Romancista, dramaturgo, jornalista, ensaísta e editor, Sholem Aleichem foi um dos fundadores da literatura iídiche moderna. Criador de personagens imortais, ele abriu, para o mundo, uma janela fascinante que descortinou, com sabedoria, ternura e emoção, o universo dos judeus do Leste Europeu. Estes povoaram a sensibilidade do autor quando começaram a se assimilar, ou repudiaram a assimilação; quando se defrontaram com as modernidades culturais, políticas e religiosas que inundavam o Império Russo nas últimas décadas do século 19.

O IDIOMA

A obra literária de Sholem Aleichem foi toda produzida em iídiche. Literalmente, o vocábulo iídiche significa judeu. Na linguística, se refere ao idioma falado pelos judeus Ashkenazim, os judeus da Europa Central e Oriental. Embora seu vocabulário básico e sua gramática sejam derivados do alemão medieval, o iídiche é integrado por outras línguas, incluindo alemão, hebraico, aramaico e ainda várias línguas eslavas e românicas.

É impossível definir onde ou quando o iídiche surgiu, mas a teoria mais aceita é que tenha entrado em formação no século 10, quando judeus da França e da Itália começaram a migrar para o Vale do Reno alemão. Lá misturaram com o germânico as línguas que falavam dando origem à forma mais antiga do iídiche. À medida que os judeus continuavam a migrar para o leste, o iídiche se espalhou pela Europa Central e Oriental e começou a incluir mais elementos das línguas eslavas.

Nas  comunidades Ashkenazim, o hebraico era a língua do Tanach e das orações. O iídiche era a língua do cotidiano.  A partir do século 14, o iídiche começou a ser usado para poemas épicos. As publicações impressas nesse idioma, com caracteres hebraicos, se espalharam na década de 1540, quase um século após a invenção da imprensa.

No século 18, os judeus de língua alemã estavam se aculturando rapidamente. Na Europa Ocidental, os líderes da Haskalá (o Iluminismo judaico) fizeram uma intensa campanha para o uso do alemão em vez do iídiche, que julgavam um “jargão bárbaro”. Ao mesmo tempo, no século 19, o iídiche florescia na Europa Oriental, chegando a atingir milhões de falantes. O final daquele século assinalou o nascimento da literatura iídiche moderna. O pioneiro desse movimento foi o escritor Sholem Yankev Abramovitch, conhecido por seu pseudônimo - Mendele Mocher Sforim - que teve em Sholem Aleichem seu maior seguidor.

Em 1908, a primeira conferência internacional sobre a língua iídiche foi realizada na cidade de Tchernowitz, na Bessarábia. O iídiche foi então declarado “o idioma nacional do Povo Judeu”.

Antes da 2a Guerra Mundial havia no mundo cerca de 13 milhões de pessoas que falavam iídiche. Este número foi drasticamente reduzido pelo Holocausto e, depois do conflito, pela ascensão do hebraico, em Israel. Permanece vivo no século 21, por ser o idioma corrente entre os judeus ortodoxos e continua sendo estudado e cultuado por judeus em todos os continentes. O iídiche é resiliente em sua singularidade: de fato, é uma língua nacional, sem jamais ter tido uma pátria.

Apreciado de forma somente acadêmica, o iídiche esconde algumas de suas mais sedutoras características: o humor, o sarcasmo, a irreverência e a ironia, tais como fluem nas obras de seus principais escritores e poetas. A autora americana Cynthia Ozick tem para o idioma uma preciosa definição:
“O iídiche é uma língua que não possui grandeza de catedral, mas é a única língua no mundo que chama D’us pelo diminutivo: góteniu”.

As originalidades do iídiche propiciaram centenas de provérbios que permeiam a obra de Sholem Aleichem e de outros autores. Eis alguns deles:

- Modéstia em excesso não deixa de ser meia vaidade.
- De longe você pode enganar os outros, de perto só a você mesmo.
- A sorte do ignorante é ele não saber que não sabe.
- O bom mentiroso precisa de uma boa memória.
- A tolice é uma planta que cresce sem que se precise regar.
- O sábio sabe o que diz. O tolo diz o que sabe.
- Coisas boas são lembradas, as más são sentidas.
- Para quem não pode comer galinha, caviar também serve.
- A pobreza não é nenhuma vergonha, mas também não é nenhuma honraria.
- Não se vive de alegria, nem se morre de tristeza.

