Localizada na região da Flandres, a Antuérpia é conhecida por ser o centro do comércio mundial de diamantes. A cidade, o segundo porto mais importante do continente, abriga uma das comunidades judaicas mais tradicionais da Europa Ocidental. Infelizmente o futuro dessa comunidade é preocupante, pois a Bélgica vivencia, há décadas, ataques antissemitas e, nos últimos anos, um aumento violento nas manifestações antijudaicas e anti-Israel.
Remonta à época do Império Romano a história da Antuérpia, onde já foram encontrados vestígios arqueológicos do século 2 E.C. de um assentamento chamado “Antverpia”. Conquistada pelos francos no século 4 e cristianizada no 7, a cidade tornou-se um centro urbano e comercial de grande importância durante a Idade Média devido à sua localização estratégica, às margens do rio Escalda (Scheldt). Incorporada ao Ducado de Brabante, um estado do Sacro Império Romano-Germânico1, consolidou-se como um polo mercantil estratégico. Seu crescimento econômico contribuiu para o surgimento de uma próspera e poderosa burguesia urbana com grande influência política.
Em 1292, Antuérpia recebeu, do duque João I de Brabante, uma Carta de Privilégios2 que mencionava os judeus entre seus habitantes. Até meados do século 14, abrigava uma pequena comunidade judaica. Entre 1346 e 1353, a Peste Negra, uma epidemia de peste bubônica, varreu boa parte da Europa. O flagelo, que exterminou entre um terço e a metade da população europeia, foi falsamente atribuído aos judeus, acusados de envenenar os poços com uma substância que, supostamente produzida por eles em segredo, seria o agente causador da doença de acordo com as crenças da época. A Europa foi tomada por um forte antissemitismo, com o massacre de milhares de judeus e a destruição de suas propriedades.
Antuérpia não foi exceção, e os violentos pogroms que lá eclodiram puseram fim à comunidade judaica local. Levaria mais de cem anos para que uma nova Carta de Privilégios, só concedida em 1480, permitisse a volta do nosso povo à cidade.
A chegada dos cristãos novos portugueses
No fim do século 14 e no 15, a Espanha foi palco de acontecimentos sangrentos após os quais Antuérpia recebeu uma onda de judeus convertidos ao Cristianismo. Em 1391, Sevilha foi tomada por pogroms que resultaram em massacres e milhares de abjurações forçadas. Em 31 de março de 1492, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, assinaram o Édito da Expulsão, que obrigou a emigração de todos os judeus que recusassem o batismo. Após a intercessão de trinta figuras de destaque da comunidade judaica espanhola, D. João II de Portugal (1481-1495) permitiu, mediante o pagamento de 600 mil cruzados de ouro, cifra exorbitante para a época, que 600 famílias judias fixassem residência em seus domínios. Já outros refugiados lá puderam permanecer apenas por oito meses em troca do pagamento, per capita, de oito cruzados de ouro.
Com a morte de D. João II, ascendeu ao trono seu sobrinho, D. Manuel, o Venturoso. O casamento do novo monarca com Isabel, filha dos Reis Católicos, marcou o fim da relativa tranquilidade do nosso povo em Portugal. O contrato nupcial exigia que Portugal fosse “purificado” dos judeus. O Édito de Expulsão foi assinado por D. Manuel em dezembro de 1496. Contudo, em fevereiro de 1497, para evitar a perda de riqueza e talentos, o rei ordenou que toda a população judaica comparecesse a igrejas no mês seguinte para um batismo forçado. No entanto, boa parte desses conversos3 passou a seguir o Cristianismo apenas na aparência, pois permanecia fiel às Leis de Moisés em segredo. Eram criptojudeus. No século 16, muitas dessas famílias irão se estabelecer na Antuérpia.
Domínio espanhol (1506–1713)
Antuérpia era um dos centros mercantis mais importantes da Europa no início do século 16. Em seu porto, desembarcavam produtos vindos das Índias Orientais, em um lucrativo comércio organizado e controlado pela Coroa Portuguesa após a primeira viagem de Vasco da Gama ao Sudeste Asiático (1497-1499). Assim, muitos mercadores e banqueiros de Lisboa passaram a abrir filiais na cidade flamenga.
