A comunidade judaica de Praga, criada na Alta Idade Média, é a mais antiga da Boêmia. Sua história é marcada por profundo antissemitismo cuja intensidade reflete os problemas sociais e econômicos de cada período histórico. Entre os séculos 17 e 19, no entanto, Praga se tornaria um importante centro judaico.

A capital da República Checa, Praga, é um dos centros urbanos mais antigos da Europa Centro-Oriental. A presença de judeus na região remonta à Antiguidade. De acordo com o historiador checo V. V. Tomek, os primeiros a se aventurarem na Boêmia eram mercadores que seguiam as legiões romanas. Não se tem certeza, porém, quando foram estabelecidos os primeiros assentamentos judaicos.

Há uma lenda checa que menciona Praga e os judeus. Conta a tradição que Lubossa1, ancestral da dinastia de Premislidas e do povo checo, previa o futuro e, certo dia, encontrando-se em um penhasco acima do rio Moldava, teve uma visão de que ali se estabeleceria “uma grande cidade”. A visão a alertou de que seus descendentes entrariam em contato com um povo de um país distante e religião diferente. Se esse povo fosse recebido em paz, a cidade seria abençoada com prosperidade.

Bořivoj Přemyslovec, descendente de Lubossa, que assumiu o poder em 870, é o fundador da dinastia dos Premislidas, que governou o Ducado da Boêmia até 1301. Bořivoj e sua esposa Ludmila foram os primeiros governantes a aceitarem o batismo, cristianizando em seguida seus domínios. Acredita-se, ainda, que tenha sido ele (ou seu filho) quem teria fundado o Castelo de Praga, no final do século 9, na colina Hradchany, na margem esquerda do rio Moldava. Atualmente, o Castelo é utilizado como sede da Presidência da República Checa.

O primeiro documento que menciona a existência de Praga é datado de 965-6 e foi escrito por um judeu espanhol, Abraham ben Jacob de Tortosa, conhecido como Ibrāhīm ibn Ya’qūb. Comerciante e diplomata, ibn Ya’qūb fora enviado por al-Hakam II, califa de Córdoba, à corte de Oto I, o Grande, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Terminada a missão diplomática, ibn Ya’qūb percorreu outros lugares da Europa. Em seu relato de viagem, ele descreve, entre outros, Praga. Conta que havia um importante centro de comércio em volta e aos pés do Castelo de Praga, onde mercadores judeus e não-judeus vendiam produtos vindos do Oriente e Ocidente.

Na época, os judeus eram livres para viver onde quisessem, desfrutando dos mesmos direitos e privilégios que os comerciantes alemães e francos. Um cronista checo do século 16, Václav Hájek de Libočany2, relata que uma sinagoga fora erguida em Praga, no final do século 10, às margens do rio Moldava, em meio à população cristã. O cronista conta que no ano de 995 os cristãos haviam pedido aos judeus ajuda militar contra rebeldes pagãos. Os judeus lutaram com tamanha bravura que receberam autorização para construir uma sinagoga no bairro de Malá Strana3 (Cidade Inferior de Praga ou Cidade Velha). A relativa tranquilidade judaica, no entanto, teve curta duração. O clero cristão incitava constantemente os governantes e as massas contra os judeus. Durante toda a década de 1050 a população judaica da Boêmia é alvo das “típicas” acusações antijudaicas cristãs: envenenamento dos rios e poços e do ar das residências cristãs, sequestro e matança de crianças cristãs e uso de seu sangue em “encantamentos contra a população”. Em 1059, ainda de acordo com Hájek, padres acusam judeus de incendiar várias igrejas. Enraivecido, o príncipe Spytihněv condena 45 judeus à fogueira e expulsa o restante da população judaica do Ducado da Boêmia, confiscando seus bens.

