Vivem hoje na Bélgica, cerca de 35 mil judeus em meio a uma população total de 11,4 milhões de habitantes. Apesar de contar com uma comunidade judaica pequena, o país se destaca pela agressividade e constante aumento de atos antissemitas e anti-Israel – infelizmente uma constante em vários outros países europeus.
Por que razão tamanha disseminação de uma “paixão anti-israelense e antijudaica!” em todo o espectro político da Bélgica, pergunta-se Joël Kotek, renomado professor catedrático da Universidade Livre de Bruxelas (ULB) e do Instituto de Estudos Políticos de Paris, e ex-Diretor de Formação de Professores no Memorial da Shoá de Paris. O prof. Kotek expressou seu alarme, questionando o que estaria permitindo a expressão de um antissemitismo tão descarado na capital da Europa.
A verdade é que os judeus da Bélgica vêm sendo alvo de ataques antissemitas desde as últimas décadas do século 20. Uma pesquisa da Liga Antidifamação (ADL), apontou, ainda em 2015, ou seja, oito anos antes da eclosão da Guerra em Gaza, que cerca de 21% dos belgas se declaravam antissemitas.
Desde a década de 1980 os judeus belgas têm sido alvo de violência antissemita. O mais notório ocorreu em 27 de julho de 1980, na Antuérpia, quando Said Al Nasr, palestino nascido na Síria, lançou granadas contra um grupo de 40 crianças judias – entre 10 e 14 anos. Os jovens e seus familiares estavam esperando um ônibus, na frente do Centro Cultural Agudat Israel, que as levaria ao acampamento de férias de verão localizado nas Ardenas, uma região no sul da Bélgica. Um menino foi morto e outras 20 pessoas, entre adultos e crianças, ficaram feridas nesse ataque. Condenado, o terrorista foi solto da prisão quando o governo belga negociou a “troca” de Al Nasr por membros da família Houtekins-Kets, em 1990 – uma família franco-belga que fora sequestrada na Líbia.
No ano seguinte, 1981, a Sinagoga Portuguesa, a Shomré Hadas, no distrito dos diamantes da Antuérpia, foi alvo de mais um ataque. Um carro-bomba foi colocado diante da sinagoga para ser acionado em Shemini Atzeret, uma festa celebrada no dia seguinte aos sete dias de Sucot. No entanto, a congregação havia decidido iniciar as orações uma hora após o costume, ou seja, às 10h, em vez de às 9h. O carro-bomba explodiu às 9h30, antes da chegada dos membros da congregação. Três pessoas, não judias, foram mortas e outras feridas.
O ataque poderia ter provocado um massacre de grandes proporções, caso a sinagoga estivesse lotada.
Perante o crescimento do discurso antissemita e da violência contra a população judaica, a comunidade belga criou, na década de 1990, o Fórum das Organizações Judaicas de Flandres1, para conscientizar a opinião pública acerca dos riscos representados pelas novas correntes antidemocráticas, racistas e antissemitas que despontavam na sociedade belga. Mas a onda antijudaica só fez crescer. No início dos anos 2000, aumentaram ainda mais as agressões físicas contra os membros da comunidade e suas propriedades, especialmente praticadas por grupos de extrema-direita e por muçulmanos extremistas.
Em abril de 2002, outro atentado: a fachada da sinagoga da cidade de Charleroi, na província de Hainaut, amanheceu coberta de marcas de disparos de balas. No ano seguinte, 2003, a mesma sinagoga foi alvo de outro atentado. Um marroquino de 33 anos derramou gasolina num carro estacionado ao lado da sinagoga, nele tocando fogo, em uma tentativa de destruí-la. O ataque foi condenado pelo primeiro-ministro Guy Verhofstadt, que, no entanto, declarou “não ter visto necessidade de aumentar o nível da segurança no entorno das instituições judaicas, na Bélgica”.
A situação dos judeus piorou ainda mais desde a ascensão do Partido Nacionalista de Flandres, de extrema-direita, Vlaams Belang ou VB (em português, “Interesse Flamengo”). Foi fundado em 2004 quando seu antecessor, o Vlaams Blok, foi declarado inconstitucional pelos tribunais belgas. O discurso racista do Vlaams Belang tem contribuído para a intolerância contra muçulmanos, judeus e imigrantes não-europeus na Bélgica.
Em diversas ocasiões o Vlaams Belang promove ideias negacionistas sobre o Holocausto e “opiniões” de cunho antissemita. Entre outros, em 2024, o partidoapresentou Roeland Raes como um de seus candidatos às eleições municipais. Negacionista de 90 anos, Raes havia ocupado o cargo de vice-presidente do Vlaams Blok até ser acusado de negação do Holocausto. Em uma entrevista à televisão holandesa, Raes declarara: “Duvido da sistemática do extermínio dos judeus e duvido, também, do número de mortes, [...] e não creio que campos como Auschwitz tivessem sido campos de extermínio”. A fita de vídeo original com sua entrevista foi “perdida” e o Tribunal decidiu, em 2006, retirar as acusações. No entanto, após um recurso do Fórum das Organizações Judaicas, o caso foi retomado e, em dezembro de 2008, Raes recebeu uma pena suspensa de quatro meses de prisão.
