Em maio, o Mossad anunciou a repatriação de 2,5 mil documentos e objetos relacionados ao espião israelense Eli Cohen, enforcado em Damasco em 1965, e dos restos mortais do sargento Zvi Feldman, morto em 1982 em combate com inimigos sírios. As ações recentes trouxeram lembranças de dois capítulos de heroísmo e de sacrifício na história de Israel.
Por Jaime Spitzcovsky
“Israel está tentando estabelecer contato com grupos que colaboraram com facções palestinas para encontrar o corpo de um dos três soldados que desapareceram durante uma batalha no vale do Bekaa, durante a invasão do Líbano, em 1982. Essa dupla abordagem israelense integra a política de Israel de fazer todos os esforços para repatriar seus cidadãos sejam eles civis, soldados ou agentes, vivos ou mortos”, escreveu o escritor e jornalista Zevi Ghivelder na edição de abril de 2025 da Morashá.
Os dois resgates anunciados em maio ocorreram depois de iniciativas na Síria pós-Bashar al-Assad. Em comunicado conjunto, o Mossad e as Forças de Defesa de Israel (FDI), atuantes em conjunto na repatriação dos restos mortais de Zvi Feldman, declararam: “Depois da recuperação, a identidade foi confirmada pelo Centro de Identificação de DNA do Rabinato Militar, e a família foi notificada pelas FDI, na presença do primeiro-ministro”.
Na operação, participaram agentes do Mossad não-israelenses, atuando a dezenas de quilômetros da fronteira de Israel, segundo o jornal The Times of Israel. As buscas começaram logo após a trágica batalha de Sultan Yacoub, na Primeira Guerra do Líbano, em 1982, quando a Síria mantinha importante presença militar em território libanês. Naquele enfrentamento, morreram 30 militares israelenses e seis desapareceram, entre eles os tripulantes de um tanque: Zachary Baumel, Zvi Feldman e Yehuda Katz.
Em 2019, graças a uma intervenção do governo russo, aliado do então ditador Al-Assad, foram repatriados os restos mortais de Baumel. Israel segue nas buscas pelo paradeiro de Yehuda Katz.
O Mossad também continua a tentar resgatar o corpo de Eli Cohen, espião que se infiltrou em altos escalões do governo sírio e, de Damasco, forneceu valiosas informações a Jerusalém, fundamentais, por exemplo, na vitória sobre a Síria na Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Porém, um grande avanço no resgate da memória de Eli Cohen veio à luz em maio, com o anúncio da recuperação de 2,5 mil documentos, fotos e objetos relacionados às atividades do agente secreto israelense. Os arquivos continham, por exemplo, o passaporte falso, chaves de seu apartamento em Damasco e cartas à família, escritas em árabe, por determinação de seus algozes pouco antes do enforcamento, perpetrado a 19 de maio de 1965, na praça Marja, região central da capital síria.
Nascido em Alexandria, Egito, em 1924, e filho de pais sírios, Eli Cohen fez aliá em 1957. Três anos depois, começou a trabalhar no serviço de inteligência, no qual se destacou por sua perspicácia e capacidade analítica. Acabou protagonizando uma das mais importantes e arriscadas missões: infiltrar-se no alto escalão do governo sírio.
O plano fez Eli Cohen assumir uma nova identidade, a de Kamel Amin Thaabet. Passou um tempo em Buenos Aires, para depois morar em Damasco, sob o disfarce de um homem de negócios de origem síria e oriundo da América do Sul. O plano obteve sucesso. Eli Cohen conquistou a confiança de lideranças políticas e militares de um dos países mais hostis a Israel. Passou informações sobre lutas pelo poder em Damasco, sobre as relações do país com seu maior aliado, a União Soviética, e, de fundamental importância, sobre movimentações bélicas da Síria.
Em certas ocasiões, Eli Cohen retornava a Israel, para se reunir com o Mossad e para rever familiares. Passava antes por uma capital europeia, para não despertar suspeitas. Em uma das viagens, na Suíça, comprou um sofisticado relógio Eterna-Matic Centenaire 61, sempre empenhado em manter a imagem de um próspero empresário.
