Nas primeiras décadas do século 19 chegaram à região norte do Brasil, procedentes do Marrocos, os primeiros judeus. Eram na maioria jovens, em busca de vida nova.

Esses judeus marroquinos criaram as importantes comunidades judaicas de Belém e Manaus, vibrantes até hoje. Preocupados em não perder a própria identidade, eles mantiveram e transmitiram suas milenares tradições através das gerações.

De meus avós a meus netos

Meus avós, Simão Sarraf (1872-1952) e Clara Roffé Sarraf (1886-1960), eram nascidos em Belém do Pará. Ambos eram originários de famílias de Marrocos, porém a mãe de Simão, minha bisavó Elisa Baruel, já era brasileira e, portanto, meus netos  são a 6ª geração de judeus brasileiros.

Meu avô era descendente de sefaraditas portugueses que foram para Tetuan, e vovó, de família de Arzila, aldeia de pescadores na costa norte marroquina. Casaram-se em Belém, em 1899, e formaram uma grande família, com seus oito filhos, sendo que os três últimos já nasceram em São Paulo, para onde vovô, que era guarda-livros, se mudou com os seus.
Assim como milhares  de origem marroquina, meus avós haviam herdado toda uma bagagem de usos e costumes, além da tradicional religiosidade judaica  que carinhosamente  transmitiram  a filhos e netos.

Shabat e a Dafina

Em casa de meus avós, o Shabat merecia realmente ser um dia de descanso, pois os preparativos começavam alguns dias antes. 
No almoço do sábado, quando os homens voltavam da esnoga1, era servida a Dafina2, que exigia três dias de elaboração. Na 4a. feira, vovó e suas filhas sentavam-se na varanda da casa da Al. Lorena e, enquanto conversavam, moldavam manualmente uma a uma pequenas porções de massa na forma de grãos de café. Essa massa era secada ao sol na 5a. feira e, no dia seguinte, torrada e peneirada para tirar o excesso de farinha. Na 6ª. feira, antes do início doShabat, começava o preparo da Dafina. Numa grande panela, queimava-se um pouco de açúcar e, a seguir, forrava-se o fundo com batatas, cebolas inteiras e colocavam-se pedaços grandes de carne de peito de boi. Eram acrescentados a seguir, dois saquinhos de fina cambraia de linho, recheados, um com arroz cozido misturado com ovos batidos, canela e temperos perfumados, e o outro, com carne moída amassada com muitas especiarias. Por último, os grãos já secos e torrados, pouco sal e água suficiente para cozinhar em fogo muito brando. Desta maneira, a Dafina, enquanto cozinhava lentamente até ser servida, impregnava a casa com o perfume delicioso e exótico dos seus sabores marroquinos.

Na memória olfativa, ficou gravado o cheiro da Dafina da casa de minha avó, associada ao convívio familiar de um Shabatdistante, que por vezes procuro reviver, para que meus netos também venham a lembrar, um dia.

Creio que não há casa de judeu marroquino sem uma cadeira de balanço ou uma rede; acredito que seja para descansar após o almoço do Shabat, ou para embalar sonhos e recordações. Merece ser mencionada uma peculiaridade do ritual do Shabat entre os marroquinos, que ocorre no Hamossí(bênção do pão), quando os pedaços da Chalá que são distribuídos pelo oficiante, devem ser tocados no sal e jogados aos pratos das pessoas presentes, porém nunca entregues diretamente em suas mãos.

Pessach – do Seder à Mimona

A semana de Pessach era iniciada com o tradicional Seder que tinha um momento muito esperado, quando vovô passava a keará sobre a cabeça de todos os presentes, entoando a doce melodia do “Bibehílu”, que quer dizer “precipitadamente”, pois foi assim que saímos do Egito. O restante da semana passava rápido entre trocas de receitas à base de Matzá, (el pan de l’aflición), dúzias e dúzias de ovos e pratos tradicionais altamente calóricos e, felizmente, sem a releitura dos novos  conceitos dietéticos.

