Setores da esquerda global passaram, nas últimas décadas, a engrossar a lista de fontes responsáveis por disseminar um virulento e indisfarçável antissemitismo, contaminando, por exemplo, ambientes partidários, universitários ou intelectuais. Ironia da história, cartilhas esquerdistas, ao longo do tempo, buscaram se descrever como “humanistas e progressistas”, mas acabaram reverberando preconceitos e visões com inequívoco viés antissemita.

Antissemitismo em universos dominados pelo esquerdismo não representa exatamente uma novidade, apesar da pregação de um suposto posicionamento contra o racismo. Nos tempos da União Soviética, por exemplo, o regime stalinista protagonizou diversos episódios de perseguição explícita, como no infame Complô dos Médicos, entre 1951 e 1953, quando profissionais do setor de saúde do Kremlin, em sua maioria judeus, viraram alvos de falsas acusações de tentativa de envenenar Josef Stalin. Acabaram fuzilados ou presos.

Outros países da esfera soviética, como a Tchecoslováquia ou a Polônia, se transformaram também em palco de episódios antijudaicos. O “julgamento Slansky”, em 1952, consistiu numa farsa destinada a prender e a executar judeus integrantes da direção do partido comunista. No final dos anos 1960, o polonês Wladyslaw Gomulka liderou processos de expulsão de judeus de estruturas políticas e universitárias, sob pretextos como “campanha antissionista”.

Há décadas, o chamado “antissionismo” se transformou muitas vezes numa cortina de fumaça para tentar mascarar preconceito antijudaico. Negar ao Povo Judeu o direito à autodeterminação, pilar da retórica “antissionista”, corresponde a impedi-lo de exercer um direito básico e implementado por inúmeras populações em diversos rincões do planeta. “Esta seletividade negacionista faz do antissionismo uma manifestação de antissemitismo”, escreveu recentemente o ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil Celso Lafer.

Em mais um dos paradoxos da história, a URSS de Josef Stálin, apesar de suas ações antissemitas e da intensa repressão doméstica ao Sionismo, rotulado como “movimento nacionalista burguês”, votou a favor da resolução 181 da ONU, da Partilha da Palestina, e apoiou a criação do Estado de Israel em 1948, de olho numa eventual aliança com o nascente país, então governado pelos socialistas de David Ben-Gurion. O flerte, no entanto, se desfez na década de 1950, quando o Kremlin preferiu apostar na parceria com o Egito de Gamal Abdel Nasser, um regime nacionalista e socialista, a agitar o slogan de “jogar ao mar” os israelenses.

A Guerra dos Seis Dias, em 1967, representou um momento nevrálgico nas relações entre a chamada esquerda global e Israel. Até então, os caminhos socialistas israelenses, por exemplo, atraíam milhares de jovens, em particular da Europa, voluntários entusiasmados para trabalhar em kibutzim e conhecer uma sociedade empenhada em valorizar a democracia e liberdades individuais, proteger minorias e fortalecer o papel de mulheres no país em construção.

A acachapante vitória israelense em 1967 ajudou a modelar a fase seguinte da Guerra Fria no Oriente Médio e mudou dramaticamente a relação entre o Estado Judeu e movimentos esquerdistas. O Kremlin, principal fornecedor de armas e de assistência militar aos derrotados Egito e Síria, interpretou a derrota também como uma humilhação a seu poderio militar, rompeu relações diplomáticas com Israel e consolidou a visão de rejeição aguda ao país construído pelo movimento sionista. Neste momento, os EUA resolveram deixar de lado desconfianças em relação ao socialismo de Ben-Gurion e de Golda Meir e passaram a construir então a aliança estratégica e profunda a existir até os dias de hoje.

Guiada pelo aprofundamento do maniqueísmo da Guerra Fria no contexto médio-oriental, Moscou mobilizou a KGB, personagem central do aparato de repressão e de propaganda soviético, para implementar uma estratégia de demonização e deslegitimação de Israel. O objetivo estratégico: atacar o principal aliado de Washington no Oriente Médio e sabotar a influência norte-americana na região.