Com a expulsão dos judeus instala-se uma crise econômica no Ducado, o que fez com que cinco anos mais tarde, em 1064, os judeus fossem autorizados a voltar, obtendo, no final de 1067, permissão do príncipe Vratislaus II para se mudar da Cidade Velha de Praga para a Staré Mesto, a Cidade Superior. A três quilômetros de distância do Castelo de Praga, o príncipe construíra o Castelo no Alto, Vyšehrad, ao redor do qual foi-se formando um novo bairro judaico.

Nos 30 anos seguintes a comunidade judaica se reergue e prospera, mas a tranquilidade termina em 1096, quando passam por Praga membros da 1ª Cruzada.

No ano anterior, a Cruzada fora proclamada pelo Papa Urbano II, com o intuito de libertar a Terra Santa do jugo muçulmano. Mas, antes de chegar ao Oriente Médio, os cruzados se voltaram contra “os infiéis europeus”, isto é, os judeus. Em abril de 1096, mais de 10 mil cristãos saíram de Rouen e Normandia em direção ao Norte, saqueando e assassinando todos os judeus à sua frente. Quando chegavam a uma cidade, juntavam-se ao populacho cristão, sempre pronto a matar judeus e pilhar suas riquezas. O cronista checo Cosme de Praga (c.1039–1125) relatou que, ao chegar a Praga, os cruzados assassinaram muitos judeus e saquearam suas propriedades. Outros tantos foram obrigados a aceitar o batismo. Incendiaram os bairros judeus, mas não suas propriedades na Cidade Velha temendo que o fogo atingisse suas igrejas.

Uma parcela da população judaica se mudou para a margem direita do rio Moldava, em 1142, depois que o Castelo de Praga foi cercado e incendiado pelo rei Conrado III. As chamas atingiram o bairro judeu, localizado abaixo do castelo, com sua sinagoga, a mais antiga da cidade.

O status da população judaica local foi-se deteriorando nos séculos 12 e 13 com o fortalecimento da Igreja. O ódio dos cristãos se manifestava quando uma das acusações antissemitas medievais era levantada contra os judeus e a violência se abatia sobre toda a comunidade. Em 1181, por exemplo, foram queimados vivos 85 judeus e destruída uma sinagoga.

Na segunda metade do século 12 grande parte da população judaica de Praga vivia na Cidade Judaica4. Na época, os judeus viviam nessa área por sua própria opção e os seis portões que a rodeavam haviam sido construídos para protegê-los de pogroms.

O “Estatuto Judaico”

Em 1215, o Concílio Latrão IV promulgou cânones antijudaicos visando “impedir a contaminação dos cristãos”. O Concílio “intimou” os monarcas da Europa a adotarem uma legislação que obrigasse os judeus a viver em bairros separados, portassem o “distintivo judaico” em suas vestes e os proibissem de exercer “profissões cristãs”, ocupar cargos públicos, trabalhar na agricultura e fazer parte de corporações de ofício.

Os reis, porém, estavam cientes de que os talentos e a riqueza judaica eram necessários à economia ao bem-estar do reino, sendo, portanto, preciso dar à população judaica proteção legal. Durante a Idade Média os judeus recebiam dos governantes cartas de privilégios e direitos de residência e, em troca, lhes concediam empréstimos e pagavam altos impostos.

Em 1236, Frederico II, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, declara todos os judeus como Kammerknechtschaft (em latim, Servi camerae regis, servos da Câmara Real). Isso significava que a receita gerada por eles era uma regalia do imperador, pertencendo ao tesouro imperial e o governante era obrigado a protegê-los.

A Boêmia tornara-se um reino hereditário, em 1212, e com Otakar II (1233- 1278), a dinastia Premislidas atingiu o auge de seu poderio. Em terras checas, os reis tinham o poder legislativo nos assuntos referentes aos judeus e Otakar II foi um dos monarcas que mais contribuíram para seu bem-estar.