Mas o mais peculiar dessa data era a finalização festiva em Mimona, momento em que se come pela primeira vez os produtos fermentados, isto é, pão, bolo, doces, biscoitos e todos os farináceos que foram proibidos pelo que parecia o interminável tempo de uma semana. Assim a casa é enfeitada com ramos de trigo, a mesa tem tigelas com levedura de fermento e farinha de trigo, sobre as quais se apóiam ovos e moedas numa simbologia de fartura. Servem-se bimuelos e mufletas (fritura passada no mel), enquanto parentes e amigos entram e saem, pois muitas visitas são feitas com votos de Mimona Shalom, paz em Mimona e para sempre.

Fadas – cerimônia quando nasce uma menina

O nascimento de uma criança traz sempre alegria e grandes comemorações para uma família judaica, especialmente se for um menino, cujo Berit Milásimboliza a continuidade do Pacto com  Abrahão, Pai do nosso povo, com o Eterno. Entretanto, entre os judeus marroquinos, também se dá as boas-vindas às  meninas, com a lindíssima festa das Fadas, que pode ser feita durante o primeiro ano de vida da criança. A palavra “fadar”, vem de fado, destino, portanto “fadar uma menina” é desejar-lhe um bom destino, desejar que uma “estrela alta” lhe ilumine o caminho.

A festa das Fadas se inicia quando a recém-nascida é trazida para a sala onde estão os convidados, precedida de um vaso de rosas, cujo perfume separa um dia comum deste dia de festa. Após o Baruch Habá entoado pelos presentes, o rabino ou o oficiante reza o Shehecheianu e invoca as quatro mães do Povo Judeu, Sarah, Rebeca, Raquel e Léa, para que  acompanhem e inspirem a menina a seguir o caminho do bem, da verdade e das boas ações e para que tenha uma boa Chupá, para a continuidade do povo de Israel.

Sete amigas da mãe da criança são convidadas a acender cada uma das  velas colocadas em uma bandeja, fazendo votos de saúde, beleza, fortuna, bondade e outros bons desejos. Confeitos de amêndoas cor de rosa e brancos, marzipã e doces são servidos com votos de uma vida doce e feliz. A festa das Fadas tem a correspondente das “Siete Kandelas”, entre os judeus sefaraditas de origem turca. Esse costume testemunha o valor que se dá à mulher, mostrando que sua vinda a este mundo é tão festejada quanto a de um filho varão e que suas responsabilidades são, por vezes, até maiores na transmissão dos valores milenares do judaísmo.

Interessantes nomes usados pelos marroquinos

As famílias marroquinas costumavam ter muitos filhos, para poder“nombrar”, isto é dar nomes em homenagem aos avós maternos e paternos. Ao contrário dos judeus asquenazitas, os sefaradim costumam dar aos recém-nascidos o nome de pessoas vivas, para que essa honra seja uma homenagem em vida. Para mulheres, além dos tradicionais nomes bíblicos, vale mencionar nomes originais, tais como Sol, Oro, Alegria, Vida, Preciada, Gracia, Sultana, Perla, Rica, Luna e outros. Para os homens, eram comuns nomes como, Mazaltov (boa sorte), Ayiush (vivo), Yomtov (dia feliz), Habib  (bem amado), Nissim (milagres) e outros.

O banho – água que purifica

O primeiro banho de um bebê, em nossa família, era presenciado por parentes e amigos, que com muita alegria, colocavam suas jóias e brilhantes na água, para que essa criança fosse “endiamantada”. Vovó costumava dizer que quanto mais jóias houvesse no primeiro banho, mais caridosa e boa seria “la kriatura”, isto é, a criança.  Esse costume curioso encontrou ótima acolhida no lado asquenazita da família, que logo adotou e incorporou esse lindo momento.
Não se pode deixar de mencionar a purificação pela água, feita pelo banho ritual, a Micvá, nas vésperas do casamento e sempre que as Leis judaicas determinem. Nas vésperas do casamento usava-se sempre que possível as toalhas bordadas com fios de ouro, que faziam parte dos enxovais, para essas ocasiões especiais.