De acordo com um relatório de 2012 da Jewish Telegraphic Agency (JTA), o número de incidentes antissemitas na Bélgica aumentou em 23% naquele ano. Dos cinco incidentes envolvendo ataques físicos, três ocorreram na Antuérpia. Em outubro do ano seguinte, Isi Leibler, um conceituado ativista judeu internacional nascido na Bélgica, denunciou o aumento do número de incidentes, incluindo ataques físicos e vandalismo contra instituições judaicas. Apontou, ainda, que o elevado número de caricaturas antissemitas na mídia belga estava propagando um viés negativo, para dizer pouco, contra os judeus e Israel. O mais grave foi a imagem postada no website educacional oficial de Flandres, comparando Israel à Alemanha Nazista.
No ano seguinte, 2014, a violência verbal e física contra os judeus cresceu desmesuradamente. Na época, o The New York Times reportou que as multidões que protestavam próximo ao Parlamento Europeu, em Bruxelas, gritavam “Morte aos Judeus!”. Na tarde de 24 de maio o Museu Judaico de Bruxelas foi alvo de um atentado terrorista. Um muçulmano abriu fogo matando quatro pessoas. Três vítimas – um casal israelense de férias e uma mulher francesa – morreram no local. A quarta, um funcionário belga do museu, faleceu posteriormente, no hospital. Mehdi Nemmouche, um francês de 29 anos de origem argelina, acabou sendo preso, em Marselha, e seu cúmplice, Nacer Bendrer, que lhe forneceu as armas usadas no ataque, foi preso posteriormente. Nemmouche foi sentenciado à prisão perpétua, enquanto Bendrer recebeu uma pena de 15 anos. Joel Rubinfeld, da Liga Belga Contra o Antissemitismo, descreveu o ato como “o resultado inevitável de um clima que destila ódio (...). Será necessário usar todos os meios legais para silenciar os pregadores desse ódio, responsáveis por espalhar este vírus de ódio antijudaico”.
No mês seguinte ao atentado ao Museu Judaico, um ônibus escolar na Antuérpia, transportando crianças judias de 5 anos de idade, foi apedrejado por adolescentes muçulmanos. Em julho, um médico se recusou a tratar de uma sobrevivente do Holocausto, Bertha Klein, dizendo a seu filho: “Mande-a a Gaza por algumas horas, aí a dor dela vai passar logo, logo”, pois ela seria morta. No final de agosto, uma senhora judia de 75 anos de idade foi espancada por causa de seu sobrenome que parecia judaico; e, em 14 de setembro, jovens que atiravam pedras e garrafas e bradavam xingamentos atacaram as pessoas reunidas em Bruxelas para o descerramento de uma placa em memória das vítimas do Holocausto. Quatro dias mais tarde, na mesma cidade, uma sinagoga no bairro de Anderlecht foi incendiada.
Em Liège, um açougueiro de origem turca afixou um cartaz dizendo que lá “se serviam cachorros, mas não judeus”. E um vagão do metrô da cidade anunciava que a próxima parada seria “Auschwitz”, ordenando a todos os judeus que saltassem nessa estação.
Os relatos acima foram apenas alguns de uma série de incontáveis incidentes contra judeus. A maioria deles ocorreu em Bruxelas, onde um quarto da população da cidade é muçulmano. Um número crescente de judeus decidiu que chegara a hora de deixar a Bélgica. Ainda que, em 2015, o primeiro-ministro Charles Michel tivesse declarado uma “política de zero tolerância” na questão do antissemitismo, o número de famílias judias que deixaram a Bélgica para Israel atingiu, em 2015, o maior número em 10 anos.
A política governamental de “zero tolerância na questão do antissemitismo” não deu muito resultado. Na cidade de Torhout, em 2016, a escola secundária católica Sint-Jozefsinstitut, financiada pelo governo, declarou que estava “muito orgulhosa” de um de seus professores, já aposentado, que ganhara um prêmio por seu cartum antissemita no Concurso Internacional de Cartuns sobre o Holocausto, no Irã. O cartunista foi celebrado como defensor da “liberdade de expressão”.
No ano seguinte, mais um choque para a comunidade judaica belga. As regiões de Flandres e da Valônia, na Bélgica, aprovaram leis proibindo o abate de animais sem atordoamento prévio, mesmo no contexto do abate casher, conhecido como shechitá, e no abate halal, muçulmano. Os líderes das comunidades judaica e muçulmana denunciaram tal atitude como racismo e uma violação de sua liberdade religiosa.
