Conhecida como uma das personalidades mais importantes da psicanálise infantil, Anna Freud a mais nova dos três filhos de Martha e Sigmund Freud foi a única a seguir os passos do pai no campo da psicanálise, sendo intérprete e defensora constante de

Por ter vivido durante praticamente todo o século XX, Anna Freud pôde observar as mudanças no mundo e, conseqüentemente, no comportamento da sociedade. Nasceu em Viena, em 3 de dezembro de 1895, justamente o ano ao qual Freud - que apenas iniciava sua carreira de médico - atribuiu sua descoberta sobre o inconsciente e o significado dos sonhos. Seu nome foi uma homenagem a Anna Lichtein, filha de um professor que, mais tarde, se tornou grande amigo de seu pai. Freud nunca escondeu seu desapontamento por ter tido uma menina, ao invés de um filho varão. Um lacônico telegrama foi o suficiente para comunicar o nascimento da criança a Wilhelm Fliess, amigo íntimo e médico com o qual se correspondia constantemente.

Anna cresceu tendo que dividir a atenção do pai com a psicanálise e mais os seus cinco irmãos mais velhos, com os quais não tinha um relacionamento muito bom. Sua maior disputa em criança foi com a irmã Sophie, dois anos e meio mais velha do que ela. Tentou, de todas as formas, equiparar-se à bela imagem projetada pela irmã, mas não conseguiu levar vantagem em nenhuma das tentativas, qualquer que fosse a área. A família costumava referir-se às duas como “a bela e o cérebro”. Ao se casar Sophie, em 1913, Anna teria escrito ao pai: “Estou feliz com o casamento de Sophie. Nossa eterna disputa era um tormento para mim”.

Tampouco com a mãe Anna conseguiu estabelecer um vínculo afetivo forte, muito ao contrário do forte relacionamento criado entre ela e o pai. À medida que ela crescia, ele foi-se orgulhando dos abrangentes e profundos interesses intelectuais da filha. Em 1913, quando Anna tinha 18 anos, Freud, já com 57, escreveu a um colega: “Meu companheiro mais próximo será minha filha mais nova, que, no momento, está-se desenvolvendo muito bem”. Anna se tornou sua companhia mais constante, sua confidente e colaboradora profissional. Passou a estudar com o pai e a se dedicar com afinco à psicanálise. Era uma aluna brilhante, participava de todos os encontros da sociedade psicanalítica de Viena, sempre acompanhada pelo eminente pai.

Apesar de ter tido admiradores que lhe juravam “amor eterno”, Anna nunca se casou. Dedicou-se ao pai e à psicanálise. Cuidou dele com devoção, principalmente em seus últimos anos de vida, quando Freud lutava contra um câncer de mandíbula. Seguidora de suas teorias e do movimento psicanalítico, tornou-se, após a morte dele, a principal guardiã de sua memória e de suas descobertas científicas. Foi a partir daí que sua carreira ganhou ímpeto.

Sua vida

Anna começou, desde cedo, a fazer parte do mundo da psicanálise. Quando tinha apenas 19 meses de vida, teve um sonho que acabou ficando famoso, pois seu pai o usou para ilustrar a teoria da “realização do desejo”. Os comentários apareceram mais tarde em seu renomado livro, “Interpretação dos Sonhos” (1900), onde Sigmund Freud fez sua primeira tentativa de construir o que poderia ser um modelo do aparelho psíquico. Anna, bebê, após uma indisposição digestiva, havia sido colocada na cama ainda com fome. Nessa noite, aparentemente sonhando, gritou pedindo “morangos” e outras guloseimas.

Cresceu no famoso endereço da rua Berggasse, 19, onde ficou até que a família, por ser judia, foi forçada a fugir da ocupação nazista, em 1938, refugiando-se em Londres, na Inglaterra. Em criança, Anna só se interessava por histórias e contos relacionados a fatos verídicos. Caso contrário, sua atenção se dispersava, relataria mais tarde em seus trabalhos. Aos 6 anos de idade, em 1901, começou a freqüentar uma escola particular, o “Cottage Lyceum”, em Viena. Não gostava da escola, aborrecia-se nas aulas, a ponto de sua inquietação lhe valer o apelido de “diabrete negro”. Anna sempre afirmou que a escola de pouco lhe servira. O que aprendera na infância e adolescência tinha sido em sua casa e, em particular, nas visitas de seu pai. Aprendeu várias línguas hebraico, alemão, inglês, francês e italiano. Formou-se aos 17 anos. Por ser ainda muito jovem, não se tinha decidido pela carreira que desejava seguir, indo à Itália para descansar. Três anos mais tarde, Anna se torna professora primária. Durante longo tempo, lecionou no “Cottage Lyceum”, onde estudara, trabalhando com alunos de 3ª, 4ª e 5ª séries. Segundo a direção da escola, Anna tinha “um talento especial para o magistério”. Queriam que ela assinasse um contrato de 4 anos, a partir de setembro de 1918, e ela o fez. No entanto, em janeiro de 1917, contraiu o bacilo da tuberculose. Isto fez com que ficasse três semanas de licença, deixando-a muito suscetível a outras várias enfermidades que, no futuro, afetariam sua tão auspiciosa carreira de professora.