Casamento – la novia

Entre os judeus marroquinos,  “tener Hada” quer dizer ter o costume,  assim existem várias tradições que não são explicadas; mas, como “es hada”, são mantidas e se baseiam na afirmação “kostumimos”, ou seja, costumamos ou “no kostumimos”, não é nosso costume. E com essas palavras dá-se o assunto por resolvido e encerrado. Era Hada seguir-se ao Dia del Banyo (o dia da Micvá), a comemoração La Noche de La Novia, quando a jovem era vestida com a roupa de “berberisca”, um vestido festivo dos berberes do Norte da África.

Enquanto viviam no Maroccos, nessa noite, véspera do casamento naChupá, a noiva passeava pelo Mellah, iluminada por tochas, ao som estridente das “bargualás” (gritos guturais de alegria em sinal de festa) das judias marroquinas, enquanto se cantavam Piyutim e a família distribuía doces e moedas aos necessitados. Luzes e som são elementos da alegria de ser judeu e participar da festa da continuidade.

Ditados e konsejas

O saber usar ditados populares, bênçãos e maldições é outra faceta interessante dos sefaraditas, em geral, e uma arte daqueles originários do Marrocos, especialmente quando ditos em Hakitia, a língua habitual dos judeus marroquinos, originada na Espanha e acrescida de palavras árabes e hebraicas. Quando algum convidado chegava numa festa, trazendo sua família  inteira e mais alguns amigos e parentes para a comemoração, vovó costumava dizer, espirituosa: “Vino Fulano kon toda la Rabat”.  Rabat é a capital do Marrocos e, portanto, ela queria dizer, ironizando, que Fulano veio trazendo tanta companhia consigo quanto a população de uma grande cidade.

Outro ditado curioso é sempre usado quando alguém mora numa casa pequena, onde há pouco espaço: “Lugar no teníamos en la kasa i la abuelita se puso a parir”. Isto é, onde já não cabia ninguém, só faltava a avó ter um bebê. 
Komites o no komites, a la meza te pusites”, era o que vovô  dizia quando um filho ou um convidado não apreciava a comida, mas se mantinha sentado à mesa por educação e respeito. “Hijos no tengo, nietos me lloran”, dito usado quando alguém se preocupa com problemas alheios.“Kon el sol vendrá”, isto é: durma tranqüilo que amanhã se resolve o problema.

Shofea la sahená, la kara de Tisha be Av ke tiene”. Esta frase tem a peculiaridade de usar palavras em árabe, hebraico e espanhol e sua tradução literal é: “Veja a vizinha, a cara de luto que tem”.

No te hagas mala sangre”. Muito verdadeiro. É um apelo para acalmar alguém, explicando que um aborrecimento envenena o sangue.

Frases de bons augúrios são comuns, tais como: Mazal bueno (boa sorte),Dulce lo vivas (que tenhas vida doce), En fiestas i alegrias (em festas e alegrias), Mejorado el despozorio de tu hija (em breve o casamento de sua filha), Kon salud ke lo uses i gozes (que o desfrutes com saúde), El D'io no guadre (que D’us nos livre), Los malahines ke te akonpanien (que os anjos te acompanhem)

Além do vasto refraneiro sefardita, existem inúmeras konsejas, pequenos contos, lendas ou realidade, de conteúdo moral e educativo, que sempre são contados pelos mais velhos, como a célebre história de Sol – La Sadiká', a Justa, que não quis se converter ao islamismo para casar com o Sultão que por ela se apaixonara.  Jurando que jamais deixaria de ser judia, como nascera, foi decapitada  e está enterrada no cemitério de Fez. Sol Hachuel se tornou um  exemplo de fé e amor ao judaísmo.