Em 1526, os conversos portugueses obtiveram salvo-conduto para a Antuérpia por meio de um decreto de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, rei da Espanha e senhor dos Países Baixos. Em 1537, receberam direitos de residência e proteção contra possíveis acusações da Igreja de serem “judaizantes”4.
Os Mendes eram uma daquelas 600 famílias que se haviam estabelecido em Portugal após a expulsão da Espanha. Seu chefe, Francisco, encarregou o irmão Diogo de abrir uma filial da Casa Mendes na Antuérpia. Uma das instituições financeiras mais poderosas da Europa renascentista, a Casa Mendes chegou a conceder vultosos empréstimos a monarcas como Carlos V e Henrique VIII, da Inglaterra. Diogo tornou-se um magnata do comércio de especiarias e organizou, para cristãos novos portugueses, uma “rota de fuga” clandestina para os Países Baixos, a Itália, o Império Otomano ou, em alguns casos, a Inglaterra por meio de uma rede de agentes espalhados por várias cidades europeias.
Em 1536, o Vaticano autorizou a instalação da Inquisição em Portugal. Em vista disso, a viúva de Francisco Mendes, Doña Gracia Nasi (1510–1569), chamada “La Señora” (ver Morashá ed. 56), partiu para Antuérpia com o auxílio de Diogo. La Señora marcou a história dos sefaraditas de forma profunda. Sempre pronta a ajudar seu povo, herdara do marido, além da imensa fortuna, a missão de proteger os conversos. Entre outras ações, liderou, juntamente com Diogo, um grupo de cristãos novos que buscou o apoio do núncio papal para interromper as atividades da Inquisição em Portugal. Seu sobrinho e genro, Don Joseph Nasi (1524–1579), também se destacou como uma figura influente entre os cidadãos da Antuérpia.
As autoridades espanholas não permitiam a prática aberta do Judaísmo e, de tempos em tempos, os conversos eram acusados de serem “cristãos de fachada” e de manterem relações comerciais com o Império Otomano. Em 1532, Diogo Mendes foi preso sob a acusação de ser judaizante, mas conseguiu inocentar-se. Com a intensificação das perseguições aos cristãos novos na Antuérpia, Diogo foi convencido por La Señora a deixar a cidade, mas faleceu em 1543. A própria D. Gracia partiu, no ano seguinte, para a Itália e, em 1553, deixou a Europa indo para Istambul, onde assumiu abertamente o Judaísmo.
Além de acusarem os conversos de praticar o Judaísmo em segredo, as autoridades espanholas suspeitavam-nos de apoiar a Reforma Protestante. Devido a isso e a alterações do quadro político-econômico, mudam a política em relação aos cristãos novos, que acabaram, em sua maioria, expulsos da Antuérpia em meados do século 16. O governo municipal tentou, sem êxito, impedir o banimento. Em 1550, a maioria dos conversos deixou a cidade, com exceção de algumas famílias, que, estimuladas pela influência cada vez maior do Calvinismo na população local, lá permaneceram.
Em 1556, Filipe II, filho de Carlos V, ascendeu ao trono e intensificou as ações para impor o Catolicismo nos Países Baixos. Assim, para combater o Protestantismo, lá se implantou a Santa Inquisição, não como um tribunal único e centralizado, como na Espanha, mas com juízes nomeados para casos específicos. As principais atividades eram combater os heréticos, inclusive os judaizantes, e sufocar o movimento reformista, em particular o Calvinismo.
A tentativa de Filipe II de impor o Catolicismo e centralizar o poder na região contribuiu para a eclosão, em 1568, da Guerra dos 80 Anos5 entre as Províncias Unidas dos Países Baixos e a Espanha. Em 1585, após a retomada da Antuérpia, a Espanha implantou na cidade uma política de intolerância religiosa. Grande parte dos protestantes e dos conversos fugiu para as Províncias do Norte, sobretudo para Amsterdã, de maioria protestante. Das 85 famílias da “nação portuguesa” na Antuérpia em 1571, só restavam 46 em 1619. Entretanto, ainda havia sinagogas clandestinas como atesta um relatório de 1585 da Inquisição de Lisboa.
