Diante da maior catástrofe da história recente do Haiti, Israel enviou mais de 230 militares e se destacou no auxílio às vítimas.

Entre os dramas e milagres de sobreviventes do terremoto do Haiti, a história do sr. Franz Gilles, funcionário público de 58 anos, salta aos olhos. Ferido e preso sob os escombros do escritório onde trabalhava, ele conseguiu atrair a atenção de socorristas haitianos, logo após o sismo de 7 graus na escala Richter. Alertados, os bombeiros escalaram rapidamente a pilha de concreto e ferro retorcido que o separava da liberdade e, olhando através das vigas tombadas, localizaram o sobrevivente. Então, desistiram. Não valia a pena o esforço para resgatá-lo. Os escombros sobre o sr. Gilles e a dificuldade de retirá-lo com vida eram grandes demais para os parcos equipamentos haitianos. Ademais, o tempo que perderiam na operação custaria a vida de outros que poderiam ser salvos mais facilmente. Fizeram sua escolha. Deixaram o sr. Gilles lá, intocado, pacientemente aguardando a morte.

Três dias depois, a tragédia sofre uma reviravolta. Seriamente desidratado e quase inconsciente, sr. Gilles começa a escutar um barulho intermitente e distante de uma moto-serra. Depois, ouve gritos insistentes. Cai a ficha: vieram lhe salvar e é sua última chance de sobreviver. Concentra-se, enche o pulmão com todas as forças que lhe restaram e berra. No topo do buraco, o grito foi a primeira confirmação à equipe israelense de resgate de que eram reais os rumores sobre um sobrevivente naquele local.

Socorristas iniciaram um trabalho frenético. "Tentamos conversar com ele e mantê-lo acordado", relembra o capitão Nir Hazut, um dos membros do time de busca de Israel que resgatou o sr. Gilles, com vida, dos escombros - mais de 90 horas após o terremoto. Localizada, a vítima começou a ser retirada. Quando foi informado da nacionalidade das pessoas que tentavam salvá-lo com equipamentos sofisticados que ele jamais vira em Porto Príncipe, o haitiano, confuso, perguntou a Hazut: "Você veio lá de Israel para me salvar?". E, então, exigiu: "Me dê um telefone celular, quero falar com alguém do seu país para agradecer."

Hazut, entretanto, não era o único israelense que havia desembarcado em Porto Príncipe após a maior catástrofe natural dos últimos dois séculos no Haiti. Ele estava acompanhado de mais de 230 militares enviados pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. O sr. Gilles tampouco era a única vítima socorrida pelos israelenses. Como ele, exatos 1.111 haitianos foram atendidos pela equipe médica de Israel, que realizou ainda 240 cirurgias de alto risco em território haitiano, além de 16 partos.

Foco médico

Os primeiros israelenses desembarcaram no Haiti nove horas depois do sismo, segundo a Divisão de Informações Estratégicas do Exército de Israel. Eram apenas cinco e tinham por missão avaliar as condições do terreno, abrindo caminho à grande equipe do Home Front Command (HFC), braço das Forças Armadas israelenses especializado em situações de emergência. Naquele momento, um avião da El-Al com o time completo do HFC já estava prestes a deixar o aeroporto Ben Gurion rumo a Porto Príncipe, levando consigo 70 toneladas de suprimentos.

Ao chegar na capital haitiana em meio ao cenário de caos, os cinco funcionários da equipe pioneira tomaram uma decisão crucial para os esforços de resgate: o foco de Israel no Haiti deveria ser, sobretudo, o auxílio médico. Haveria também uma equipe de Busca e Resgate (SAR, na sigla em inglês), mas Israel concentraria esforços na parte médica, pois outros - principalmente os EUA e a Missão da ONU para Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil - já conduziam buscas avançadas. (O sr. Gilles, assim, foi uma das poucas vítimas retiradas dos escombros diretamente pelos israelenses.)

A base das operações de Israel no Haiti foi o impressionante hospital de campanha montado, em horas, dentro de um campo de futebol de Porto Príncipe. A instalação tinha 40 médicos, 24 enfermeiras, raio-x e ultrassom, pronto-socorro, duas salas de cirurgia e quatro espaços de UTI - infraestrutura que contrastava com qualquer hospital da história do Haiti. "Os israelenses vieram do outro lado do mundo e montaram um hospital de campanha. Por que os americanos não conseguiram isso?!", protestou Elizabeth Cohen, repórter da CNN que cobria o auxílio internacional em Porto Príncipe. "O hospital dos israelenses era o único lugar onde se podia realizar cirurgias e exames avançados", reconheceu o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, enviado especial da ONU para o Haiti.

Imerso na lógica da ajuda humanitária, o Exército israelense viu-se fazendo alianças improváveis: russos, nicaragüenses, colombianos, entre outras nacionalidades uniram forças ao HFC. Uma equipe de médicos forenses de Israel ainda se juntou à missão de resgate da Holanda.

Retirada

Além de um objetivo claro, a operação "sabra" tinha desde o início uma duração pré-determinada. Superada a parte crônica da tragédia humana, haitianos sob cuidados israelenses deveriam ser, pouco a pouco, transferidos a hospitais já estabelecidos no país caribenho ou a instalações de embarcações militares dos EUA atracadas na costa do Haiti. Ao final, passados 25 dias, os israelenses retornaram a Tel-Aviv, onde foram recebidos com honras de heróis pelo alto comando militar e pelo gabinete do premiê Netanyahu.

O Haiti, contudo, não foi a primeira experiência de Israel nesse tipo de operação internacional. Formado em 1992, o HFC atuou em 1998 no Quênia e na Tanzânia após ataques da Al-Qaeda às embaixadas americanas de Nairobi e Dar es Salaam, e enviou equipes para auxiliar a Turquia, em 1999, depois do terremoto que matou mais de três mil no país. Em 2004, integrou a ajuda a Nova Orleans, devastada pelo furacão Katrina, e esteve na costa da Tailândia, arrasada pelo tsunami. Mas, no caso haitiano, a dimensão da ajuda atingiu níveis inéditos. Seriam duas as razões que levaram israelenses a "vir do outro lado do mundo", como disse a repórter da CNN, para ajudar o Haiti. A primeira, de ordem moral e humana, diz respeito à solidariedade e responsabilidade de um povo - cuja história foi marcada por tragédias - com pessoas em sofrimento ao redor do mundo. A segunda, política, tem a ver com uma imagem do Exército israelense raramente retratada no noticiário internacional. Desta vez, Israel não aparecia como o lado forte e arrogante em um embate contra palestinos, Hezbollah ou Irã. Os inimigos eram outros: o desespero, o sofrimento, a desumanização. Como argumentou o ministro da Defesa, Ehud Barak, diante dos militares "veteranos do Haiti" que desembarcaram em Tel-Aviv, "em um mundo onde o Exército de Israel é duramente criticado, vocês mostraram nosso verdadeiro espírito."