Amuletos e Meldados (orações)

Hamsa e Shadai são os amuletos preferidos dos marroquinos, além das folhas de arruda, alhos e os ojikos (olhinhos). Havia ainda palavras fortes e muito usadas, tais como Ferazmal, que quer dizer afastado de mal eMalogrado, infeliz. Existem também orações e frases poderosas  para livrar perigos e evitar desgraças.  “Kapará por ti” é um voto que se faz para que um mal que ocorreu seja pequeno e tenha acontecido em lugar da preservação de algo maior, como a saúde e vida de alguém. Ser abençoado pelos avós, ao beijar sua mão, é costume marroquino que se situa entre a realidade respeitosa e a proteção mística.

Na curiosa mistura de religião e superstições, muitas tradições foram-se perdendo por medo de serem ridicularizadas ou por incompreensão e intolerância.

Acreditando em milagres

Uma figura sempre presente entre os judeus de origem marroquina é o pai do misticismo judaico, autor do Zohar, Rabi Shimon Bar Yohai, ou Rabi Shimon para seus adeptos. Nas horas de aflição é a ele que se recorre e seu retrato está presente em todas as casas, na cabeceira dos doentes, no quarto das crianças, associando sua imagem a grandes milagres. Quando uma criança engasga ou chora com dor, a mãe clama automaticamente por Rabi Shimon, “O Mestre dos Milagres” 
e sabe que ele estará presente com os feitos que o fizeram famoso. SuaHilulá, festa de recordação de um Sadik3, é até hoje uma data respeitada em Belém do Pará.

Em momentos difíceis os judeus marroquinos voltam-se  também ao Rabi Meir, o Grande Rabi Meir Ba'al Ha-Ness, em busca de salvação. Pois, sabem que ele é “Senhor dos Milagres”, “Aquele que irradia Luz”, e  que  também acode os aflitos sozinho ou aliado a Rabi Shimon, se o caso exigir uma “dupla com alto poder nos Céus”. Acredita-se que uma doação feita em nome de Rabi Meir é uma segulá, uma ação que atrai bênçãos, para engravidar, infalível para a pronta recuperação, salvaguarda de sofrimentos e até para achar coisas perdidas.

A única certeza

A consciência da mortalidade é na verdade a única certeza que temos.
Entre os judeus marroquinos, lidar com a perda exige a observância daHalachá e de alguns costumes que, por interferência da vida moderna, vão sendo afastados.

Assim, no Norte do Brasil, onde há a maior concentração de sefaraditas de origem marroquina, ainda hoje é usual enterrar as pessoas apenas envoltas na mortalha, É importante ressaltar que uma tradição marroquina muito respeitada é o costume de não ir direto para casa, quando se sai do Cemitério. Assim se torna obrigatório descer do carro e dar uma parada, seja para tomar um café, comprar um jornal, dar uma esmola ou qualquer outra coisa. Dizem que a observância desse princípio faz com que o Malach Hamavet (Anjo da Morte) não nos siga.

O que fomos ontem é o que hoje somos

Manter acesa a chama do judaísmo, depois de várias gerações na Diáspora brasileira, é um trabalho de recuperar, revitalizar as tradições, manter e transmití-las, para que as novas gerações compreendam a essência dos valores que lhes são entregues e as passem com orgulho para seus filhos.

1   Esnoga - como os marroquinos chamam a sinagoga. Talvez uma corruptela do termo em português e espanhol.
2   Dafina - prato tradicional para o almoço de Shabat entre os judeus marroquinos; equivalente ao Tcholent asquenazita.

3   Tzadik, Justo, em pronúncia marroquina

Clara Kochen é formada em Direito pela Universidade de São Paulo. Entusiasta do ladino, da herança cultural - marroquina e  turca - que recebeu de seus pais, vem trabalhando sobre temas que deseja salvar do esquecimento.