Com o falecimento da Rainha Elizabeth II, o Reino Unido tem um novo rei, Charles III. Se há alguém, na família real, que tenha uma conexão particularmente forte com a comunidade judaica, esse alguém é o Rei Charles III. O novo monarca é patrono de várias instituições de caridade judaicas e fã de nossa cultura. Sempre se manifestou publicamente contra o antissemitismo, sobre a necessidade de não esquecer o Holocausto, e tem um vínculo especial com Israel.

Aos 73 anos de idade, Charles III é a pessoa de mais idade a ascender ao trono britânico. Ele é o primogênito da Rainha Elizabeth II e do Príncipe Philip. Foi casado com a falecida Princesa Diana e a separação do casal, que culminou com seu divórcio em 1996, ocupou as manchetes do mundo todo. O casal teve dois filhos, os Príncipes William e Harry. Com sua subida ao poder, Charles III passa a ser o líder da Commonwealth, um conglomerado de 56 países independentes com um total de 2,5 bilhões de pessoas. De 14 desses países, entre os quais o Reino Unido, o Rei é também Chefe de Estado. E reina, também, sobre os 300 mil judeus que vivem na Grã-Bretanha.

Considerado extremamente amável e cuidadoso com os que o cercam, Charles fez da promoção da tolerância uma de suas bandeiras, denunciando o antissemitismo e alertando contra os perigos do extremismo e da perseguição, além de insistir em recordar aos demais a importância das lições do Holocausto.

A simpatia e a proximidade de Charles com a comunidade judaica são consideradas uma herança de seu pai, o falecido Príncipe Philip. Este último tinha amigos próximos entre os membros dessa comunidade e foi o primeiro da família real a visitar Israel, ainda que em caráter particular. Ademais, sua mãe, a Princesa Alice de Battenberg, recebeu o título de “Justa Entre as Nações” por seu humanismo e coragem, escondendo uma família judia em sua residência, em Atenas, durante a 2a Guerra Mundial. A Princesa Alice está enterrada em Jerusalém, atendendo seus últimos desejos, como vimos em outro artigo desta edição.

A falecida Rainha Elizabeth II também conduziu eventos para os judeus britânicos e participou de atos em recordação do Holocausto, sendo muito amada por seu povo. Contudo, nunca visitou Israel. A Rainha esteve em visitas oficiais a 117 países, entre os quais alguns nos Oriente Médio, como Catar e Arábia Saudita, e foi a Chefe de Estado que mais viagens empreendeu, na história. O fato de nunca ter visitado Israel irritou inúmeras pessoas na comunidade judaica inglesa, bem como políticos israelenses.

Circuncidado por um Rabino

A forte conexão do novo monarca com os judeus se iniciou com sua própria circuncisão, pois Charles foi circuncidado em 1948 pelo Rabi Jacob Snowman, médico e um dos principais mohelim de Londres. O Rabino Snowman foi o escolhido pela Rainha que acreditava que ele tivesse mais experiência e renome na realização das circuncisões do que um médico comum.

Não se sabe a razão para os filhos da família real britânica serem geralmente circuncisos. Há teorias que afirmam que a tradição vem desde o início da década de 1700, com o Rei George I (que reinou de 1714 – 1727), ou que se tenha iniciado com a Rainha Victoria (que reinou de 1837 – 1901), que acreditava que a família real inglesa descendia diretamente do Rei David, o nosso David ha-Melech.

Esse hábito também era prática comum quando do nascimento do então Príncipe Charles. Segundo o The Telegraph, 20% de todos os meninos nascidos no Reino Unido eram circuncidados, na década de 1950.

Orações judaicas pela família real

Desde 1801, recita-se uma prece pela Família Real, a cada Shabat, na maioria das sinagogas britânicas, no momento do serviço religioso em que nas demais comunidades do mundo se faz a oração pelo bem-estar do governo local e do Estado de Israel.

Abaixo um pequeno trecho da oração que era proferida em prol da saúde da Rainha e da Família Real, quando Elizabeth ainda era viva:

“Aquele que dá a salvação aos reis e poder aos príncipes, cujo reino é um reino eterno, que Ele abençoe nossa Soberana, a Senhora Rainha Elizabeth II; Philip, Duque de Edimburgo; Charles, Príncipe de Gales e toda a Família Real...”.

Após o falecimento da Rainha Elizabeth II, as palavras dessa oração foram substituídas, passando a dizer, pela primeira vez em 70 anos: “Nosso Soberano, o Lorde Rei Charles III”, em vez de “Nossa Soberana a Senhora Rainha Elizabeth II”.

Essa oração emociona Charles III que a ela se refere em tantas de suas aparições públicas em eventos judaicos, bem como na festa pré-Chanucá auspiciada por ele no Palácio de Buckingham, em 2019.

