A palavra pogrom, oriunda do idioma russo, pode ser traduzida de forma literal como matança, massacre ou chacina. No entanto, esta palavra somente assume característica própria quando define a matança de judeus. O vocábulo está em curso há cerca de 200 anos, tendo sido absorvido por outras dezenas de idiomas.

Por que estigma? Porque o estigma pode ser definido como a cicatriz deixada por uma ferida. No caso do pogrom, é uma ferida aberta há séculos e que assim permanece. É uma ferida que embora parecesse estar contida, expôs suas vísceras no feroz e atroz pogrom que no dia 7 de outubro de 2023 vitimou 1.200 cidadãos israelenses e de outras nacionalidades, a grandíssima maioria judeus, no território de seu próprio país. Este pogrom foi perpetrado pelo Hamas, organização terrorista detentora de absoluto poder na Faixa de Gaza, fronteiriça com o sul de Israel. O artigo número um do parágrafo número um da Carta do Hamas prega a extinção pela força do Estado Judeu, uma proposição aceita passivamente pela comunidade internacional.

DESDE SEMPRE

Há especulações quanto à ocorrência do primeiro morticínio tendo judeus como alvo explícito. Alguns historiadores apontam a ocorrência de pogroms na Antiguidade e na Idade Média. De 1189 a 1190, aconteceram pogroms em Londres, York e outras cidades e vilas na Inglaterra. Estes ataques mortais se inscrevem como algumas das piores atrocidades cometidas contra os judeus europeus naquela quadra da história. Seguiram-se em diferentes países da Europa com outros ataques ao longo dos séculos. Durante as Cruzadas, os integrantes de tais “excursões bélicas” rumo à Terra Santa aproveitavam o decorrer de longas jornadas para infligir martírios a judeus que por acaso encontrassem em seus caminhos.

Um dos mais acurados registros sobre os pogroms assinala o ocorrido em Odessa, na Crimeia, em 1821. Mas, ao contrário de todos os demais, desferidos na Rússia czarista, na Polônia e na Bessarábia, como veremos mais adiante o de Odessa não teve os russos como algozes. Outro registro confiável aponta a existência de pogroms em shtetls (aldeias habitadas com maioria de judeus) espalhadas pelo Império Russo. Essas referidas carnificinas se tornaram mais comuns e violentas a partir do dia 20 de março de 1881, dois dias depois do assassinato do czar Alexandre II. O monarca foi vítima de um atentado praticado por jovens anarquistas, a mando de uma mulher envolvida em problemas com a polícia do imperador. Embora isso tivesse sido evidenciado, o crime foi atribuído a um complô judaico e os banhos de sangue se sucederam, alguns chegando a durar três dias.

A eclosão da Revolução Bolchevique propiciou nova série de pogroms. Calcula-se que na guerra civil travada de 1918 a 1920, pelo menos 30 mil judeus, foram mortos em pogroms em todo o antigo Império Russo. Estudos revelam que grande número dos pogroms foi executado por nacionalistas ucranianos acompanhados por bandos de hooligans (vândalos). Os conflitos e matanças se estenderam até a Polônia, onde as autoridades fingiam não ver o que estava acontecendo com os judeus.

As sangrentas violências cometidas naqueles anos foram inescapáveis para os judeus e vinham de duas direções. De um lado estava o Exército Vermelho, aliado dos revolucionários comunistas. Fiel ao arraigado antissemitismo russo, o Exército Vermelho atacava aldeias judaicas nos intervalos de batalhas contra o outro lado, o Exército Branco. Este era constituído por contrarrevolucionários fiéis ao regime do czar, que sempre teve um viés profundamente antissemita. Ambos tinham razões próprias para desferir pogroms. Os vermelhos agiam por tradição e alguns de seus comandantes não se conformavam com a volumosa presença de judeus em suas fileiras e se ressentiam da poderosa liderança exercida pelo judeu Leon Bronstein, conhecido como Trotski. Os brancos, por seu turno, atribuíam à influência judaica à ascensão do comunismo, apontando o mesmo Trotski como exemplo.

