Louis Armstrong, popularmente conhecido como “Satchmo” ou “Pops”, foi provavelmente o maior e o mais apreciado músico de jazz do século 20. Um músico de qualidade superior, Armstrong era fruto da herança afro-americana, mas muito influenciado pela tradição judaica. Durante toda a sua vida, ele amava o povo judeu, por quem tinha grande admiração.

Um virtuoso trompetista, de grande fama, com sua voz grave diferenciada, esse músico carismático é conhecido por sua interpretação de canções como “What a Wonderful World”, “Hello Dolly” e “La Vie En Rose”. Seu estilo influenciou inúmeros músicos e sua carreira atravessou cinco décadas, por diferentes eras da história do jazz. Somente cessaria suas apresentações e gravações pouco antes de falecer, em 1971. E, curiosamente, uma das primeiras inspirações musicais desse verdadeiro prodígio musical foi uma família de mascates judeus para quem ele trabalhou, ainda menino, em Nova Orleans.

Primeiros anos

Louis Armstrong nasceu em 4 de agosto de 1901, em Nova Orleans, no estado de Louisiana, na época da segregação racial no sul dos Estados Unidos. A abolição da escravatura nessa região, em 1865, não significou a integração social para os milhões de negros: a segregação racial, social e política foi mantida até 1964, quando o Congresso americano aprovou a Lei dos Direitos Civis, após duas décadas de demonstrações e reinvindicações orquestradas pelos movimentos em prol dos direitos civis. Armstrong cresceu em um ambiente hostil e violento, em que os negros eram frequentemente vítima de violência racial e constantemente mal-tratados e humilhados.

Sua infância foi difícil. Seu pai, Willie Armstrong, abandonou a família quando Louis nasceu. Sua mãe, sozinha, digladiava-se para sustentar a família e eles levavam uma vida de pobreza e dificuldades. O bairro onde viviam era tão pobre e perigoso que era conhecido por “Campo de Batalha”. A comida muitas vezes não era suficiente e os três – ele, a mãe e a irmã – dividiam a mesma cama. Armstrong adorava sua mãe, que não poupou esforços para educá-los da melhor forma possível, e era um jovem dedicado ao máximo à família.

Como muitas outras crianças, à época, e a maioria das que ele conhecia, Armstrong começou a trabalhar ainda menino para ajudar a alimentar sua família. Quando estava na 5ª série do Fundamental, ele abandonou a escola para procurar um trabalho e ajudar na subsistência de sua pequena família.

Em suas próprias palavras

Em 1969, enquanto se recuperava de um problema cardíaco e renal no Hospital Beth Israel, em Nova York, ele escreveu Louis Armstrong + The Jewish Family in New Orleans, La., The year of 1907 (em tradução livre, Louis Armstrong + A Família Judia em Nova Orleans, La., O Ano de 1907). Esse documento é uma pura ode de amor ao Povo Judeu.

Louis o dedicou a seu agente Joe Glaser, que há muito o acompanhava, e que foi outra figura judia de muita relevância em sua vida. A dedicatória a Glaser diz: “Para o melhor amigo que tive em toda a minha vida/ Que D’us o abençoe/ E o guarde por todo o sempre”, e assinava “De seu menino + discípulo que o amava profundamente”.

Ao que tudo indica, Armstrong se motivou a contar sua história por inspiração de seu médico, também judeu, o Dr. Gary Zucker, a quem ele ouvira cantar uma canção de ninar, em russo, que Louis reconhecera de sua infância. Nas palavras de Satchmo, o Dr. Zucker havia salvado sua vida.

A canção do médico despertara em suas lembranças uma canção de ninar cantada pelos Karnofsky, família judaica lituana para quem ele trabalhara. No texto Louis Armstrong + A Família Judia,ele descreve, com grande carinho, o seu relacionamento com a família Karnofsky, quando tinha meros sete anos de idade. Alguns historiadores questionam a linha de tempo dos acontecimentos e acreditam que tais experiências tenham ocorrido quando ele já tinha mais idade. Mas essas são as recordações de Armstrong enfaticamente relatadas por ele.

A família Karnofsky empregava o pequeno Louis para a coleta de sucata e entrega de carvão. Eles tinham cinco filhos que logo fizeram amizade com o menino. Acompanhado pelos dois meninos da família Karnofsky, Alex e Morris, ele usava um apito de lata, e lá iam os três, no vagão de carvão e sucata da família, alertando potenciais clientes interessados naqueles materiais. Anos depois um musicólogo afirmaria que aquele apito infantil fora o primeiro instrumento do grande Louis Armstrong.

Os Karnofsky viviam perto do “Campo de Batalha”, do outro lado dos trilhos da estrada de ferro, em um bairro de classe baixa de famílias brancas, próximo a outras famílias judias recém-chegadas da Lituânia. Eles eram uma comunidade unida que se autoajudava no enfrentamento ao flagrante antissemitismo circundante. Por pior que fosse, era “refresco” se comparado com os pogroms em sua terra natal, na Europa. Como relata Armstrong em sua narrativa, os judeus “enfrentavam seus próprios problemas – além da perseguição sofrida pelas outras comunidades brancas que se consideravam ‘superiores’ aos judeus... Eu era apenas um menino de sete anos, mas percebia claramente o tratamento desumano com que os brancos tratavam a pobre família judia para quem eu trabalhava”.