Em 1648, a Paz de Münster6 encerrou a Guerra dos 80 Anos e formalizou a independência dos Países Baixos do Norte, que se tornaram a República das Províncias Unidas, de maioria protestante. O sul, católico, manteve-se sob o domínio dos Habsburgos. Com o fim do conflito, muitos da “nação portuguesa” voltaram à Antuérpia, onde continuaram a observar as Leis de Moisés em segredo. Embora houvesse sinagogas clandestinas, recorriam à comunidade da Amsterdã para atender suas necessidades religiosas. Em 1682, as famílias da “nação portuguesa” sofreram um forte abalo quando um dos filhos de Diego Curiel, de uma das famílias conversas mais poderosas, foi batizado à força sob a alegação de que, por ter nascido em um país católico, pertencia por direito à Igreja.
Em 1694, após a descoberta de mais uma sinagoga clandestina, o bispo da Antuérpia exigiu do arquiduque a expulsão de toda a “nação portuguesa”. Consultados pelo Conselho de Estado, os burgomestres negaram o pedido, responderam que não havia motivos para perseguir os conversos, que haviam trazido o comércio de diamantes para a cidade, eram prósperos e não causavam perturbações.
Domínio austríaco (1713–1794)
No século 18, os Países Baixos Espanhóis passaram ao domínio da monarquia austríaca. Antuérpia enfrentava uma estagnação comercial desde o fim do século anterior. Pelo Tratado de Münster, a foz do rio Escalda passara para o controle das Províncias Unidas, que a bloquearam, impediram o acesso de navios à cidade flamenga e direcionaram o comércio para outros portos, como o de Amsterdã. Adotaram-se, então, políticas de estímulo econômico, entre as quais uma que colocava as autoridades municipais em conflito com as austríacas: a tolerância à instalação de judeus praticantes.
Esses judeus recém-chegados tentaram obter cidadania plena diversas vezes na segunda metade do século 18, mas houve forte resistência no Conselho Municipal. Sua situação melhorou durante o reinado do imperador José II (1780–1790), sobretudo após a promulgação, em 1787, do Toleranzpatent, decreto que concedia liberdades civis e religiosas a várias minorias, entre as quais os judeus.
Estabelecimento da comunidade judaica
Em julho de 1789, eclodiu a Revolução Francesa e, dois anos mais tarde, a França concedeu cidadania plena a todos os judeus nos territórios sob seu controle. Pela primeira vez desde a queda do Império Romano, os judeus da Europa passaram a ter todos os direitos civis e políticos.
Em 1794, Antuérpia foi conquistada pelo Exército Revolucionário. Durante os 21 anos de administração francesa, os judeus podiam estabelecer-se lá livremente, com cidadania plena.
Em 1799, por meio de um golpe de Estado, Napoleão assumiu o poder máximo na França. Com o Édito Imperial de 1808, criou o “sistema conciliar”, que organizava os judeus do país e seus domínios em Consistórios, conselhos de rabinos e leigos responsáveis pela administração dos assuntos comunitários. Já nesse ano, a população judaica da Antuérpia, sob a administração do Consistório de Krefeld, na Renânia (Rheinland, em alemão), teve que adotar sobrenomes e substituir os nomes tradicionais judaicos por locais.
Após o fim das Guerras Napoleônicas, foi instituído, pelo Congresso de Viena, em 1815, o Reino Unido dos Países Baixos, que abrangia os atuais Neerlândia, Bélgica, Luxemburgo e partes da Alemanha. No novo país, que incorporou a Antuérpia, todas as religiões, incluindo o Judaísmo, passaram a ter igualdade de direitos. Havia, porém, profundas diferenças entre o norte (a Neerlândia, de maioria protestante e falante de neerlandês, imposto como língua oficial) e o sul (a Bélgica, onde predominavam o Catolicismo e o idioma francês). Essas divergências levaram à Revolução Belga de 1830.
Os judeus da Antuérpia
Após sua independência do Reino Unido dos Países Baixos, em 1830, surgiu a Bélgica, da qual a Antuérpia passou a fazer parte. A população judaica da cidade, com cerca de 80 famílias em 1849, cresceu muito nas décadas seguintes, de aproximadamente 500 membros em 1847 para cerca de mil no fim dos anos 1860. No entanto, sua maior expansão ocorreu após 1880, com a chegada de refugiados dos pogroms na Rússia e de vítimas de discriminação em outros países do Leste Europeu. Ademais, das dezenas de milhares de emigrantes judeus que passaram pela Antuérpia a caminho das Américas (Estados Unidos, Canadá e Argentina), muitos optaram por permanecer na cidade, que, no início do século 20, tinha uma expressiva população judaica oriunda da Polônia, Rússia, Hungria, Romênia e Eslováquia.