Entre 1254 e 1262 (não se sabe com precisão a data) o monarca outorgou uma carta de privilégios, Statuta Judaeorum, ainda mais favorável aos judeus do que o Estatuto promulgado pelo imperador Frederico II. De acordo com o documento, eles ficavam sob jurisdição e proteção real, e a receita fiscal que gerassem pertencia aos cofres reais. O Estatuto incluía, entre outros, liberdade de movimento e de moradia, a proibição do batismo forçado e ações ilegais contra os judeus ou suas propriedades, bem como qualquer intervenção cristã na celebração do Shabat e festas judaicas. Incorporou também as bulas papais de Inocêncio IV, que rejeitavam o libelo de sangue, isto é, o mito sobre os supostos assassinatos de cristãos por judeus com fins rituais. Em 1247, o Papa Inocêncio IV emitira a bula Sicut Judaeis, que proibia aos cristãos, sob pena de excomunhão, acusar os judeus de utilizarem sangue humano em seus rituais.

Desenvolvimento da comunidade

Desde o século 11, a Cidade Judaica de Praga se tornara um importante centro de estudo da Torá eláviveram importantes rabinos, entre os quais Yitzhak ben Ya’akov ha-Lavan de Praga, e seu pupilo Avraham ben Azri’el, e ainda o respeitado Yitzhak ben Moshe.

O rei Otakar II dera a permissão à comunidade judaica para o estabelecimento de um cemitério e uma nova sinagoga. Construída em estilo gótico, o nome da sinagoga, inaugurada em 1270, era Nova ou Grande Sinagoga, mas quando foram construídas outras, passou a ser chamada de Altneuschul (Velha-Nova Sinagoga). Durante mais de 750 anos foi o centro da vida judaica em Praga e é, hoje, a sinagoga mais antiga do mundo ainda em uso cotidiano.

Durante o reinado do imperador Carlos IV (1316-1378), floresceram tanto Praga quanto a comunidade judaica. O primeiro rei da Boêmia a ascender ao trono do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos IV, fez da cidade a sua capital, reconstruiu os Castelo de Praga e de Vyšehrad e estabeleceu a Cidade Nova (Nové Město), autorizando os judeus a lá se estabelecer.

A situação da população judaica, porém, piorou com a subida ao trono de Wenceslau IV (1378–1419), filho de Carlos IV. A Boêmia entrou num período de instabilidade política e social, com dramáticas consequências para os judeus. O antissemitismo religioso alimentado pela Igreja havia encontrado terreno fértil na Boêmia. Os mitos do libelo de sangue, de profanação da hóstia e de supostas tramas insidiosas dos judeus contra a religião cristã estavam fortemente enraizados no imaginário da população.

No dia 18 de abril de 1389, véspera do domingo de Páscoa, o populacho cristão atacou a comunidade judaica da cidade. Os dramáticos eventos foram descritos por Rabi Avigdor ben Yitzhak Kara, falecido em 1439: “O clero de Praga espalhou a acusação de que os judeus haviam profanado a hóstia e incentivaram o povo a atacar, saquear e incendiar a Cidade Judaica. Com isso, mais de três mil judeus foram mortos, alguns pelo fogo e outros por violentos meios. Algumas mulheres e crianças foram levadas à força e batizadas para apaziguar a multidão enfurecida”. Esse pogrom foi a carnificina mais devastadora contra os judeus de Praga em todos os séculos que antecederam a Shoá.

Rabi Kara redigiu um famoso tributo (kiná, em hebraico) sobre os trágicos acontecimentos, intitulado “Todas as agruras que recaíram sobre nós”, incluído no livro de orações de Rosh Hashaná e Yom Kipur usado pelos judeus de Praga e que é rezado, até hoje, na Altneuschul, no dia de Yom Kipur.

O Século 15 e o Período Hussita

O antijudaísmo tornou-se ainda mais forte ao longo do século 15 e a vida dos judeus, mais precária, apenas havendo melhora nos anos em que os hussitas – seguidores de Jan Hus – estiveram no controle da Boêmia, durante as chamadas Guerras Hussitas (1420-1436).