O iídiche viveu seu momento de glória quando o Prêmio Nobel de Literatura de 1978 foi conferido a Isaac Bashevis Singer (1902-1991), autor inigualável de contos e romances, todos em iídiche.

 No banquete em sua homenagem, na Suécia, o início de seu discurso de agradecimento é uma joia de devoção ao idioma no qual sempre escreveu.

“As pessoas me perguntam frequentemente: por que você escreve em uma língua que está morrendo? Explico isso em poucas palavras. Primeiro, eu gosto de escrever histórias de fantasmas e nada combina melhor com um fantasma do que uma língua agonizante. Quanto mais morta a língua, mais vivo é o fantasma. E fantasmas amam o iídiche. Até onde eu sei, todos eles falam. Em segundo lugar, não só acredito em fantasmas, como também acredito em ressurreição. Tenho certeza de que milhões de mortos que falam iídiche um dia se levantarão de seus túmulos e sua primeira pergunta será: há algum livro novo em iídiche? Para eles, o iídiche não estará morto. Em terceiro lugar, por dois mil anos o hebraico foi considerado uma língua morta. De repente, se tornou viva. O que aconteceu com o hebraico também pode acontecer com o iídiche. Ainda há uma quarta razão menor para não abandonar o iídiche que é a seguinte: o iídiche pode ser uma língua em extinção, mas é a única língua que conheço bem. O iídiche é minha língua materna e uma mãe nunca morre de verdade”.

A BIOGRAFIA

Sholem Aleichem (1859-1915) é mais lembrado como o autor das histórias sobre Tevye, o Leiteiro, que foram adaptadas com imenso sucesso para um musical da Broadway e um filme de Hollywood. Ele é considerado o escritor do povo, um autor cujos contos e romances capturaram com paixão e humor o mundo em aniquilação da vida judaica tradicional e religiosa em cada shtetl (pequena cidade) da Polônia e da Rússia Imperial. Também é apontado nos Estados Unidos como o “Mark Twain judeu”. Se for comparado a algum escritor brasileiro, seu tom irônico percorre as páginas de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Mas há um conteúdo muito mais grandioso em sua obra e em seu legado.

Shalom Rabinowitch, seu verdadeiro nome, nasceu em 1859 na Ucrânia, pertencente à Rússia czarista. Seu pai tinha posses, mas por diversas circunstâncias perdeu quase tudo. Com o pouco dinheiro que sobrou, primeiro tentou montar uma estalagem e depois se dedicou ao comércio de madeiras. A mãe de Sholem morreu quando ele era pequeno e o menino cresceu numa casa abastada e depois passou por tempos difíceis, submetido os caprichos de uma madrasta que não suportava.

Embora religioso, seu pai deu ao filho uma educação tradicional e moderna, de modo que, na adolescência, Sholem era fluente não apenas no iídiche nativo, mas também em russo e  hebraico. Leu os clássicos russos no original e as traduções para o russo das obras de Dickens. Era um rapaz com instrução acima da média.

Foi contratado como professor de russo de uma jovem chamada Olga. Quando o pai da moça, um rico possuidor de propriedades, descobriu que entre sua filha e o professor havia um romance em movimento, demitiu Sholem. Por mais de dois anos, o rapaz trabalhou como “rabino da Coroa”, uma espécie de função pública criada pelas autoridades para lidar com assuntos oficiais, como registrar nascimentos, óbitos e servir como um elo entre a comunidade judaica e o estado czarista.