A comunidade judaica da cidade flamenga foi transformada pela chegada desses imigrantes. De pequena e composta de sefarditas portugueses e neerlandeses, bem como de um grupo menor proveniente do Império Otomano, tornou-se predominantemente asquenazita. Além disso, continuou a crescer nas décadas seguintes: os cerca de 8 mil em 1900 já haviam dobrado antes de 1920.
Foi assim que a Antuérpia se tornou o principal centro judaico do país, com três comunidades distintas incorporadas, desde 1832, ao Consistório Central Israelita da Bélgica, sediado em Bruxelas. A primeira, a Communauté Israélite ou Comunidade Holandesa, foi fundada em 1816 por descendentes de imigrantes dos Países Baixos no início do século 19. Em 1828, adquiriu um terreno para um cemitério judaico e, em 1893, inaugurou uma sinagoga em estilo “oriental”, conhecida como a “holandesa”. Em 1931, uniu-se à comunidade Shomré Hadas.
A Comunidade Judaica de Rito Português, formada em 1898, foi a segunda. Só foi oficialmente reconhecida em 1910 apesar de remontar ao século 16 a presença, na Antuérpia, de judeus portugueses. Três anos mais tarde, inaugurou sua sinagoga.
Fundada em 1892 por imigrantes da Europa Oriental, Machsike Hadas, a terceira comunidade, foi oficialmente reconhecida pelas autoridades em 1910. Fundou uma escola religiosa para meninos em 1895, adquiriu seu próprio cemitério em 1908 e, dez anos mais tarde, inaugurou uma sinagoga em estilo Art Nouveau.
No fim da década de 1930, as três comunidades da Antuérpia mantinham vinte e oito batei midrash (casas de estudo religioso) e cinco sinagogas. A maioria dessas instituições, muitas das quais estão ligadas a grupos hassídicos, foi fundada entre as décadas de 1920 e 1930.
A educação judaica contava com uma rede de estabelecimentos. Parte das escolas era dedicada apenas ao ensino religioso, que, em outras, era ministrado em conjunto com disciplinas gerais.
O Sionismo chegou à Antuérpia no início do século 20, com atividades e associações específicas, além da realização, pela primeira vez na Bélgica, de um congresso sionista, em 1906. Com isso, a cidade consolidou sua posição de principal centro do movimento sionista do país.
Desde os anos 1880, a cidade entrara em um período de grande prosperidade, reflexo do forte impulso que a indústria de diamantes recebeu da descoberta de jazidas desse mineral na África do Sul. Boa parte dos judeus que pretendiam emigrar para as Américas permaneceu na Antuérpia para trabalhar na lapidação, polimento e comércio dessas pedras.
O fluxo de diamantes brutos provenientes das colônias belgas na África transformou a cidade no principal centro mundial da indústria dessas gemas. A comunidade judaica teve grande participação em todas as atividades do ramo, por causa, em grande medida, de suas conexões comerciais internacionais e da disposição dos imigrantes judeus vindos do Leste europeu de trabalhar por baixos salários. No século 19 e na primeira metade do 20, o comércio e a lapidação de diamantes tornaram-se as principais ocupações da comunidade judaica da Antuérpia.
O Holocausto
Estima-se que, às vésperas da 2ª Guerra Mundial, havia na Bélgica cerca de 90 mil judeus. Desses, 15 mil eram refugiados alemães enquanto a maioria dos demais eram originários da Europa Oriental e não possuíam a cidadania belga. Cinquenta mil viviam na Antuérpia; 30 mil, em Bruxelas e os restantes, em outras cidades belgas.
