências catastróficas. Houve atentados nos bairros judeus de Orã e Constantina em 1957, 1961 e 1962. Em dezembro de 1960, foram profanados a grande sinagoga de Argel e o cemitério de Orã. Muitos judeus perderam a vida e as propriedades.
Esses acontecimentos abalaram a população judaica, que temia um eventual direcionamento a eles do ódio muçulmano contra o jugo colonial, com um consequente acirramento do já existente antissemitismo da população. Por conseguinte, em março de 1961, uma delegação do Comitê Judaico-Argelino insistiu na inclusão do reconhecimento oficial da natureza francesa de sua comunidade nas negociações entre as partes em conflito.
Em março de 1962, foram assinados os Acordos de Évian, que puseram fim a oito anos de guerra e reconheceram a independência da Argélia, após a qual todos os judeus com cidadania francesa decidiram mantê-la. Até o fim de julho, 70 mil já haviam trocado o país africano pela França e outros cinco mil por Israel.
O regime de Mohamed Ahmed Ben-Bella, no poder de 1962 até 1965, manteve um relacionamento amigável com a comunidade judaica, apesar de ter aprovado o Código de Nacionalidade de 1963, que concedia a cidadania apenas a muçulmanos. Contudo, após a ascensão ao poder de Houari Boumédienne, em 1965, a situação rapidamente piorou, com a volta das perseguições e da discriminação dos judeus. Em junho de 1967, com a eclosão da Guerra de Seis Dias, a imprensa argelina lançou um violento ataque contra Israel e os judeus. As paredes das sinagogas de Argel e de outras comunidades foram pichadas e cemitérios, depredados.
Nesse mesmo mês, a Argélia, juntamente com outros países árabes, declarou guerra a Israel. Até a aceitação do cessar-fogo, pelo Egito, foi denunciada pelas multidões argelinas. Naquele ano, o governo desapropriou todas as sinagogas do país, exceto uma, e as converteu em mesquitas. A Suprema Corte declarou ainda que os judeus já não estavam mais sob a proteção da lei.
A Argélia adotou uma postura extremamente contrária a Israel, com total apoio aos terroristas palestinos. Em 23 de junho de 1968, a FPLP (Frente Popular de Libertação da Palestina) sequestrou um avião da El Al e pousou no país africano com a aprovação do governo. A aeronave, a tripulação e os passageiros israelenses do sexo masculino permaneceram detidos durante semanas e só foram libertados em troca de terroristas presos em Israel.
Em 1969, havia menos de mil judeus na Argélia. Dos aproximadamente 130 mil que deixaram o país após a independência, estima-se que cerca de 80% se tenham estabelecido na França. Na década de 1990, restavam apenas 50, todos em Argel. Havia uma sinagoga em funcionamento, porém sem rabino. As demais, desapropriadas, eram usadas como mesquitas ou haviam caído em ruínas. Hoje não há mais nenhum judeu na Argélia.
1 Pequeno Magrebe composto pela Tunísia, Argélia e Marrocos.
2 Os vândalos seguiam o Arianismo, uma doutrina cristã considerada herética pela Igreja Católica, baseada essencialmente no princípio da negação da divindade de Jesus.
3 O antissemitismo político era uma “mistura ideológica” do antijudaísmo “tradicional”, da judeofobia anticapitalista da esquerda e da pseudociência das teorias raciais.