Teólogo checo precursor do movimento protestante, Jan Hus foi queimado vivo pela Inquisição após ser acusado de heresia. Sua morte, em 1415, provocou protestos e uma rebelião dos protestantes da Boêmia. O conflito entre estes e as forças católicas vindas de toda a Europa estouraria cinco anos mais tarde e duraria 16 anos.

Os judeus deram amplo apoio financeiro aos hussitas, que, por sua vez, consideravam os judeus aliados “naturais”, já que ambos enfrentavam o ódio católico. Porém, apesar da atitude filossemita por parte dos hussitas, os judeus não ficaram a salvo da violência. O bairro judeu de Praga foi palco de pogroms em 1421-1422 e 1483.

Uma das consequências das Guerras Hussitas foi o enfraquecimento do poder real e o fortalecimento da nobreza e das cidades. Os judeus passam a ter que pagar impostos não apenas aos cofres reais, mas também aos nobres e às câmaras municipais. Em Praga, enquanto os impostos continuavam a encher os cofres da cidade, os judeus eram deixados em relativa paz.

Nesse período é construída a Sinagoga Pinchas. Financiada pela família Horowitz como um local privado de orações, acabou por se tornar uma das principais sinagogas de Praga.

No século 16 a cidade é um dos maiores centros de impressão em hebraico da Europa. Entre as obras publicadas nesse período, destacam-se um livro de hinos em hebraico, de 1514, ilustrado com ricas iluminuras; o Pentateuco, em 1518, e posteriormente, uma outra edição do mesmo em 1530, e a famosa Hagadá de Praga, de 1526. A tipologia inovadora e o estilo de suas ilustrações foram copiados em toda a Europa.

Em 1501, Vladislav II, rei da Boêmia, fez uma proposta “irrecusável” aos judeus: garantiria seu direito de viver em Praga, e em outros lugares da Boêmia, caso pagassem aos cofres reais mais uma exorbitante taxa anual. A proteção real foi posta à prova no ano seguinte, em 1502. Para os cristãos da Cidade Velha, os impostos pagos pelos judeus não eram suficientes para permitir que lá vivessem. Sendo assim, pediram sua expulsão da cidade e de toda a Boêmia. O rei recusou e, em 1510, após mais dois pedidos de expulsão (em 1507 e 1509), ele outorgou o Edito de Olomouc onde reafirmava o direito dos judeus de permanecer na Boêmia.

Mas, em 1526, mais uma vez a situação muda para os judeus quando Fernando I sobe ao trono da Boêmia. Viviam em Praga 1.200 deles, em 1541, quando o monarca decide pela expulsão. Três anos mais tarde, após vários adiamentos, praticamente todos os judeus de Praga já tinham sido forçados a deixar a cidade. Dois anos depois, os judeus foram autorizados a retornar, para serem novamente expulsos em 1557.

Idade de Ouro dos judeus de Praga

Uma era de prosperidade se inicia quando Maximiliano II se torna imperador, em 1564. Visando a paz no Sacro Império Romano-Germânico, o imperador manteve uma política de neutralidade religiosa na luta entre católicos e protestantes. No tocante à população judaica da Boêmia, em 1567 ele cancelou a ordem de expulsão de Fernando I, reconfirmando os direitos dos judeus de Praga, e aboliu grande parte das interdições ao comércio que pesavam contra eles. Foi Maximiliano II quem instaurou a base da tolerância que abriria espaço para uma era de prosperidade – a Idade de Ouro do Judaísmo de Praga, de 1570 a 1620.

A Idade de Ouro floresceu durante o reinado do Rodolfo II (1576-1612), imperador romano-germânico. Após assumir o trono da Boêmia, o monarca se muda para o Castelo de Praga, que permaneceu sendo sua residência principal. Em 1584, mudou a sede do Império de Viena para Praga e, com isso, a cidade vivencia um grande boom econômico, cultural e populacional.