A segregação era galopante e aplicada com severidade em Nova Orleans. Era raro ver-se uma família branca que abrisse sua casa e seu coração a uma criança negra. Mas, os Karnofsky recebiam Armstrong em casa e o tratavam com carinho, afeto, respeito e o incentivavam – e ele lhes era imensamente grato por isso. Era comum o convidarem para fazer as refeições com eles, o que levou à paixão que Louis teve a vida toda pelas nossas matzot!

A família Karnofsky também era muito musical. Com frequência, Armstrong creditava o desenvolvimento de seu estilo musical ao estímulo e a ajuda financeira que recebera da família: “O Povo Judeu tem uma alma maravilhosa. Sempre apreciei e ainda aprecio tudo o que eles cantam”. Ele contava como costumava se juntar a eles para entoar uma canção de ninar para adormecer o bebê da família. “Mamãe Karnofsky carregava o bebezinho nos braços e o embalava. E nós todos cantávamos até o bebê adormecer. Eram momentos delicados e de muita doçura. E aí todos se desejavam boa noite”. Nas palavras de John McCusker, historiador de jazz e fotojornalista aposentado, “Louis contava que foram os Karnofsky que instilaram em seu coração o amor pelo canto”.

Esses atos de bondade tiveram um tremendo impacto em uma criança negra em uma época em que vigorava um rígido apartheid. Armstrong descreve tais momentos de grande calor humano e amorosidade. Também narra a estabilidade e tranquilidade que havia naquele lar. Para ele, a casa dos Karnofsky era seu “segundo lar”. A casa, que se tornou a primeira loja de jazz de Nova Orleans, foi destacada pelo Patrimônio Histórico Nacional como local histórico a ser preservado. Infelizmente foi destruída em 2021 pelo furacão Ida.

Louis afirmava que essa família o tinha ajudado a comprar sua primeira corneta e que lhe tinha dado o primeiro incentivo e apoio emocional para ele tocar e cantar, do fundo de seu coração. “Um dia, estando no vagão de carvão com Morris Karnofsky… passamos por uma Casa de Penhores em cuja vitrine havia uma antiga Corneta Bi Plana, toda oxidada. Custava apenas US$5 – Morris me adiantou US$2 – do meu salário. E eu comecei a guardar 50 centavos a cada semana do meu pequeno salário – até que finalmente a corneta foi totalmente paga. Puxa... como eu fiquei feliz! O pequeno instrumento estava bem sujo. Morris o limpou com um produto para polimento e aplicou um óleo em todo o instrumento, esterilizando o seu interior. Depois de soprar um pouco, eu percebi que conseguia tocar ‘Home Sweet Home’ … Guardei aquele instrumento por muito tempo.”

Morris Karnofsky se tornou um amigo da vida toda de Armstrong. Ele abriu a primeira loja de discos de jazz, em Nova Orleans, como mencionado anteriormente, e Louis o visitava sempre que voltava à cidade depois que se mudou de lá.

A vivência com a família Karnofsky teve efeito tão transformador que Louis se tornou um grande admirador do nosso povo. Em seu texto, mencionado acima, ele relata como admirava os judeus por vencerem o preconceito unindo-se em suas comunidades, como admirava a ética judaica no trabalho e como aprendera com eles a viver a vida com determinação.

Como era sabido, Armstrong sempre usava um Maguen David que lhe fora dado por seu agente, também judeu, além de ter uma mezuzá na porta de sua casa – segundo relatou o musicólogo John Baron. Herb Snitzer, famoso fotógrafo de jazz, capturou uma imagem de Armstrong em um ônibus, em 1960, com sua Estrela de David bem visível, e escreveu com subtítulo: “Louis não tirou sua Estrela do pescoço a vida toda”.

Na contramão de seu desejo de ver publicado seu texto Louis Armstrong + A Família Judia, esse material ficou esquecido entre seus documentos após sua morte, em 1971, sem ter sido publicado em seu formato original até 1999. Até hoje, a maioria dos estudiosos o cita cautelosamente, pois esse material também contém muitas críticas à comunidade afro-americana.

Em Louis Armstrong + A Família Judia, o grande e inesquecível músico escreveu a seguinte declaração, muito singela e tocante: “Hei de amar o Povo Judeu por toda a minha vida. Eles sempre foram calorosos comigo, gentis, e sempre calaram fundo dentro de mim – que era apenas uma criança que precisava de uma palavra de carinho e de gentileza”.

Bibliografia

Hurricane Ida levels Jewish family home where Louis Armstrong found inspiration, artigo de Ron Kampeas publicado em 1 de setembro de 2021 no jornal Times of Israel

Louis Armstrong and the Jewish Family, artigo de M. Rosenzweig publicado no site https://aish.com

Satchmo and the Jews -Louis Armstrong’s heterodox views, artigo de Terry Teachout publicado  em novembro de 2009 no site https://www.commentary.org/article