Na ocasião, o hoje Rei expressou seu apreço pela comunidade judaica de seu reino: “Em todas as camadas sociais e em todas as áreas de atividade, nossa nação não poderia contar com cidadãos mais generosos e amigos mais fiéis. A conexão entre a Coroa e nossa Comunidade Judaica é algo especial e precioso. Eu o digo a partir de uma perspectiva particular e pessoal, pois cresci sendo profundamente tocado pelo fato de as sinagogas britânicas terem, por séculos, recordado minha família em suas preces semanais. E, assim como vocês se recordam de minha família, nós também os recordamos e celebramos com vocês”.

Laços com o Judaísmo britânico

Os vínculos do novo Rei com a comunidade judaica são profundos. Charles é patrono de inúmeras instituições, tais como o Fundo Mundial de Assistência Judaica (World Jewish Relief), a agência humanitária da comunidade judaico-britânica; o Museu Judaico; o Fundo para o Dia em Memória do Holocausto, e a Brigada dos Rapazes e Moças Judeus, um grupo juvenil judaico.

O Rei Charles sempre contribuiu para inúmeras causas judaicas. Com financiamento de suas próprias instituições de caridade, fundou o Centro Comunitário de Cracóvia, na Polônia. Em 2002, em uma visita auspiciada pelo World Jewish Relief, ele conheceu o que restava da outrora vibrante comunidade judaica de Cracóvia e se dispôs a ajudá-los. Seis anos depois, o hoje Rei voltou ao Centro, onde pessoalmente afixou a mezuzá à entrada.

Sua fundação também assiste o projeto de transformar a Sinagoga Merthyr Tydfil, uma construção do século 19 de inspiração galesa, em um Centro Galês de Herança Judaica. O monarca visitou pessoalmente o local.

Durante a celebração da festa pré-Chanucá de 2019, no Palácio de Buckingham, ao mencionar seu profundo envolvimento com as causas e organizações judaicas, Charles III declarou em seu pronunciamento que via aquele gesto “como o mínimo que podia fazer para tentar retribuir, de uma maneira singela, as imensas bênçãos que o Povo Judeu trouxe a esta terra, e, com efeito, a toda a humanidade”.

O novo Rei é frequentemente convidado para várias celebrações e eventos de arrecadação da comunidade judaica, já tendo visitado escolas, sinagogas e centros de preservação da memória do Holocausto no Reino Unidos e em outras partes. Os eventos em que esteve presente são em número grande demais para serem listados.

Em 1998, ele compareceu à comemoração do 50o aniversário da criação do Estado de Israel, na St. John’s Wood Synagogue, em Londres. Na ocasião, o então Rabino Chefe Lorde Jonathan Sacks ZT’L, de saudosa memória, elogiou o apoio do então Príncipe de Gales às demais religiões não pertencentes à Igreja da Inglaterra. Em 2018, Charles também esteve presente na celebração do 70o aniversário de Israel.

Charles era amigo íntimo do saudoso Rabino Chefe Lorde Sacks. E foi o principal palestrante em seu Jantar de Despedida, quando este último se aposentou desse importante cargo, em maio de 2013. Na ocasião, o então Príncipe de Gales comentou que, apesar de os dois serem da mesma idade, tendo nascido no mesmo ano da criação do Estado de Israel, o Rabino Chefe já podia se aposentar – ao passo que ele, o Príncipe, sequer havia começado o seu principal trabalho. E se referiu ao Lorde Sacks como um “amigo constante” e um “valioso conselheiro”. Nesse mesmo ano, Charles III também participou da instalação no Rabinato Chefe da Inglaterra, em uma sinagoga londrina, do Rabino Chefe Ephraim Mirvis, com quem ele também tem um bom relacionamento. Ele foi o primeiro membro da família real a presenciar a posse de um Rabino Chefe.

Conta-se que quando o Rabino Sacks faleceu, em 2020, Charles teria ficado devastado pela perda e fez um emocionado discurso em memória de seu amigo e mestre. Em suas palavras, considerava aquela uma “perda irreparável” e o chamava de “um guia confiável, um mestre inspirado e um amigo verdadeiro e constante”. “Sentirei sua falta mais do que minhas palavras podem expressar”.

Em fevereiro deste ano de 2022, Charles inaugurou uma estátua, em Winchester, homenageando uma mulher judia do século 13, Licoricia. Essa senhora, que concedia empréstimos, ajudou a financiar a construção da Abadia de Westminster. Acredita-se que ela teria apoiado financeiramente três reis da Inglaterra. Licoricia é considerada a mulher judia mais importante da Inglaterra medieval.