Em 1593, Rodolfo II deslancha uma guerra contra o Império Otomano, a Longa Guerra Turca. Excêntrico, dado a períodos de depressão e insanidade, o monarca não conseguiu manter a coesão de seus domínios. Isto deu espaço a que outros membros dos Habsburgos passassem a intervir nos assuntos do império. Na realidade, ele conseguiu reinar apenas sobre a Boêmia.

Rodolfo II ampliou os direitos e privilégios judaicos, determinando que as disputas entre judeus e cristãos fossem julgadas pela Corte real. Emitiu decretos para proteger os judeus contra a hostilidade dos cristãos e das corporações de ofício. Em 1599, os isentou do pagamento dos impostos municipais e deu-lhes a permissão para se tornarem artesãos. Usufruindo de liberdade econômica, eles ramificaram suas atividades e muitos se tornaram pequenos comerciantes e artesãos. A cidade passou a atrair judeus de toda a Europa, sendo que mais de três mil viviam na Cidade Judaica no final do século 16.

Personalidades da Idade de ouro

Duas personalidades se destacam durante a Idade de Ouro: Mordechai Maisel, líder comunitário e filantropo, e Rabi Yehuda Loew ben Bezalel, o Maharal de Praga, o maior líder espiritual da história dos judeus de Praga.

Financista e comerciante, Maisel (1528-1601) é considerado o primeiro dos chamados “Judeus da Corte”. Rodolfo II o fez seu conselheiro real, em retribuição pelo auxílio financeiro prestado durante a guerra contra os turcos. O monarca lhe garantiu privilégios extraordinários; entre outros, em 1593, o direito de negociar livremente, recebendo proteção contra as ações judiciais por parte dos cristãos.

Maisel usou sua riqueza para melhorar a vida de seus correligionários: apoiou instituições de assistência social, concedeu empréstimos sem juros para os artesãos e os menos favorecidos, apoiou financeiramente os eruditos, rabinos e alunos das ieshivot, e fez da Cidade Judaica um lugar onde seus irmãos, judeus, podiam viver decentemente. Foi ele quem pavimentou as ruelas lamacentas do bairro judaico, e seu nome está ligado à grande maioria dos edifícios construídos enquanto viveu. Empreendeu a construção da Grande Sinagoga, em estilo renascentista, inaugurada em 1568, e o edifício da Prefeitura Judaica. Maisel financiou ainda a ampliação do cemitério, construiu um hospital para os carentes, uma micvê, a Sinagoga Klausen e a sinagoga que leva seu nome, a Sinagoga Maisel.

Em 1598, o imperador Rodolfo II decretou que Maisel poderia dispor livremente de seus bens após seu falecimento. Mas, após a sua morte, em 1601, toda a sua fortuna foi confiscada.

Não restam dúvidas de que o líder espiritual mais proeminente na história judaica de Praga foi o Rabi Yehuda Loew (1525-1609), conhecido como o Maharal de Praga. Líder destemido, era um exímio cabalista, importante mestre da Halachá e da Agadá. O Maharalé muito conhecido por ter criado o Golem – uma criatura de barro que protegia a comunidade judaica de Praga contra os ataques liderados por antissemitas.

Guerra dos Trinta Anos

No início do século 17 a comunidade judaica de Praga já somava seis mil pessoas, tornando-se, na década seguinte, a segunda maior na Europa depois de Roma.

Outro grande benfeitor e líder comunitário surgiu em Praga no século 17: Yaacov Bashevi (1570-1634). Entre outros, Bashevi obteve permissão do governador da Boêmia para que, em 1623, os judeus de Praga comprassem 39 casas de cristãos, transação essa que permitiu aumentar a limitada Cidade Judaica.

Ele ocupou lugar de destaque junto aos imperadores Rodolfo II e seu irmão, Matias, e a Fernando II. Foi o primeiro judeu nos domínios dos Habsburgos a receber um título de nobreza, passando a usar o nome de Yaacov Bashevi von Treuenberg. Teve papel importante na corte de Fernando II, a quem prestara grande assistência financeira durante a Guerra dos 30 Anos (1618–1648). Esse conflito se iniciara na Boêmia, com a revolta dos protestantes contra as tentativas do imperador Fernando II de impor o Catolicismo em seus domínios.