O apartamento de Eli Cohen era palco de festas para a alta sociedade síria e também central para sua espionagem. De lá, passou a transmitir mensagens a Israel em código Morse, até que autoridades da Síria interceptaram a comunicação. Terminava assim a história de um dos mais importantes personagens do Estado Judeu.
Em 2018, as buscas pelos restos mortais do espião trouxeram um resultado. Foi repatriado o relógio Eterna-Matic Centenaire 61, milimetricamente examinado para se ter a certeza de sua origem. Arquivos suíços, fotos de Eli Cohen e avaliações de peritos forenses comprovaram a conquista do Mossad.
Em 2025, Nadia Cohen, a viúva, recebeu um convite para se reunir, no Knesset, com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e David Barnea, diretor do Mossad. “Havia fotógrafos lá, e eu não tinha ideia do que iria ver ou ouvir”, declarou ela à mídia israelense.
Na entrevista, Nadia expressou uma frustração: a falta da aliança de casamento. “Eu sonhava em tê-la. Dedi (David Barnea) não me mostrou um anel, e eu estava incrivelmente tensa. Havia uma mesa comprida, coberta por documentos e alguns poucos itens. Eu me sentei ao lado do primeiro-ministro, e ele disse, ‘Este é nosso presente, conseguimos na Síria’. Eu não consegui acreditar no que via. Estava profundamente emocionada”, relatou a viúva.
Ao anunciar a repatriação dos arquivos, Israel não detalhou como os obteve, limitando-se a declarar ser resultado de “uma operação complexa e secreta, em cooperação com um serviço de inteligência estrangeiro aliado”.
Especulações e versões proliferaram na tentativa de destrinchar a operação. Houve quem apontasse participação da Turquia, aliada do novo governo sírio, apesar das desgastadas relações entre Ancara e Jerusalém.
Segundo a agência de notícias Reuters, a entrega dos documentos a Israel recebeu sinal verde do novo governo sírio, no que seria um gesto de boa vontade de Damasco em relação a Israel e ao presidente Donald Trump, que recentemente reconheceu o regime dos rebeldes responsáveis pela derrubada da ditadura de Bashar Al-Assad, em dezembro passado.
Segundo uma das versões, rebeldes liderados pelo atual líder sírio, Ahmad Al-Sharaa, encontraram o chamado Dossiê Cohen num prédio dos serviços de segurança da ditadura Al-Assad. Outro relato, publicado no Líbano, trouxe outros detalhes: o material estaria nos arquivos do Escritório de Segurança Nacional e a apenas alguns quilômetros da residência do ditador sírio. O prédio, ao contrário da maioria das instalações dos serviços de segurança da Síria, atravessou intacto os 14 anos de guerra no país.
Nadia Cohen rechaçou a ideia de participação do novo governo sírio na entrega dos arquivos. Já sua filha, Sophie Ben-Dor, em entrevista ao site Ynet, disse esperar que os itens recuperados possam trazer pistas sobre o local onde seu pai esteja enterrado. “O problema é que não há uma indicação clara, ninguém que saiba com certeza. Há muitos que dizem saber, que tentam vender informação, que desejam ser parte da história ou lucrar com ela. O Mossad tem muito trabalho para fazer para achar a pista real”.
Anos atrás, o serviço de inteligência israelense descobriu que Eli Cohen havia sido enterrado no cemitério judaico de Damasco. No entanto, seus restos mortais foram transladados para outros locais várias vezes, em iniciativas para dificultar o trabalho do Mossad. Hoje, especialistas israelenses acreditam que até as autoridades sírias desconheçam o paradeiro.
Sophie Ben-Dor, no entanto, acredita que as pistas possam estar com Bashar Al-Assad, que hoje vive na Rússia. “Espero que Trump nos ajude. Espero que ele nos ajude com Putin, que poderia falar com Assad e obter informações dele.”
Jaime Spitzcovsky colaborador da Folha de S.Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.