Para a comunidade judaica britânica, o novo Rei Charles III é considerado um amigo fiel, um “fiador da tolerância”.

Israel

Em 2018, o Príncipe William, filho de Charles e Diana, tornou-se o primeiro membro da família real britânica a visitar Israel de modo oficial. O Príncipe Philip e seu filho Charles haviam estado no país anteriormente, mas suas viagens não foram consideradas oficiais pela Coroa. Em 1995, o Príncipe Charles esteve presente no funeral de Yitzhak Rabin e, em 2016, no de Shimon Peres. Este último havia sido condecorado Cavaleiro Honorário da Grã-Bretanha em 2008.

Em 2020, Charles realizou sua primeira visita oficial a Israel. Ele é o membro mais sênior da família real britânica a realizar tal visita desde a criação do Estado. Durante sua estada no país, Charles reuniu-se com o então Presidente Reuven Rivlin, um grupo de sobreviventes do Holocausto e participou de uma cerimônia em Yad Vashem; visitou a exposição dos Pergaminhos do Mar Morto e o túmulo de sua avó, a Princesa Alice de Battenberg, o que também fizera em suas visitas anteriores. A Princesa está enterrada na Igreja Maria Magdalena, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém.

Em 2021, Charles recebeu o Presidente de Israel, Isaac Herzog, em sua residência campestre, em Gloucestershire.

Recordando o Holocausto

A Família Real tem profundo envolvimento com a Educação e Memória do Holocausto, trabalhando ativamente para manter viva a lembrança da Shoá.

O falecido Príncipe Philip apoiava as atividades de organizações como o Fundo Educacional sobre o Holocausto, fundado em 1988. Essa instituição educa os jovens de todas as origens acerca do que foi o Holocausto e as importantes lições que se aplicam ainda hoje.

Em 2015, a Rainha Elizabeth II e o Príncipe Philip fizeram uma emocionante visita ao local do campo de concentração de Bergen-Belsen, libertado pelas tropas britânicas em abril de 1945. Apesar das limitações por força de sua idade, a Rainha quebrou o protocolo, demorando-se muito mais do que o programado para ouvir a história de cada um dos sobreviventes de Auschwitz, na ocasião.

Em 2015, Charles se tornou Patrono do Fundo para o Dia da Memória do Holocausto, substituindo sua mãe, que, até então, ocupava o patronato. Essa fundação é a instituição de caridade criada e financiada pelo governo do Reino Unido para a promoção e apoio do Dia da Memória do Holocausto. Os atuais Príncipe e a Princesa de Gales (William e Kate) também estão envolvidos com as atividades do Dia da Memória.

O hoje Rei Charles III tem demonstrado grande empatia pelas trágicas experiências vividas pelos judeus na história recente. Em 2018, ele ofereceu uma recepção na Clarence House, sua residência em Londres, para comemorar o 80o aniversário do Kindertransport, uma campanha de resgate das crianças judias dos territórios controlados pelos nazistas pouco antes da 2a Guerra Mundial.

Em janeiro de 2020, Charles viajou a Israel para o 5º Fórum Internacional do Holocausto, no Yad Vashem, em Jerusalém. A cerimônia marcava o 75o aniversário da libertação do campo de morte de Auschwitz. Dezenas de líderes mundiais estiveram no evento, entre os quais o Presidente Emmanuel Macron, da França, e o Presidente Vladimir Putin, da Rússia. Sem dúvida, o discurso do hoje Rei Charles III foi dos mais emocionantes.

Ele se reuniu com o então Presidente Reuven Rivlin, na residência oficial, em Jerusalém, antes da cerimônia. “Para mim, esta é uma experiência de grande significado”, disse o hoje Rei ao Presidente Rivlin. “Muitos de meus professores, no colégio, eram sobreviventes do Holocausto e todos nós estamos profundamente comprometidos em combater o antissemitismo”.

Charles foi o orador principal nessa cerimônia. Em seu pronunciamento, ele afirmou que o mundo precisava “ser destemido ao se confrontar com notícias falsas e resoluto ao resistir a palavras e atos de violência”. E continuou: “Não podemos permitir que o Holocausto se torne um simples fato na História; não podemos cessar de nos horrorizar com o testemunho daqueles que vivenciaram esse horror. A vivência deles deverá sempre nos educar, nos guiar e nos alertar”. Charles advertiu contra as lições “ardentemente relevantes” do Holocausto, nestes tempos em que o ódio e a intolerância “ainda nos contam novas mentiras, adotam novos disfarces e seguem buscando novas vítimas”.

Durante o Fórum, Charles conversou longamente com sobreviventes do Holocausto, interessado em conhecer sua história. “Ele demonstrou grande interesse em conhecer os detalhes sobre Auschwitz e saber como havíamos conseguido sobreviver”, explicou a sobrevivente Marta Weiss, que conversou com o monarca durante essa visita.