FRAUDE MORTAL

A monarquia russa tinha ligações de parentesco com casas reais da Europa central e da Inglaterra. Os pogroms desferidos nos seus domínios territoriais concorriam para que o czar Nicolau II e a aristocracia russa fossem vistos como indesejáveis seres humanos por incentivar ou aceitar a consumação de barbáries.

Era preciso, portanto, elaborar algum expediente que justificasse e até mesmo validasse as sucessivas matanças de judeus. O serviço secreto do imperador se incumbiu de produzir um folheto fraudulento e calunioso intitulado Os Protocolos dos Sábios de Sião. A publicação, alçada à falsa condição de documento autêntico, era engenhosa e se reportava a uma série de reuniões que teriam sido realizadas em Basileia, Suíça. A data e o local foram escolhidos com esmero: agosto de 1897, para coincidir com a realização do Primeiro Congresso Mundial Sionista, naquela cidade.  Conforme seu conteúdo, judeus e maçons ali traçaram planos para erodir a civilização cristã e, por consequência, dominar o mundo. Seus destrutivos fundamentos ideológicos eram o liberalismo e o socialismo.

Uma versão concisa de Os Protocolos foi impressa na Rússia em 1903 e entregue a um jornal diário que publicou um resumo da difamação. Dois anos depois, a edição inicial teve um adendo ainda mais contundente da autoria de um funcionário do czar. Os Protocolos foram de imediato traduzidos para o alemão, francês, inglês e, ao longo dos anos, houve traduções para outros idiomas mundo afora, atingindo uma longevidade que poucos clássicos da literatura universal até hoje alcançaram. A par da longevidade, é pungente a maneira pela qual Os Protocolos foram aceitos como verdadeiros e difundidos sem questionamentos no século 20 e assim se estendem até o século atual. Ademais, além de ter dado um “respaldo” ideológico a massacres de judeus, sua falsa narrativa ganhou substância como um dos pilares do antissemitismo.

Em 1920, o jornalista e diplomata britânico judeu Lucien Wolf expôs Os Protocolos como um plágio fraudulento em um livro com argumentos irrespondíveis. No mesmo ano, nos Estados Unidos, o jornal Dearborn Independent, pertencente a Henry Ford, publicou longa matéria intitulada O Judeu Internacional, versão americanizada de Os Protocolos. Este texto foi encaminhado para mais de uma dúzia de idiomas e em seguida deu origem a um livro com o mesmo título. No ano seguinte, o jornalista irlandês Phillip Graves denunciou Os Protocolos como plágio de um autor francês do século 19 em uma série de artigos no jornal The Times, de Londres. Logo em seguida, o repórter do jornal New York Herald, Herman Bernstein, publicou A História de uma Mentira: Os Protocolos dos Sábios de Sião, a primeira revelação para o público americano da publicação czarista como flagrante fraude.

Ainda nos anos de 1920, Os Protocolos foram citados em textos assinados por Joseph Goebbels e Adolf Hitler. O primeiro anotou que considerava a publicação uma falsidade, mas que acreditava na sua “verdade intrínseca”. Em 1933, quando os nazistas chegaram ao poder, Os Protocolos mereceram 23 edições somente naquele ano. Em 1938, a publicação serviu como justificativa para os massacres, saques, incêndios criminosos e depredações desfechadas na “Noite dos Cristais”.

Há uma referência a Os Protocolos datada de 1988 com a chancela do Hamas: “O plano sionista é ilimitado. Depois da Palestina, os sionistas aspiram a se expandir do Nilo ao Eufrates e quando tiverem dominada a região conquistada, vão pretender maior expansão. O plano deles está exposto em  Os Protocolos dos Sábios de Sião, e a sua conduta atual é a melhor prova do que afirmamos.” Em 2003, uma minissérie de televisão com 30 capítulos, chamada Al Shatat (A Diáspora) foi ar na TV Al-Manar, do Hezbollah, no Líbano. A série retrata um “governo judaico global”, conforme descrito em Os Protocolos. Em 2005, uma edição de Os Protocolos publicada na Cidade do México chegou ao cúmulo dos absurdos, sugerindo que o Holocausto já tinha sido tramado pelos Sábios de Sião em troca de um país para os judeus.