No entanto, o romance prevaleceu e Sholem e Olga se casaram, fazendo com que ele fosse acolhido nos negócios da família. Quando o sogro morreu, em 1887, Sholem herdou suas valiosas propriedades. Tornado um homem rico, se mudou com a mulher e dois filhos para Kiev, capital da Ucrânia. Autor iniciante, escrevendo em iídiche, adotou o pseudônimo Sholem Aleichem, uma saudação em iídiche equivalente a “paz para todos”. Seu propósito era se afirmar como um contador de histórias, destinado a agradar as pessoas comuns. Embora o iídiche ainda não tivesse alcançado um patamar literário, estava determinado a ser fiel ao idioma de sua infância. Usou a herança para editar e publicar uma antologia literária que incluía escritos de Mendele Mocher Sforim e de um autor emergente de grande talento, I.L. Peretz. Com Mendele, formou uma amizade duradoura; com Peretz, foi o início de uma rivalidade intelectual ao longo de toda a sua vida.

Sholem Aleichem publicou uma segunda antologia de literatura iídiche e planejava uma terceira quando, em 1890, perdeu sua fortuna na bolsa de ações de Kiev. Ele e Olga, um casamento bem-sucedido, tinham então cinco filhos e estavam nas vésperas do sexto. Os problemas financeiros da família lhe inspiraram, em 1891, à criação de seu primeiro grande personagem, Menahem Mendl. Tratava-se de um judeu que lutava para ganhar a vida negociando com tudo e com todos, nunca deixando o fracasso interferir em seus planos de enriquecimento.

Em 1894, Sholem Aleichem conheceu um leiteiro loquaz chamado Tevye e começou a escrever histórias que o tinham como personagem central, ao lado da esposa e de numerosas filhas. Em 1911, publicou essas histórias num livro sob o título  Tevye, o Leiteiro. Com grande originalidade, as narrativas estão escritas como um monólogo contínuo, exposto pelo personagem principal. Ele fez de Tevye o arquétipo do judeu pobre e trabalhador do shtetl, sempre resiliente. 

Em 1905, irrompeu uma revolução contra o regime czarista. Quando a revolução foi esmagada, ele e a família tiveram a sorte de escapar de um pogrom em Kiev. Decidiu que era hora de deixar a Rússia e arriscar a vida na América como dramaturgo, na esteira de sua fama como escritor. Tinha como objetivo empreender encenações de teatro em iídiche, atividade artística cada vez mais popular em Nova York. Após uma aclamada turnê de palestras em capitais europeias, incluindo Viena, Paris e Londres, Sholem desembarcou em 1906 em Nova York, onde teve uma recepção de herói. No entanto, os “grandes” do teatro iídiche, os atores Jacob Adler e Boris Tomashevsky, rejeitaram suas peças. Enveredando por outros caminhos, conseguiu levar ao palco duas peças, mas ambas fracassaram. Para se sustentar, ganhava a vida escrevendo em iídiche para dois jornais.

Desolado, retornou para a Ucrânia. Em 1908, adoeceu com tuberculose e passou a maior parte dos quatro anos seguintes convalescendo no norte da Itália, Suíça e Alemanha.

Durante todo esse período, recebeu direitos autorais de seus livros a par de ganhos com traduções do russo. Naqueles anos, escreveu histórias ambientadas em vagões ferroviários de terceira classe, povoados por viajantes judeus loquazes, histórias que estão entre suas melhores. Uma delas, O Milagre de Hoshana Rabba, ficcionou um debate entre um judeu e um padre ortodoxo russo sobre o significado da vida e da morte, que é considerado um primor de comicidade. Seu romance mais sério, A Terrível Trapaça, de 1912, teve como inspiração O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain.

Recuperado em 1913, planejou permanecer na Europa, mas a 1ª Guerra Mundial interveio. Como ele e a família eram súditos russos, corriam o risco de serem presos como estrangeiros inimigos. Rumou para Copenhague e de dali embarcou para os Estados Unidos e demorou algum tempo até que a família a ele se juntasse. A morte de um filho, deixado para trás na Dinamarca, foi um dos momentos mais devastadores de sua vida.