Tinha acesso irrestrito ao trabalho de Freud, pois era quem traduzia seus artigos. Sua infinita devoção e grande admiração intelectual pelo pai aproximou-a da psicanálise, particularmente da psicologia infantil. Foi nessa época a década de 1920 que os psicanalistas davam os primeiros passos sistemáticos na observação do comportamento infantil, estudando detalhadamente todas as suas formas. Anna, muito interessada na área, tornou-se psicanalista mesmo sem possuir um diploma em Medicina, fato raro na época. Em dezembro de 1920, a família cai vítima da epidemia de gripe espanhola, que ceifou a vida de Sophie, sua irmã mais velha. Foi então que Anna abandonou definitivamente o magistério, para não contaminar os demais membros da escola. Com isso, teve tempo para se aprofundar, de corpo e alma, em sua formação analítica. 

Após ter recebido alta da análise, tendo seu pai como psicanalista entre 1918-1922, apresentou-se como voluntária no Lar de Crianças “Baumgarten Home”, que cuidava de órfãos judeus ou crianças carentes e sem um lar em decorrência da 1a Guerra Mundial. Foi nesse Lar que Anna passou a se reunir com colegas e vários dirigentes de entidades para intercambiar informações sobre as experiências com tais crianças, em sua maioria, vitimadas por acontecimentos traumáticos.

O câncer do pai, em abril de 1923, e a longa série de operações que se seguiriam, fizeram-na renunciar ao projeto de mudança para Berlim, começando a tratar de crianças, tarefa à qual, a partir de então dedicaria essencialmente a sua existência. Anna sentiu que devia permanecer ao lado do pai, pois, além de este estar contraindo empréstimos entre os amigos, sua enfermidade era séria. Escreveu em seus diários, “agora, nada me faria sair de seu lado”. E foi então que começou a atender alguns dos pacientes do pai, adultos e crianças, além de traduzir suas obras e ajudá-lo a melhor articular os trabalhos novos em que se envolvera.

Em 1925 abriu, juntamente com Dorothy Burlingham - uma psicanalista americana que descobriu sua própria vocação quando entregou os filhos aos cuidados analíticos de Anna - uma primeira creche para crianças com problemas emocionais. Juntas, fundaram duas escolas experimentais: a Jackson Nursery, em Viena, e, posteriormente, a Hampstead War Nursery, em Londres.

Com a subida de Hitler ao poder, Freud e vários outros psicanalistas judeus tiveram suas obras publicamente queimadas na Alemanha, em 1933. Nos anos que se seguiram, a ameaça nazista provocou a emigração em massa dos membros da comunidade psicanalítica de Viena, que era, em sua grande maioria, judia. Enquanto todos procuravam escapar da cidade, os planos de Anna e do pai eram manter o Centro de Orientação Infantil da Sociedade Psicanalítica de Viena em funcionamento, tentando manter a normalidade até onde isso fosse possível. A Anna preocupava a idéia de que seu pai pudesse ser submetido a ofensas à sua dignidade, como um mandado de busca e apreensão, em casa, ou coisas do gênero. Na época, filiou-se ao conselho editorial do American Journal Psychoanalytic Quarterly onde publicou, em 1935, uma edição dedicada a seu trabalho em Viena, intitulada “Uma análise da criança”. 

Mas a família Freud permaneceu em Viena até o dia da Anschluss, a anexação: em 12 de março de 1938, Hitler invadia a Áustria. Logo no dia 15, a polícia realizou buscas na casa de Freud. No dia 22, Anna foi detida durante algumas horas pela Gestapo. Conseguiu convencê-los a deixar que a família abandonasse Viena. Em 4 de junho, pôde enfim deixar a cidade com seu pai, encontrando refúgio em Londres, em Maresfield Gardens, n º 20. Em 23 de setembro de 1939, já bastante doente e idoso, aos 83 anos, Freud morre do mesmo câncer de mandíbula que o fizera padecer durante 16 anos.