TRAGÉDIAS EM ODESSA

Dentre as milhares de cidades e aldeias nas quais os judeus viveram na Diáspora europeia, nenhuma teve uma história tão particular como Odessa, na Crimeia, ilegalmente anexada pela Rússia em 2014.

Naquele efervescente polo judaico, ucraniano, floresceram alguns dos maiores expoentes intelectuais do Povo de Israel. No século 19, os judeus de Odessa suportaram dias terríveis por conta dos pogroms que sofreram. A existência de dois grandes portos na cidade foi essencial para seu perfil cosmopolita. A modernização de Odessa atraiu grande quantidade de judeus, a ponto de a cidade ser apontada como a mais judaica das cidades do Império Russo, somando 40 mil almas que correspondiam a 30% do seu total.

Os pogroms em Odessa ocorreram em 1821, 1859, 1871, 1881 e 1905.  A matança de 1821, perpetrada por imigrantes gregos, e não por russos, é citada em algumas fontes como o primeiro pogrom documentado do período moderno na Rússia. Em Odessa, gregos e judeus eram duas comunidades étnicas e econômicas rivais, porém vivendo lado a lado, tão pacificamente quanto possível. Aquele pogrom foi atribuído à eclosão da Guerra Grega pela Independência, durante a qual os judeus foram acusados ​​de simpatizar com as autoridades otomanas que dominavam a região da atual Grécia. A par de acusar os judeus de ter contaminado com veneno a água potável da cidade, a mais terrível acusação foi imputar aos judeus uma ajuda oculta aos turcos para o assassinato do patriarca grego de Constantinopla, Gregório V.

O primeiro pogrom desferido pelos russos ocorreu em 1859. Na realidade, não foi um pogrom somente russo porque contou com a participação de marinheiros gregos de navios ancorados nos portos locais. O pogrom ocorreu na Páscoa cristã e a imprensa local, hostil aos judeus, minimizou ao máximo as cenas de violência.

Outros pogroms ocorreram em 1871, 1881 e 1886. Os historiadores notam como pretextos para as matanças as rivalidades econômicas com os gregos e as fricções com os russos de ordem religiosa. Mas, o fato é que todos aqueles terríveis eventos assumiram as formas semelhantes aos demais ocorridos no vasto Império Russo.

O pogrom de 1905 foi o pior da história de Odessa. Entre 18 e 22 de outubro, russos, ucranianos e gregos mataram mais de 400 judeus e danificaram ou destruíram 1.600 propriedades judaicas. Os russos justificaram os ataques como uma represália ao fato de os judeus terem apoiado o Japão na Guerra Russo-Japonesa daquele ano e que terminou com a vexaminosa derrota do exército do czar. Era uma justificativa inaceitável porque mesmo se os judeus tivessem apoiado o Japão, jamais seriam ingênuos a ponto de externar sua posição.

A CIDADE MARTIRIZADA

A cidade de Chisinau, com 550 mil habitantes, é a capital da Moldávia, o país mais pobre da Europa. A Moldávia é a antiga Bessarábia, situada entre a Romênia e a Ucrânia, que passou a ser dominada pela Romênia ao cabo da 1ª. Guerra Mundial. Enquanto pertenceu ao Império Russo, a cidade tinha o nome de Kishinev.

Este nome se inscreveu na história dos pogroms, não tanto pelo número de vítimas, mas por Kishinev ter sido duas vezes palco, num pequeno intervalo, de cenas horríveis de brutalidade. Por isso mesmo, as matanças ali perpetradas alcançaram inusitada repercussão internacional e impactaram o mundo judaico. Esses dois pogroms aconteceram em 1903 e 1905 e cada uma dessas datas contém uma circunstância particular.