Mais uma vez, sobreviveu escrevendo para a imprensa iídiche e complementando a renda com turnês de palestras. Durante seus dois últimos anos na América, Sholem Aleichem começou a escrever suas memórias, Da Feira Livre, que cobrem apenas seus primeiros anos de vida. Continuou a trabalhar no livro Motl, o Filho do Cantor, um romance sobre as aventuras de uma família e de seus amigos que emigram da Rússia para a América, vistos pelos olhos de um menino de nove anos. O personagem Motl também se tornou icônico, por reunir experiências vividas por imigrantes judeus vindos da Europa Oriental e começando novas existências nos Estados Unidos. As peripécias de Motl  foram produzidas em duas partes. A primeira, localizada na Europa, foi composta durante e após a decepcionante estada de Sholem em Manhattan. Esta primeira parte foi publicada em folhetins no jornal iídiche de Nova York, Der Amerikaner. Após longo hiato, retornou ao personagem central em 1915, focalizando a chegada de Motl a Nova York. Esta segunda parte, embora inacabada por causa da morte do autor, foi serializada em tradução para o inglês, no jornal New York World e em mais de outros 20 jornais americanos.

Sholem Aleichem faleceu de tuberculose e diabetes no dia 13 de maio de 1916, aos 57 anos. Seu funeral assumiu proporções lendárias. Yossele Rosenblatt, o cantor de sinagoga mais famoso da época, cantou a tradicional canção litúrgica El Maale Rachamim. O cortejo fúnebre saiu do Bronx, passou pelo Lower East Side de Nova York e seguiu até um cemitério no Brooklyn, tendo sido acompanhado no total do trajeto por cerca de 200 mil pessoas. Duas semanas depois houve no Carnegie Hall um grande memorial em sua homenagem, ao qual compareceram líderes das comunidades judaicas de mais de duas dezenas de estados americanos e os maiores escritores e intelectuais judeus da época. Seu testamento foi impresso no The New York Times e lido por um congressista no Capitólio.

Em sua lápide, lê-se: “Aqui jaz um judeu simples e correto, que escreveu em prosa simples e direta. Escreveu com humor para as pessoas comuns, para ajudá-las a esquecer seus problemas”.

Num magnífico ensaio, o escritor americano Bennett Raskin enfatiza que Sholem Aleichem ajudou a criar sua própria lenda, porque era um judeu cosmopolita que trabalhava com intensidade em seu ofício, atraía leitores de todas as classes sociais e, embora tivesse sua cota de tragédias, estava sempre cercado por uma família amorosa e muitos amigos. Com o passar do tempo, seus romances e contos foram amplamente traduzidos para o inglês e muitas outras línguas, incluindo o chinês. Junto com Sholem Asch e Isaac Bashevis Singer, está entre os escritores judeus mais conhecidos no mundo não judeu. Comparando os três, ele tinha uma visão mais generosa sobre a natureza humana.

Em seu testamento, Sholem Aleichem incluiu um pedido especial. Para honrar sua memória, por ocasião dos aniversários de sua morte: “Selecionar uma de minhas histórias, uma das mais alegres, e recitá-la em qualquer idioma que seja o mais inteligível para os ouvintes. Que meu nome seja lembrado com risos ou, então, que nem seja lembrado”.

O MUSICAL

As histórias de Tevye, o Leiteiro foram a inspiração para um musical da Broadway, Um Violinista no Telhado, o espetáculo que, até hoje, mais tempo ali ficou em cartaz e que, nos últimos 60 anos, teve cinco remontagens profissionais e incontáveis montagens amadoras.

O papel principal coube ao ator Zero Mostel (1915-1977), um comediante de primeira grandeza. O escritor americano Irving Howe (1920-1993), consagrado autor do livro The World of Our Fathers (O Mundo dos Nossos Pais), assim escreveu no primeiro parágrafo de sua apreciação sobre o espetáculo musical. 

“Sholem Aleichem era um gênio, Zero Mostel é um gênio. Some os dois e o resultado só pode ser extraordinário, uma união de talentos e de almas. O escritor, um mestre cômico de uma tradição em extinção; o ator, um virtuoso da expressividade do palco”.