A devastação provocada pela Guerra não teve consequências dramáticas para a comunidade judaica de Praga, já que Fernando II, desesperado por apoio econômico, procurou garantir sua segurança. Enquanto suas tropas saqueavam Praga, em 1620, após a Batalha da Montanha Branca, por exemplo, o imperador lhes proibiu de danificar a Cidade Judaica. Em 1623 e 1627, Fernando II permitiu aos judeus negociar livremente e os isentou de taxas alfandegárias e de pedágio. Em troca, porém, a comunidade judaica foi obrigada a concordar com um aumento considerável nos impostos e a fornecer ao imperador um vultuoso empréstimo.

Apesar dos pesados impostos que drenaram os recursos comunitários, a comunidade judaica de Praga continua a crescer, chegando a 7.815 pessoas em 1638.

A população judaica e o Estatuto das Famílias

Na década de 1680 dois desastres naturais quase tiraram do mapa a Cidade Judaica. O primeiro foi a praga de 1680, que ceifou a vida de mais de três mil de nossos correligionários. Nove anos mais tarde, em junho de 1689, um incêndio devastou a Cidade Judaica destruindo 318 casas, 11 sinagogas e tirando a vida de 150 pessoas.

Como se não bastasse, o antijudaísmo era cada vez mais forte. Os judeus eram forçados pelo clero cristão a assistir sermões proselitistas e todos os seus livros eram censurados. Ademais, sofriam constantes ataques dos jesuítas. Estes costumavam realizar julgamentos e sessões de tortura públicos para “convencer” as massas a se tornarem católicos devotos. Os judeus, naturalmente, levavam a pior nessas verdadeiras “sessões teatrais”.

No início do séc. 18, os judeus representavam metade da população da Cidade Velha de Praga. Na época, a cidade abrigava a maior comunidade judaica do mundo.

O século 18, o “Século das Luzes”, viu o surgimento do Iluminismo, um movimento intelectual e filosófico que enfatizava a razão e os direitos naturais do ser humano. Mas, nos domínios dos Habsburgos, os judeus ainda estavam sujeitos a restrições e discriminações medievais. Somente alguns “judeus úteis” gozavam de privilégios especiais.

Há algum tempo, vinham tomando corpo em Praga certas “ideias” para o controle da população judaica, chegando-se a considerar a sua transferência para fora dos limites da Cidade Velha e da Boêmia.

Até que em 1726-1727 o imperador Carlos VI emite o famigerado “Estatuto das Famílias”, pois considerava “intolerável” o crescimento da população judaica. Tais leis decretavam que apenas 8.541 famílias judias seriam “toleradas” na Boêmia e que apenas o filho mais velho de uma família teria o direito de se casar. Caso os demais quisessem se casar teriam que fazê-lo de forma ilegal, no interior do reino ou sob proteção da nobreza, ou até mesmo deixar o país. Essa legislação permaneceu em vigor por cerca de 120 anos, até 1848.

A vida dos judeus se torna ainda mais precária quando, em 1740, Maria Theresa sobe ao trono do Sacro Império Romano-Germânico. Católica fervorosa, ela considerava protestantes e judeus “elementos perigosos”. Extremamente antissemita, algo que jamais negou, a imperatriz revelou seus sentimentos em várias ocasiões. Em 1777, escreveu: “Não conheço maior praga do que essa raça ... sua falsidade, usura e avareza..., na medida do possível, os judeus devem ser evitados e mantidos à distância”.

Maria Theresa impôs tributos ainda mais pesados aos súditos judeus e, em dezembro de 1744, decide expulsá-los da Boêmia. A oposição das autoridades municipais não impediu que os judeus de Praga tivessem que deixar a cidade em janeiro de 1745. Uma intensa pressão política internacional levou a imperatriz a permitir, de má vontade, que eles permanecessem por um tempo em aldeias a uma distância mínima de dois dias de viagem de Praga.