O ano de 1903 marcava seis anos desde o encerramento do Primeiro Congresso Mundial Sionista, na Suíça. Embora o Sionismo então fosse uma presença incipiente na vida dos judeus em toda a Europa, a alardeada pretensão da criação de uma pátria judaica fazia acreditar na possibilidade de um futuro mais digno de ser vivido. Essa impressão foi aniquilada pelo pogrom do dia 7 de abril. Os judeus de Kishinev foram acusados de ter assassinado um menino cristão, uma denúncia que serviria de pretexto para outros pogroms. O assassinato ritual era uma calúnia medieval que sobrevive até esse século. O pogrom do dia 20 de abril de 1905 foi além. Os judeus foram falsamente acusados de matar não uma, mas duas crianças cristãs para utilizar o sangue em rituais.

Naquele ano, o crescente número de seguidores do Sionismo ainda lamentava a morte de Theodor Herzl, com apenas 44 anos de idade, em julho do ano anterior, em Viena. Somada a este contexto, a chacina de Kishinev impulsionou o movimento sionista de uma forma que o movimento talvez ainda levasse bom par de anos para sua expansão. O livro de Herzl, O Estado Judeu, lançado dez anos antes, passou a se multiplicar com sucessivas edições em russo, polonês, iídiche e alemão, os idiomas falados por judeus na Europa central e no império do czar. Os pogroms de Kishinev motivaram o jovem intelectual Ber Borochov (1881-1917), nascido na Ucrânia, para a formulação de seu ideário sionista-socialista e para a fundação do partido Poalei Sion (Trabalhadores de Sião) que foi o preponderante no movimento de emancipação judaica até a criação de Israel, 31 anos depois da morte de Borochov.

A documentação mais antiga da presença judaica na região da Bessarábia data do início do século 18, quando Kishinev abrigava apenas 540 judeus. Em 1838, ali foi inaugurada uma escola judaica com currículo secular. Vinte anos mais tarde, o sistema educacional judaico incluiu mais duas escolas.

Na passagem do século, o número de escolas tinha atingido a 16, evidenciando a prioridade judaica para a educação. Kishinev era uma cidade vibrante e multiétnica onde os judeus viviam com russos, ucranianos, romenos, poloneses, alemães, armênios, gregos e ciganos. Durante o século 19, a população judaica passou de uma pequena percentagem para quase a metade dos habitantes da cidade. Em 1903, eram cerca de 50 mil judeus, correspondendo a 46% do total de habitantes. Mas, muitos judeus viviam na pobreza, fazendo com que a comunidade estabelecesse um sistema de assistência social dotado de expressivo alcance humanitário.

O primeiro pogrom foi precedido por uma série de artigos antissemitas no jornal local Bessarabets, nos quais os judeus eram acusados ​​de uma longa variedade de crimes. Por causa do boato sobre o menor morto, uma multidão atacou os judeus, matando 49 pessoas, mutilando 586, destruindo 1.350 casas e 588 lojas. As autoridades locais e a polícia russa não impediram a carnificina. Os horrores do massacre suscitaram protestos na Europa e nos Estados Unidos. 

O poema Na cidade do massacre, escrito em hebraico, pelo grande poeta Chaim Nachman Bialik comoveu as massas judaicas por seu vigor de estupefação, como se lê em um de seus versos:

Pegue sua alma, rasgue-a em muitos pedaços.
Com raiva impotente, seu coração se deforma.
Sua lágrima corre sobre estéreis pedras dilapidadas.
E envie seu grito amargo para a tempestade.

O pogrom de 1905 durou dois dias e foi infligido mesmo durante dois momentos turbulentos na Rússia imperial: a revolta liderada pelo encouraçado Potemkin e a desastrada guerra contra o Japão. Para o mundo judaico, suas consequências mais intensas foram o fortalecimento do movimento sionista e as iniciativas de pioneiros que em 1909 empreenderiam a primeira aliá (emigração para a Palestina Otomana) e lá estabeleceram o primeiro kibutz, chamado Degania Alef, na margem sul do Mar da Galileia, território sob domínio otomano.