No entanto, apesar de tantos elogios e ao contrário da maioria dos críticos teatrais americanos, Howe julgou que o espetáculo não tinha conseguido captar o espírito de Sholem Aleichem em sua completa dimensão porque Tevye, conforme argumentou, era grande nas páginas de um livro e tinha ficado menor quando adaptado para o palco. Achou, inclusive, que Sholem Aleichem havia perdido sua essência quando traduzido para o inglês.

Há, de fato, uma natural dificuldade para traduzir o iídiche, não pelo idioma em si, mas por se tratar do iídiche tal como expresso por Sholem Aleichem, cujas verve e ironia se instilam entre suas histórias como se precisassem ser capturadas antes que fugissem.

Apesar das restrições do respeitado Irving Howe, foi torrencial o sucesso teatral de Um Violinista. Quando o musical completou seu 50º aniversário, com sucessivas reencenações em diversos estados americanos, o historiador Edward Shapiro saudou a data com um artigo significativo.

“Já se passaram cinquenta anos desde que Um Violinista no Telhado estreou na Broadway, no dia 22 de setembro de 1964, no Imperial Theater, em Nova York. No decorrer de meio século, atingiu um status mítico entre os judeus americanos. Existem poucos judeus americanos adultos que não estejam familiarizados com a representação teatral ou cinematográfica das tribulações de Tevye com sua mulher Golde e com suas três filhas mais velhas. Ninguém associado ao Violinista previu que o espetáculo seria um sucesso tão extraordinário. Os produtores decerto ficariam felizes se o musical permanecesse em cartaz por cerca de um ano. Espetáculos anteriores e posteriores da Broadway com temas judaicos na melhor das hipóteses alcançaram sucessos apenas razoáveis e poucos achavam que atrairia tantos espectadores não judeus.”

O Violinista foi um dos maiores sucessos da história da Broadway e seus investidores ganharam fortunas. Nas décadas de 1960 e 1970, o musical foi apresentado em espanhol, alemão, húngaro, tcheco, turco, grego, sueco, russo, hebraico e iídiche. No Japão, a versão se tornou o musical americano de maior tempo em cartaz. A versão britânica, tendo como protagonista o ator israelense Topol, foi apresentada por quatro anos e meio. O crítico de teatro do The New York Times, Clive Barnes, escreveu em 1967 que o Violinista, depois de apenas três anos, havia se tornado um clássico vivo e vibrante e que criticá-lo seria como criticar a eternidade. Portanto, assim como a eternidade, tinha vindo para ficar.

Jerome Robbins, o coreógrafo, e Harold Prince, o diretor, souberam retratar as singularidades da vida judaica num shtetl da Rússia, no início do século 20. Elaboraram tudo da forma mais verdadeira possível, inclusive tendo fornecido ao elenco publicações sobre a vida dos judeus no Leste Europeu na referida época. Shapiro acentuou que, numa hipotética competição entre a verossimilhança histórica e as exigências do teatro, as duas premissas tinham saído vitoriosas.

É fato que os criadores do Violinista tomaram liberdades com relação à obra de Sholem Aleichem, mas seus pilares estavam no palco. São relevantes os momentos nos quais Tevye se dirige a D’us com intimidade. É verdadeira a intransigência do pai quando uma das filhas se une a um rapaz russo não judeu. Nas aldeias, os casamenteiros eram homens e, no teatro essa função foi assumida por uma mulher, a divertida Yente, mas a rigor dava no mesmo. Sholem Aleichem zomba dos casamentos por conveniência e faz triunfar o amor da filha mais velha por um alfaiate pobre, um final feliz bem ao gosto do público americano. No final do primeiro ato, a cerimônia do casamento é conspurcada por um pogrom que reflete uma triste realidade. O fundamental é que em Um Violinista no Telhado nada precisava ser autêntico, bastava que fosse legítimo.

Dentre as canções do espetáculo, há uma particularmente encantadora, Se eu fosse rico, que bem capta o espírito de Sholem Aleichem.