A expulsão foi devastadora para a economia da cidade e, em agosto de 1748, após a intervenção de autoridades municipais, os judeus foram autorizados a retornar. Maria Theresa, porém, lhes impôs um pesado “imposto de tolerância” anual, para evitar futuras expulsões.

Ao voltar, os judeus encontraram seu bairro em ruínas. A reconstrução foi interrompida quando, em 1754, irrompeu um incêndio que destruiu 190 casas e seis sinagogas. O custo da reconstrução e o “imposto de tolerância”, que a imperatriz incessantemente aumentava, minaram economicamente a comunidade. Ainda assim, a cultura judaica continuou a florescer. Entre os rabinos do século 18 destacaram-se Simon Spira-Wedeles, Elias Spira, David Oppenheim e Yehezkel Landau.

O “Edito de Tolerância”

A vida dos judeus só melhora quando José II (1780-1790), filho de Maria Theresa, torna-se Imperador Romano-Germânico. Para Maria Theresa, a única forma de resolver “a questão judaica” era expulsando os judeus do Império, com o que José II, no entanto, não concordava. Ele considerava as leis que regulavam a vida judaica um anacronismo medieval, prejudicial à economia do Império. Os judeus passam a ser vistos sob outra ótica que não a cristã, que levava em conta sua “utilidade” para o Estado.

O imperador acreditava que o Estado devia adotar uma política econômica intervencionista e protecionista que visasse o desenvolvimento da indústria e do comércio exterior, e estava ciente de que os judeus eram experientes no comércio e nas finanças, com amplas conexões internacionais. Além disso, havia entre eles os que haviam acumulado uma riqueza líquida. Para o Estado, o “problema judaico” deixa então a esfera religiosa passando para a econômica e política.

José II consegue exercer plenamente o poder depois da morte da mãe, em 1780. No ano seguinte, emite o Toleranzpatent – o “Edito de Tolerância”, que concedeu a liberdade de culto a todos os cristãos, embora os protestantes não obtivessem todos os direitos.

O debate sobre a “questão judaica” tomou as ruas de Viena e Praga. O governo boêmio argumentava que, em vez de dar direitos aos judeus, o imperador deveria deportar todos, exceto os mais ricos. Mas, apesar dos argumentos contrários, em outubro de 1781 José II emitiu o Edito de Tolerância para os judeus da Boêmia. É importante ressaltar que não era uma declaração de igualdade de direitos. O Edito mantinha as restrições acerca do número de judeus que poderiam se estabelecer em Praga e as terríveis Leis do Estatuto das Famílias.

Os judeus“tolerados” – ainda estavam sujeitos a rigorosas cotas e impostos especiais – podiam viver onde quisessem, apesar de não poderem adquirir imóveis ou erguer uma sinagoga. Podiam também frequentar universidades. Praga se torna um importante centro da Haskalá, o Iluminismo Judaico, e os acadêmicos judeus alcançam grande sucesso na Medicina, Direito e na área de Humanidades.

Por outro lado, foram postas em vigor várias leis para acabar com as particularidades do Judaísmo e sua estrutura comunitária. Foi abolida a autoridade dos Beit Din, os tribunais judaicos,excetuando-se nas questões religiosas e maritais. Foi proibido o uso do iídiche e do hebraico e passou a ser obrigatória a reforma do sistema educacional, sendo criadas escolas primárias seculares supervisionadas pelo Estado. Em 1786, somente os judeus que se formassem nessas escolas tinham permissão para se casar. Uma lei de 1787 obriga os judeus a adotarem sobrenomes alemães.

Uma vez derrubadas as barreiras legais, abriram-se as portas para a entrada dos judeus na sociedade maior, o que irá causar uma assimilação sem precedentes.