Em janeiro deste ano de 2022, por ocasião do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, foi exibida no Palácio de Buckingham uma exposição intitulada Sete Retratos: Sobrevivendo ao Holocausto. Charles encarregou sete renomados artistas de pintar o retrato de sete conhecidos sobreviventes do Holocausto. Os quadros passarão a fazer parte da Coleção Real de Arte.

A introdução ao catálogo da exposição foi escrita pelo próprio Charles III: “Atrás de cada retratose esconde uma história única de uma vida salva, de amor, de perda. No entanto, esses retratosrepresentam algo muito maior do que sete notáveis seres humanos. Eles são um memorial vivo para os seis milhões de homens, mulheres e crianças inocentes cujas histórias nunca serão contadas, cujos rostos nunca serão pintados. Eles constituem um poderoso testamento da resiliência e coragem muito extraordinárias daqueles que sobreviveram e que, a despeito de sua idade avançada, continuam a contar ao mundo as inimagináveis atrocidades que vivenciaram. Eles constituem um lembrete permanente para nossa geração – e, de fato, para as futuras gerações – da profundidade da depravação e maldade de que a humanidade pode cair presa quando a razão, a compaixão e a verdade são abandonadas”. Esse projeto é parte do objetivo do Rei de longa data de educar as futuras gerações e de assegurar que os horrores do Holocausto jamais sejam olvidados. “Com o declínio, triste, mas inevitável, dos sobreviventes, tenho a esperança constante de que esta coleção sirva de guia iluminador no futuro”, afirmou.

Na cerimônia inaugural, Lily Eber, de 98 anos, retratada entre os sete sobreviventes expostos, mostrou a tatuagem que lhe foi feita, à força, ao chegar a Auschwitz; e disse a Charles: “Ao conhecê-lo sinto que o faço por todos aqueles que perderam a vida”. Ao que o hoje Rei respondeu: “Mas o meu privilégio é ainda muito maior que o seu”.

No passado, o Rei Charles III alertou o mundo contra os perigos do crescente antissemitismo e outras formas de intolerância no Reino Unido. Alertou, também contra “as distorções da História que tentam diminuir ou negar a vivência judaica povoada de antissemitismo, ao longo de milênios, mas particularmente no Holocausto”.

Defensor de todas as religiões

Quando de sua coroação no dia 6 de maio de 2023, o Rei Charles III receberá, entre outros, o título de Defensor da Fé – o Defensor da Igreja da Inglaterra. Em 1994, Charles deu motivo para uma controvérsia ao afirmar que seria “defensor de todas as fés”, evidenciando seu desejo de refletir a diversidade religiosa da Grã-Bretanha. Em suas próprias palavras, ele pretende ser verdadeiro “protetor da fé” e da liberdade de culto do povo de seu país.

Enquanto fechávamos esta edição, o jornal The Jerusalem Post noticiava que o dia da coroação de Charles III cairá num Shabat. Fazendo questão absoluta da presença do Rabino Chefe Ephraim Mirvis, o Soberano o convidou, juntamente com sua esposa, para passarem a noite na Clarence House, sua residência, localizada a alguns minutos a pé do Buckingham Palace, onde será realizada a cerimônia. Desta forma, o Rabino-Chefe da Comunidade Britânica, judeu ortodoxo, poderá caminhar até a cerimônia de coroação de Charles III.

Com todas essas credenciais, o hoje Rei também presta reverência à comunidade judaica de uma maneira muito carinhosa. Ele possui sua própria kipá, que usa em todos os eventos judaicos a que comparece. Seu solidéu em veludo azul é ornado com o brasão real do Príncipe de Gales, seu título anterior, bordado em fio de ouro e linha de seda branca.

Amigo verdadeiro do Povo Judeu, o Rei Charles III faz jus às bençãos nas orações de Shabat realizadas nas sinagogas em todo o Reino Unido. Acredita-se que a comunidade judaica do Reino Unido não poderia ter um melhor amigo ou soberano do que Charles III.

BIBLIOGRAFIA

King Charles III: A friend to UK Jewry, with special and historic ties to Israel, artigo publicado na edição de 10 de setembro de 2022 pelo Times of Israel por Itamar Sharon e equipe da redação do jornal

King Charles III and the Jews, artigo publicado em 11 de setembro de 2022 no site https://aish.com por Yivette Alt Miller

Prince Charles speech: name check for World Jewish Relief, discurso do Rei Charles III proferido no Palácio de Buckingham em 5 de dezembro de 2019 publicado no site https://www.worldjewishrelief.org/news/977