Intelectuais russos não-judeus, como Leon Tolstoi e Maxim Gorki, publicaram condenações aos crimes contra os judeus. Os pogroms de Kishinev permanecem na memória da humanidade como um símbolo do sofrimento judaico na Rússia czarista.

A HORA DA VINGANÇA

A narrativa a seguir consta da edição n. 77 desta revista, há doze anos. É importante recordá-la, mesmo de forma concisa, no contexto histórico dos pogroms.

Eram duas e quinze de uma ensolarada tarde de primavera em Paris. Naquele dia, 25 de maio de 1926, dois homens se cruzaram na esquina dos boulevards Racine e Saint-Michel. Um deles aproximou-se do outro e perguntou: “você é Symon Petliura?” – “Sou”, respondeu o outro. Ato contínuo, o primeiro o atingiu com cinco disparos de um revólver. Preso em flagrante, o atirador disse que seu nome era Samuel (Shmuel) Schwarzbard e que ele tinha acabado de vingar a morte de milhares de judeus, vítimas de pogroms na Ucrânia. Até o dia em que assassinou Symon Petliura, líder ucraniano e tido como responsável por sucessivos pogroms, Schwarzbard teve uma existência tempestuosa. Shmuel nasceu na Bessarábia, no dia 18 de agosto de 1886 e quando criança, sua família se mudou para a cidade de Balta, no sudoeste da Ucrânia. Em 1900, a população de Balta abrigava pelo menos 50% de judeus, onde o pai de Shmuel havia instalado uma minúscula mercearia, enquanto o filho aprendia o ofício de relojoeiro.

Em 1909, com 23 anos de idade, ele se juntou a um grupo que assaltou um banco em Viena. Preso, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. Após cumprir quatro meses da pena, conseguiu fugir e foi para Budapeste. Ali assaltou um restaurante. Foi expulso do Império Austro-Húngaro e, no ano seguinte, instalou-se em Paris, onde conseguiu trabalho numa relojoaria, mas por pouco tempo, porque, em função de seu passado, estava sempre na mira da polícia.

Decidiu alistar-se na Legião Estrangeira, em 1914, logo no início da 1ª Guerra Mundial. Foi destacado para um regimento de infantaria e teve o batismo de fogo na vitoriosa batalha francesa de Carency. Dois anos depois, no decorrer da guerra, foi gravemente ferido pela explosão de uma granada que afetou seus pulmões e lhe deixou o braço esquerdo praticamente inutilizado. Recebeu, então, a prestigiosa Cruz de Guerra. Depois de desmobilizado, em 1917, casou-se com Anna Render, jovem judia oriunda de Odessa. Naquele ano começavam a alcançar assustadoras proporções os pogroms na Ucrânia. De 1917 a 1921, foram atacadas 530 comunidades judaicas na sequência de 887 pogroms.

Em fins de 1919, foi com a mulher para Odessa, ainda sob controle dos antibolcheviques, que ele pensava poder enfrentar. Escapou de ser preso, porque pode embarcar num navio francês, na qualidade de veterano condecorado da 1ª Guerra. Em janeiro do ano seguinte, o casal estava de volta a Paris, onde Shmuel abriu uma oficina de consertos de relógios. Mas, por trás daquele homem pacato fervia uma agitada consciência política. Fundou, em Paris, a União dos Cidadãos Ucranianos, ao mesmo tempo em que requereu a cidadania francesa, que lhe foi concedida em 1925.

Shmuel sabia da presença de Petliura em Paris e tinha feito de tudo para achá-lo, até ser bem-sucedido. Segundo pormenores publicados pela imprensa francesa, o diálogo entre os dois homens teria sido o seguinte: – “Você é Symon Vasiliovitch Petliura?” – “Sim, sou”. – “Então, defenda-se, seu bandido!”  Petliura levantou a bengala quando começou a ser atingido pelos disparos, enquanto Shmuel gritava: – “Esta é pelos pogroms! Esta é pelos massacres! Esta é pelas vítimas!” Ao ser algemado pela polícia, reagiu com a maior calma: “Podem me prender. Eu matei um assassino”.