Em março de 2019, durante o Carnaval de Aalst, uma cidade que fica a 25 km do Parlamento Europeu, um carro alegórico desfilou exibindo figuras de judeus ortodoxos, com nariz protuberante e grandes
chapéus de pele, cercados de pilhas de dinheiro. Muitas vozes se levantaram em defesa da cidade alegando que havia sido “apenas uma celebração de humor”. Fotos tiradas no mesmo desfile carnavalesco, no ano seguinte, revelam que a mesma celebração do humor antijudaico continuava firme... Em agosto de 2019, Dimitri Verhulst escreveu um editorial no jornal De Morgen, dizendo: “Ser judeu não é uma religião, nenhum D’us daria às suas criaturas um nariz tão feio”. O editor-chefe do De Morgen defendeu o jornalista dizendo que o editorial era “uma forte crítica das políticas de Israel contra o povo palestino”.
O jornalista judeu belga, Cnaan Liphshiz, tem escrito que o mais perturbador acerca do nível atual de antissemitismo, na Bélgica, é o fato de que os governantes e os formadores de opinião costumam defender os perpetradores de incidentes antissemitas com base na “liberdade de expressão”. Segundo Liphshiz, o “antissemitismo clássico” de um tipo que ele julgava “impossível de ocorrer em uma democracia ocidental estabelecida no coração da Europa”, era, agora, “dominante e corriqueiro” na Bélgica.
A Guerra em Gaza
Em 2023, após o selvagem ataque terrorista do Hamas, em 7 de outubro, e a eclosão da guerra em Gaza, o antissemitismo disparou, com mais força. Odiar publicamente e nas redes sociais Israel, apoiar o Hamas e os palestinos se tornou “in”, algo muito “louvável”.
Em junho de 2024, foram vandalizados um memorial do Holocausto e o dos Combatentes da Resistência aos Nazistas, no parque Bois de la Cambre.
Uma pesquisa da Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), de julho de 2024, constatou que 97% dos judeus da Bélgica alegavam ter-se deparado com situações antissemitas, em seu dia a dia; 70% deles diziam esconder sua identidade em público, em virtude da falta de segurança; e 54% declararam evitar certas localidades por temerem ser atacados.
Em agosto de 2024, Herman Brusselmans, escritor belga e antissemita renomado, publicou uma coluna controvertida na revista em língua holandesa, Humo, uma das de maior circulação na Bélgica. Relacionada à crescente tensão decorrente da guerra em Gaza, ameaçava: “Quero enfiar um facão afiado na garganta de todos os judeus com quem me deparar”. Os judeus levaram o caso para a justiça, mas nada adiantou, o tribunal em Gante absolveu Brusselmans das acusações.
E como se não bastasse, os organizadores do Rock Herk Festival, em Limburg, recusaram-se a cancelar um concerto do cantor inglês Bob Vylan, da banda de rap, apesar de estarem cientes de que ele tinha bradado, a plenos pulmões, “Morte às FDI”, em uma apresentação no Reino Unido. Na esteira dessas assustadoras estatísticas, o Movimento Internacional pela Paz e Coexistência (IMPAC) expôs preocupação, sem apresentar nenhuma solução real, sobre a questão do viés preconceituoso acerca de como o conflito entre Hamas e Israel é apresentado nas escolas belgas.
Em maio deste ano de 2025 mais uma notícia chocou os judeus do mundo. Na Antuérpia, a polícia
fez uma batida na casa de dois mohels haredim, especialistas ortodoxos que realizam a circuncisão de acordo com a religião judaica, nas primeiras horas da manhã do dia 14 de maio. Confiscaram seu material de trabalho e exigiram uma lista de circuncisões realizadas no ano passado. A Associação Judaica da Europa alegou que tal atitude cruzava mais uma linha vermelha, após terem enfrentado questões referentes à shechitá (o abate religioso de animais) por bastante tempo. No Judaísmo, a circuncisão de meninos recém-nascidos, o brit milá, é um pacto entre o Povo Judeu e D’us. É o cumprimento da Aliança Sagrada selada entre D’us e Abrão, há 3.700 anos. A circuncisão é realizada há milênios por indivíduos especialmente treinados e experientes. É o mandamento mais respeitado e observado em toda a história judaica, seguido fielmente geração após geração, até mesmo durante períodos de perseguição religiosa. Todos aqueles que tentaram eliminar o Judaísmo tentaram, sem sucesso, abolir a circuncisão.
Lamentavelmente, atitudes como as que têm ocorrido na Bélgica, e em outras partes da Europa, ameaçam o Povo Judeu e vão se alastrando em várias partes do mundo. Estaríamos voltando ao antissemitismo de tempos medievais?