Se eu fosse rico,
os homens mais importantes
da cidade viriam me bajular.
Eles me pediriam para aconselhá-los
como um Salomão, o Sábio.
Por favor, Reb Tevye,
perdoe-me, Reb Tevye,
propondo questões
que um rabino não saberia
como responder.
E não faria a menor
diferença se eu respondesse
certo ou errado.
Quando se é rico, eles acham
que a gente realmente sabe.

O FILME

Foi o coreógrafo Jerome Robbins (Jerome Rabinovitch, 1918-1988) quem se inspirou em Um Violinista no Telhado, famoso óleo do pintor Marc Chagall (1887-1985), para enfeixar a adaptação para um espetáculo musical a partir do conteúdo da obra de Sholem Aleichem. Tanto assim, que, na cena inicial do filme, aparece na tela um violinista tocando seu instrumento em cima de um telhado, enquanto Tevye, o Leiteiro explica o motivo daquela cena insólita: “Tradição! Se não fosse a nossa tradição, nossa vida seria tão instável quanto a de um violinista num telhado”.

O diretor Norman Jewison (1926-2024), seduzido pela encenação que tinha assistido mais de uma vez na Broadway, decidiu adaptar o musical para o cinema. Jewison e sua equipe de produção viajaram para o interior da Iugoslávia a fim de encontrar o equivalente a um shtetl russo do início do século 20. Buscavam uma localidade que ainda tivesse casas e cercas de madeira, ruas de terra batida e uma praça central na qual ficaria o mercado da minúscula cidade chamada Anatevka, tudo à feição da descrição ficcional do autor literário. O maior problema era encontrar uma construção que se assemelhasse a uma sinagoga toda feita de madeira. Impossível. Inflou o orçamento do filme e mandou construir uma sinagoga, com o cuidado de ornar seu interior com reproduções de desenhos com motivos do zodíaco judaico.

No decorrer da filmagem, foram levantadas questões sobre a autenticidade dos cenários, dos figurinos e do comportamento dos personagens. A crítica em tom demolidor, escrita por Irving Howe oito anos antes, tinha deixado um peso. Mas, Norman Jewison acreditou na qualidade artística de sua equipe e partiu do princípio de que não se empenhava num filme para o público judeu, mas para todos os públicos e porque confiava na universalidade de Tevye. Quando o elenco do filme foi anunciado, a imprensa indagou a Jewison, com indignação e veemência, o motivo de haver escalado para o papel principal o ator israelense Topol (1935-2023), em vez de Zero Mostel. Jewison respondeu que seu critério tinha sido escalar o filme com os intérpretes que mais dessem a impressão de pertencer a um shtetl. No seu entender, Topol era um Tevye nato, enquanto Mostel parecia um judeu do Brooklyn. Onde Jewison descobriu Topol? O ator estava interpretando Tevye em Londres. Jerome Robbins, que lá também assinava a direção do espetáculo, convenceu Jewison de que Topol era o ideal para o protagonista.

O próprio Topol me falou sobre a sua enorme surpresa quando lhe foi oferecido o papel no filme. No ano da filmagem, 1972, ele tinha 35 anos e seu personagem no mínimo mais de 60. Contou-me que levou Galia, a mulher, e os filhos para Zagreb, capital da Iugoslávia, onde alugou uma casa e todos lá ficaram por quatro meses e meio, o tempo de duração das filmagens. Os trabalhos, conforme disse, transcorreram sem incidentes. O numeroso elenco, vindo dos Estados Unidos e da Inglaterra, se comportava como uma família. Topol detestou o regime comunista então existente na Iugoslávia e, em conversa com os figurantes nativos, constatou que estes detestavam o regime mais do que ele. Reproduzo uma curiosa narrativa que dele ouvi: “No dia da filmagem em que eu deveria cantar Se eu fosse rico, me bateu uma horrível dor de dente. Portanto, se deixei transparecer na tela alguma aflição durante a cena, não tinha a ver com o personagem, era por causa da dor de dente”.

Bibliografia

Dauber, Jeremy. The Worlds of Sholem

Aleichem. Schocken, EUA, 20134

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.