A instrução do processo contra Schwarzbard durou um ano e cinco meses, no decorrer dos quais a opinião pública francesa se dividiu, assim como havia acontecido a partir de 1894, durante os julgamentos de caráter nitidamente antissemita do capitão Dreyfus. O jornal Paix et Droit  argumentou que na medida em que a comunidade judaica apoiava Schwarzbard, ela se tornava cúmplice do assassinato. Ao mesmo tempo, um jornal em iídiche destacava a semelhança entre os processos de Dreyfus e o de Shmuel. Grande parte da imprensa francesa permaneceu neutra e o assunto serviu para dezenas de reportagens que tornaram a relatar com maior ênfase os pogroms ocorridos na Ucrânia, circunstância que favorecia Schwarzbard. Mesmo assim, publicações como L’Intrasigeant, L’Action Fraçaise e Le Figaro não escondiam um viés antissemita em seus editoriais.

O assunto ganhou maior dimensão quando a defesa legal de Shmuel foi assumida pelo judeu Henri Torrès, militante da esquerda, então considerado o maior advogado do país. A estratégia de Torrès consistiu em arrolar mais de 80 testemunhas e de obter declarações favoráveis ao acusado de personalidades como Albert Einstein, o escritor Joseph Kessel, Leon Blum (que a partir de 1936 seria por três vezes primeiro-ministro da França) e Édouard Herriot (que também foi primeiro-ministro), Henri Bergson, Romain Rolland e Alexander Kerensky. Do ponto de vista legal, fez um impressionante levantamento sobre os pogroms, de modo a emocionar os jurados e colocar Schwarzbard mais na posição de acusador do que de réu.

O julgamento de Shmuel Schwarzbard começou no dia 18 de outubro de 1927 e durou oito dias. Na argumentação inicial, Torrès disse que o crime de Shmuel não era um crime, era um justo ato de vingança pelos milhares de judeus vítimas de pogroms na Ucrânia. A promotoria, tendo à frente o competente Cesare Campinchi, argumentou que Petliura jamais tivera qualquer responsabilidade quanto aos pogroms e que o acusado tinha agido na condição de agente remunerado da União Soviética. O réu foi acusado pela transgressão dos artigos 295, 296, 297, 298 e 302 do Código Penal francês, ou seja, assassinato premeditado sujeito à pena de morte.

Shmuel não se comportou como um acusado atemorizado. Pelo contrário. Ergueu a voz e declarou com uma ponta de orgulho: “Durante meses andei pelas ruas de Paris com uma fotografia de Petliura no bolso. Imaginei que ele estivesse nas imediações do Quartier Latin”. O juiz perguntou: “O senhor quer dizer que o crime foi premeditado?” Shmuel retrucou exultante: “Sim, foi, sim!”

Das 80 testemunhas arroladas, Torrès chamou apenas sete. O depoimento mais marcante foi o de uma jovem judia chamada Haia Grinberg que havia trabalhado como enfermeira da Cruz Vermelha e cujos avós tinham sido vítimas dos massacres.

Em seguida, Torrès, recorrendo a seus magníficos dons histriônicos, assumiu a palavra: “Senhores membros do corpo de jurados, confiram a liberdade a este homem que traz na fronte o estigma da tragédia de seu povo. Os senhores detêm hoje em suas mãos os destinos de milhares de seres humanos que estarão vinculados ao veredito que a França aqui vai pronunciar. Eu lhes exorto a praticar um verdadeiro ato de civismo proferindo a absolvição. Não lhes peço um perdão levado pela emoção. Se este homem for privado da liberdade, a França não será mais a França e Paris não será mais Paris!”  O júri recolheu-se para deliberar e retornou apenas 35 minutos depois.

Shmuel Schwarzbard fora absolvido. Mas os pogroms jamais serão absolvidos pelo mundo civilizado.