Em 10 de maio de 1940, a Alemanha invadiu a Bélgica, que se rendeu no dia 28 e foi tomada pelas forças germânicas. Uma vez que queriam manter a ordem e reativar a indústria de diamantes, então controlada quase totalmente por judeus, os nazistas não iniciaram de imediato a perseguição à comunidade judaica, ao contrário do que fizeram na Europa Oriental. Entretanto, em outubro de 1940, foram impostas as primeiras medidas antissemitas. Instituiu-se um cadastro especial (Judenregister) de acordo com o qual a Bélgica só abrigava 40 mil judeus: os demais estavam escondidos (cerca de 20 mil) ou haviam fugido (aproximadamente 25 mil).
A maior parte da população judaica que vivia na Antuérpia havia deixado o país no início das hostilidades. Contudo, devido à dificuldade de encontrar refúgio, à impossibilidade de cruzar o mar rumo ao Reino Unido e à postura inicialmente “moderada” dos alemães, milhares retornaram à cidade.
Em dezembro de 1940, iniciaram-se as prisões dos judeus da Bélgica. Nos meses seguintes, com a entrada em vigor de novos decretos, acirraram-se as perseguições e a segregação, com a proibição de sair de casa à noite e ir a parques públicos, além de demissões de jornais, postos do governo e estabelecimentos de ensino. As crianças judias não podiam mais frequentar escolas públicas.
Na Antuérpia, mais do que em qualquer outra localidade na Bélgica, os alemães contaram com o apoio ativo tanto de partidos quanto de grupos locais antissemitas e pró-nazistas.
Dos judeus da cidade, mais de 3 mil que haviam entrado no país após 1938 foram deportados, até fevereiro de 1941, para Limburgo, uma zona rural na província belga, para trabalhos forçados na Organização Todt7. Alguns foram enviados em seguida ao Forte Breendonk, onde os nazistas haviam instalado um campo de concentração e deportação. Os judeus foram separados dos prisioneiros não judeus, a maioria dos quais fazia parte da resistência belga. Em 1942, todos os judeus foram transferidos para o campo de Mechelen e, posteriormente, para outros campos de trabalho e extermínio na Alemanha e na Polônia ocupada.
Em 14 de abril de 1941, a Antuérpia foi palco de um violento pogrom. Os judeus foram atacados e lojas a eles pertencentes, destruídas por simpatizantes do regime nazista, com apoio dos alemães. Duas das principais sinagogas da cidade foram saqueadas e destruídas, os rolos da Torá queimados. O conselho municipal assumiu a responsabilidade pelos danos e aprovou o reembolso às vítimas, porém os nazistas não permitiram a reparação. Em 18 de agosto, a Gestapo realizou o primeiro grande confisco na Bolsa de Diamantes.
De acordo com as autoridades alemãs, viviam na Antuérpia, em outubro de 1941, 17.242 judeus. Todos foram obrigados a usar uma Estrela de David amarela em suas vestimentas a partir de junho de 1942.
Nos meses seguintes, a população de toda a Bélgica foi alvo de prisões em massa. Em um primeiro momento, o destino era o Campo de Trânsito de Mechelen (em alemão SS-Sammellager Mecheln), estabelecido em um antigo quartel do exército belga na cidade do mesmo nome (Malines, em francês). Localizado entre Antuérpia e Bruxelas, o campo tinha conexões ferroviárias para o Leste europeu. Toda semana, duas levas de cerca de 1.000 judeus cada deixavam o local rumo a Auschwitz-Birkenau. Entre agosto de 1942 e julho de 1944, 25.257 judeus deixaram Mechelen em 28 trens. Menos de 2 mil judeus sobreviveram ao Holocausto.
Na noite de sexta-feira, 28 de agosto de 1942, iniciou-se na Antuérpia uma grande onda de prisões e deportações que prosseguiram até 4 de setembro de 1943. Foram detidos todos os judeus que ainda estavam na cidade, cidadãos belgas e membros do Judenrat, inclusive.
Quando veio à tona a verdade sobre o destino dos judeus, houve uma diminuição da relativa indiferença predominante nos primeiros anos de ocupação pela política antissemita alemã e as autoridades civis do país passaram a se recusar a cooperar com os nazistas. Com essa mudança de atitude muitos judeus conseguiram esconder-se. A autoajuda organizada pela comunidade judaica, pela Igreja e pela clandestinidade comunista desempenhou um papel importante.
Na Bélgica, os judeus criaram grupos de resistência ativos. Membros dos movimentos juvenis sionistas do pré-guerra continuaram a atuar em segredo contrabandeando judeus para a Suíça e a Espanha.