Inspirada em visões antissemitas herdadas dos tempos czaristas, responsável, por exemplo, pela publicação do panfleto Os Protocolos dos Sábios do Sião no começo do século 20, a KGB, símbolo da era soviética, desenvolveu e implementou uma estratégia alicerçada na narrativa a descrever o conflito árabe-israelense como “a mais emblemática e mais simbólica luta do oprimido contra o opressor”. Tal mitologia se transformou num dogma para setores da esquerda global, alimentada e guiada por uma intensa ação política e propagandista orquestrada a partir do Kremlin. Terroristas de extrema esquerda, apoiados por Moscou, passavam por campos de refugiados palestinos, por exemplo. Propaganda e influência soviética chegavam a grupos como o IRA irlandês, Brigadas Vermelhas italiana, o ETA basco.

Dois terroristas alemães, do grupo Células Revolucionárias, participaram do sequestro do avião da Air France desviado para Entebbe, Uganda, em 1976. Três integrantes do Exército Vermelho Japonês mataram 26 pessoas num ataque no aeroporto de Lod, em 1972.

A estratégia, portanto, consistia, entre outros aspectos, em transformar a arena do conflito israelo-palestino num imã para setores da esquerda global, a partir das maquinações desenvolvidas pela União Soviética, que, paradoxalmente, havia oferecido apoio fundamental na viabilização do Estado de Israel, em 1948. A lógica da Guerra Fria de Moscou, obviamente antiamericana e embalada também pelo antissemitismo, impulsionou naquele momento uma torrente de ataques ao nacionalismo judaico, descrevendo-o como “chauvinista e racista”. O Kremlin chegou ao cúmulo de anunciar a criação da “sionologia”, pseudociência soviética para “estudar governos israelenses e seus aliados”.

A mudança de 180 graus na atitude em relação a Israel, do apoio em 1948 ao choque pós-1967, levou também a máquina de propaganda a resgatar a tese do Sionismo como “movimento colonialista”, numa retórica ainda hoje deveras apresentada em debates políticos e universidades espalhadas pelo mundo.

A distorção histórica busca descrever o movimento sionista como uma “empreitada europeia em solo do Oriente Médio”. A cortina de fumaça não se sustenta ao não conseguir apontar qual metrópole colonial os judeus representavam, e o fato de a população judaica de Israel ser composta, há décadas, majoritariamente por descendentes de imigrantes oriundos de países árabes, da Etiópia, da Ásia central, e não mais de origem europeia, como nos primórdios do empreendimento sionista.

Ignorando o papel do Reino Unido no Oriente Médio do século 20, com sua política clássica de dividir para reinar (ora apoiando judeus, ora apoiando árabes e se abstendo na votação da resolução 181, da Partilha da Palestina), setores da esquerda global compraram, de forma acrítica, a narrativa arquitetada para descrever o Sionismo como “colonialismo”. Mais uma iniciativa da estratégia soviética.

Em 1991, desintegrou-se o império fundado por Vladimir Lenin com a revolução de 1917. O sistema soviético fracassou. Mas deixou uma herança renitente no que se refere à percepção e à leitura do conflito israelo-palestino por setores da esquerda global, que não demonstra o mesmo interesse e mobilização quando se trata de outros conflitos espelhados pelo cenário internacional.

O cenário pós-Guerra Fria significou o início de um período também descrito como o da unipolaridade norte-americana, quando os EUA despontaram como a única superpotência global, após a debacle da URSS. Nesse momento, uma aproximação disparatada se fortalece: a de setores da esquerda global com grupos fundamentalistas islâmicos.

O flerte, para muitos antes impensável, se baseia na proposta da chamada “luta anti-imperialista”. Ou seja, com intuito de fazer frente aos EUA e a seus aliados, setores da esquerda passam a, sem cerimônia, agir em aliança, por exemplo, com o regime teocrático iraniano, responsável por sufocar em seu país, movimentos socialistas ou comunistas.

Em resumo, setores da esquerda global ainda alimentam, na questão do Oriente Médio, cartilha e visões formuladas pela União Soviética nos idos do maniqueísmo da Guerra Fria. E, em vez de apoiarem um país democrático e com respeito a liberdades individuais, preferem se aliar a grupos e a governos fundamentalistas islâmicos.