Igualdade e Assimilação

Em 1789, a Revolução Francesa sacode a Europa. As notícias da emancipação dos judeus franceses percorrem esse continente como um raio de esperança. Em 1799, um golpe de Estado leva Napoleão ao poder e os exércitos napoleônicos iniciam sua conquista de grande parte do continente europeu, levando consigo os ideais de liberdade e igualdade. Derrubam-se os guetos da Europa e os judeus são emancipados.

O Sacro Império Romano-Germânico, atacado por Napoleão, é dissolvido em 1806 e Francisco IIé obrigado a abdicar do trono, tornando-se imperador da Áustria.

Entretanto, a Inglaterra, o Império Turco-otomano, a Rússia e o Reino de Nápoles formam uma poderosa aliança e conseguem derrotar Napoleão. Após essa derrota é formado o Congresso de Viena, uma conferência entre grandes potências europeias para redesenhar o mapa político do continente europeu. O Congresso encerrou suas atividades em 1815 e entre as resoluções estava a criação da Confederação Germânica, sob hegemonia austríaca.

Em 1848, os judeus recebem direitos iguais perante a primeira Constituição austríaca e o Estatuto das Famílias é abolido. Na época, a comunidade judaica de Praga, com uma população de mais de 10 milpessoas, era uma das maiores da Europa. A partir de 1852, os judeus tiveram permissão para possuir propriedades e, em 1859, a possuir terras. O processo de emancipação judaica na Áustria-Hungria foi completado quando da promulgação da constituição de 1867.

A comunidade judaica de Praga do século 19 foi marcada por duas tendências: por um lado, os judeus fizeram enormes avanços na vida econômica e cultural da sociedade checa, e, por outro, houve a erosão quase total da vida religiosa judaica na Boêmia. Como resultado da emancipação do século 19, os judeus foram-se integrando ao Estado laico, e sua estrutura comunitária, que definira a vida judaica por mais de 500 anos, foi desmantelada. Muitas comunidades judaicas da Europa Central apresentavam alta taxa de assimilação, mas, em Praga, o afastamento dos judeus de sua tradição ocorreu mais cedo, sendo ainda mais severo, chegando a causar a estagnação em seus números populacionais. Em 1890 eram 27 mil os judeus de Praga, em 1921 o número chegava a meros 32 mil.

Quais teriam sido as razões para esse afastamento sem paralelo de nossas tradições? Primeiro, foi o Edito da Tolerância e a abrangente transformação da comunidade e da educação judaica. Segundo, foi a plena emancipação dos judeus em 1867. Em sua ânsia por se assimilar, os judeus de Praga abraçaram plenamente o idioma e a cultura alemã.

Prósperos e confiantes no futuro, buscavam demonstrar sua nova situação, de liberdade existencial e sucesso financeiro. E inauguram, em 1868, uma nova sinagoga, a majestosa Sinagoga Espanhola, condizente com a emancipação que vivenciavam.

  1. A história de Lubossa (Libuše) foi recontada no séc. 12 por Cosme de Praga em sua obra Chronica Boemoru.
  2. Historiografia: The Czech Chronicle, de Václav Hájek de Libočany, séc. 16.
  3. Malá Strana em checo significa “Margem Pequena do Rio”. Embora seja mais utilizado em português o termo “Cidade Inferior”, o nome se originou do fato do local ficar na margem esquerda (oeste) do rio Moldava, nas encostas da montanha onde fica o Castelo de Praga, em oposição às maiores áreas da cidade que ficam na margem direita (a leste) do rio.
  4. O local é hoje conhecido como Distrito de Josefov, geralmente chamado de Bairro Judaico ou Gueto Judaico de Praga.

Bibliografia

Čapková, Kateřina e Kieval, Hillel, J. Prague and Beyond: Jews in the Bohemian Lands   (English Edition), Kindle

Valley, Eli, Great Jewish Cities of Central and Eastern Europe: A Travel Guide & Resource Book to Prague, Warsaw, Crakow & Budapest

V.V. Tomek, Jewish Stories of Prague: Jewish Prague in History and Legend (English Edition). Kindle