O Comité de Défense des Juifs (CDJ), estabelecido em Bruxelas em setembro de 1942, foi o principal movimento de resistência judaico. Seu principal objetivo era ajudar crianças e adultos a encontrar esconderijo em lares cristãos. Forneciam aos judeus escondidos alimentos e remédios e davam assistência financeira às famílias que aceitavam esconder judeus. Membros do grupo participavam de ações de sabotagem, como descarrilar trens, publicar jornais, falsificar documentos, em conjunto com o Front de l’Indépendance, a resistência belga. Em abril de 1943, membros do CDJ atacaram um trem que ia de Mechelen para Auschwitz, a única ação, em toda a Europa, contra um transporte que deportava judeus para os campos de extermínio. Cerca de 500 prisioneiros conseguiram escapar nessa ocasião, mas muitos acabaram recapturados.
Segundo as estimativas, cerca de 40 mil dos 65 mil judeus que permaneceram na Bélgica durante o domínio nazista foram assassinados no Holocausto. Na comunidade judaica da Antuérpia, a maior da Bélgica, a aniquilação foi devastadora: 65% dela foi morta. De acordo com estudos recentes, esse percentual tão elevado deveu-se a diversos fatores. Como a cidade foi a primeira do país a registrar prisões, os judeus foram pegos de surpresa pelos nazistas. Além disso, a maioria deles vivia em um único local, no bairro conhecido como Jootsewijk, ao redor da principal estação ferroviária. Contudo, a principal razão para tantas mortes foi o forte apoio aos alemães dos colaboradores antissemitas da Antuérpia.
Segunda metade do século 20
Logo após a libertação da cidade, foi criada a HISO (“Hulp aan Joodse Slachtoffers”, ou Ajuda às Vítimas Judaicas da Guerra, em neerlandês), uma organização de assistência aos sobreviventes. A reconstrução da comunidade começou em 1946. Construída em 1928, a sinagoga da (rua) Van den Nestlei foi restaurada em 1954 e renomeada Romi Goldmuntz, um empresário judeu que teve um papel essencial no desenvolvimento da indústria de diamantes na Antuérpia. De rito ortodoxo moderno, tornou-se a principal da cidade.
Nos anos 1950, a população judaica da Antuérpia cresceu em ritmo acelerado, tanto que, no início da década seguinte, já totalizava 10 mil pessoas. Aos sobreviventes do Holocausto e seus descendentes, juntaram-se imigrantes de toda a Europa e de Israel. A maioria desses últimos pertencia a grupos hassídicos.
A indústria de diamantes consolidou-se como a principal ocupação da comunidade judaica da Antuérpia, cujos membros, em grande medida, eram profissionais altamente especializados, responsáveis pelas etapas mais refinadas do processo de lapidação, em que transformavam pedras brutas em gemas de alta qualidade. Outros faziam parte do comércio internacional de pedras preciosas.
Localizadas nos bairros judaicos, as bolsas de diamantes encerram suas atividades na tarde de sexta-feira, antes do início do Shabat, e permanecem fechadas nos feriados judaicos. A partir de 1980, no entanto, devido a mudanças da indústria diamantífera mundial, verificou-se um declínio tanto da importância da cidade quanto da influência das empresas judaicas no mercado internacional.
Grande parte da comunidade judaica ainda vive no bairro conhecido como Jootsewijk, próximo à estação ferroviária da Antuérpia. Devido à grande concentração de judeus ortodoxos e ultraortodoxos que preservam um modo de vida muito ligado à tradição religiosa, a cidade é chamada de “o último shtetl da Europa Ocidental”. O iídiche ainda é muito importante, mas o flamengo passou a ser o idioma mais utilizado pela comunidade judaica, boa parte da qual também fala francês e hebraico.
Segundo estimativas, no início dos anos 2000, a Antuérpia abrigava aproximadamente 18 mil judeus, dos quais cerca de 20% levavam uma vida mais secular, sem filiação a nenhum grupo religioso. Os restantes pertenciam a uma das três comunidades judaicas locais, cada qual com suas próprias casas de oração, batei midrash (casas de estudo) e abatedouros rituais. Atualmente, há cerca de trinta sinagogas na cidade, a maioria localizada no bairro de Jootsewijk.
Mais de 85% das crianças frequentam escolas judaicas, uma das taxas mais altas da Diáspora. Entre as principais organizações juvenis estão: Agudat Israel, Bnei Akiva, Hashomer Hatzair e Hanoar Hatzioni, que oferecem atividades religiosas, educativas e sociais.
Diversas entidades judaicas de assistência social têm uma atuação intensa em Antuérpia. Há dois lares para idosos, um hospital comunitário e grupos sionistas, com destaque para o Keren Hayesod, a WIZO, o Keren Kayemet LeIsrael e a Federação Sionista.
Com o ressurgimento do antissemitismo na Bélgica, assim como no resto da Europa, os judeus da Antuérpia voltaram a ser alvo de violência. Em 1981, a sinagoga da Hoveniersstraat sofreu um atentado terrorista. A ascensão do Vlaams Belang, um partido nacionalista de extrema-direita anteriormente chamado Vlaams Blok, contribuiu para a intolerância contra imigrantes não europeus na Bélgica, além de já ter expressado opiniões antissemitas.
A presença judaica é mais visível na Antuérpia do que em Bruxelas, devido à grande população ortodoxa da cidade. E, a partir do início dos anos 2000, registrou-se um aumento das agressões físicas contra judeus e suas propriedades por parte sobretudo de membros da comunidade imigrante árabe da Antuérpia. Em 2017, as regiões de língua holandesa de Flandres e de língua francesa da Valônia, na Bélgica, aprovaram leis que proíbem o abate de animais sem atordoamento prévio, mesmo no contexto do abate casher, conhecido como shechitá, e no abate muçulmano. Os líderes das comunidades judaica e muçulmana denunciaram tal atitude como antissemitismo e racismo e uma violação de sua liberdade religiosa.
A comunidade judaica da Antuérpia, a Associação Judaica da Europa e também comunidades muçulmanas ficaram chocadas com novas leis referentes à circuncisão. No Judaísmo e no Islamismo trata-se do mais importante mandamento, um pacto religioso fundamental. Há cerca de 3.700 anos, a circuncisão é realizada por indivíduos especialmente treinados e experientes – os mohels. No dia 14 de maio de 2025, a polícia realizou uma batida na casa de dois mohels na Antuérpia, confiscou seus materiais de trabalho e exigiu uma lista das circuncisões realizadas no ano anterior. A Associação Judaica da Europa declarou que tal atitude cruzava mais uma “linha vermelha”, mais uma violação de sua liberdade religiosa.
Hoje, há uma aparente normalidade no bairro judaico da Antuérpia: veem-se judeus religiosos vestindo os trajes tradicionais, pedalando suas bicicletas ou caminhando ao lado de seus filhos, lojistas à frente de armazéns e restaurantes casher, ao som de conversas em iídiche e hebraico pelas ruas. No entanto, os membros da comunidade afirmam que essa aparente normalidade mascara uma inquietação mais profunda, sobre o futuro.
1 Vasto território composto por reinos, principados, ducados e cidades imperiais livres que, apesar de vassalos do imperador, gozavam de privilégios que lhes conferiram independência de facto em seus domínios a partir de 1232.
2 Documento real que concedia direitos e benefícios específicos a uma comunidade (cidade, vila ou grupo de pessoas).
3 Os judeus recém-convertidos e seus descendentes eram, também, denominados cristãos novos, “gente da nação judaica portuguesa”, anusim (em hebraico) ou “marranos” (de forma pejorativa).
4 Prática secreta do Judaísmo por pessoas oficialmente cristãs.
5 O conflito também é conhecido como Revolta dos Países Baixos ou Guerra de Independência Holandesa.
6 A Paz de Münster foi um tratado entre os Países Baixos e o Império Espanhol firmado em janeiro de 1648. Foi negociada em paralelo com a Paz de Vestfália, mas não faz parte dela. Foi um momento-chave na história neerlandesa por marcar o reconhecimento formal de uma república independente.
7 Organização Todt foi um grupo paramilitar de construção e engenharia civil e militar criado na Alemanha nazista, por Fritz Todt, ministro do Armamento e Munições do Reich. Foi anexado ao exército e esteve ativo durante a 2ª Guerra Mundial.