Foi no bairro londrino de Hampstead que, em 1940, Anna retomou suas atividades com Dorothy Burlingham, na Hamps-tead Nursery, que, depois do fim das hostilidades, seria substituída pela Hampstead Clinic. A carreira de Anna floresceu e acabou dando origem a um movimento neo-freudiano, denominado a “Psicologia do ego”. Os “annafreu-dianos” - como ficaram conhecidos seus seguidores - aceitam as premissas básicas da psicanálise, apenas modificando ou ampliando alguns dos aspectos da teoria e técnica psicanalítica tradicional.

Delicada e humana, Anna Freud possuía uma “encantadora sobriedade”. Sempre ativa, promoveu, na década de 1960, ciclos de conferências sobre a criança e publicou, em 1965, Infância normal e patológica. Morreu em Londres, em 1982. Abandonara, desde 1970, suas responsabilidades frente à Hampstead Clinic, que depois de sua morte teve o nome mudado para “Centro Anna Freud”.

De 1950 até falecer, Anna Freud publicou uma série de livros, proferiu palestras e cursos pela Europa e Estados Unidos, recebendo homenagens, condecorações, placas e títulos. Segundo ela, porém, sua vida nunca estimularia livros biográficos, “uma vez que não teve muita ação”, como costumava dizer. E Anna Freud concluiria, em um de seus discursos: “E tudo o que vivi poderia ser resumido em uma só frase: passei a vida entre crianças”.

Um início promissor

A vida profissional de Anna começou em 1914, quando iniciou sua formação para o magistério primário. Embora curta, sua carreira nessa área foi de extrema importância, por ter servido de base para o trabalho pioneiro que iria desenvolver no campo da psicologia infantil. Quando, em 1918, começou sua formação psicanalítica, tendo por analista seu pai, era uma jovem insatisfeita com a profissão e consigo mesma. Analisar a própria filha era uma conduta inusitada, já que o terapeuta deveria ser neutro e objetivo. Este fato chocou os colegas de Sigmund Freud, pois, de acordo a suas próprias teorias, o “pai-analista-da-filha” não podia ser objetivo. Como se sabe, para a psicanálise, a teoria do interesse sexual de uma criança pelo genitor do sexo oposto é considerada ocorrência normal. Mas, quando em 1922, Anna publicou sua primeira tese: Lutando contra fantasias e sonhos diários, seus colegas começam a levá-la a sério. No ano seguinte, assume oficialmente as responsabilidades de secretária e representante do pai, além de secretariar o recém-criado Instituto de Formação Psicanalítica de Viena. Começou, também, a clinicar em psicoterapia, numa época em que as teorias de Freud ainda provocavam uma forte oposição entre médicos e psicólogos mais acadêmicos e conservadores.

Em 1925, como vimos acima, começa a trabalhar com Dorothy Burlingham em creches especiais para crianças com problemas emocionais. À medida que Anna analisava um número crescente de crianças, ficou patente que sua técnica de terapia infantil era diferente da que o pai usava com adultos. Isto muito o agradou. Ela recorria a técnicas muito diferenciadas, refutando a análise paterna do “Pequeno Hans”. Sigmund Freud dizia que os “sintomas nos dão a orientação e a segurança ao fazer os diagnósticos”. Mas, como observava Anna, os sintomas infantis não são iguais aos dos adultos.

Em 1927 publicou Introdução à Técnica da Análise da Criança. Começava a se opor a Melanie Klein, líder da escola inglesa, dizendo acreditar que a terapia das crianças devia ser mantida dentro de uma dinâmica “pedagógica”. Seu trabalho mais notável foi O Ego e os Mecanismos de Defesa, publicado em 1936. Foi nessa obra que sua visão da psicanálise infantil começa a caminhar para a adolescência. Esse livro tinha três propósitos. Primeiro, analisar e rever, de forma geral, as descobertas técnicas e teóricas que ensinavam os psicanalistas a dar igual consideração clínica ao id, ao ego e ao superego. Em segundo lugar, rever os mecanismos que seu pai isolara e descrevera, elaborando-os e os resumindo. Por último, incorporar os mecanismos de defesa à experiência que acumulara, até então. Ela consegue terminar o livro a tempo de apresentá-lo ao pai, em seu 80º aniversário.

Nesse livro Anna expõe sua teoria dizendo que o foco da psicanálise não deveria ser os conflitos do inconsciente, mas sim a pesquisa do ego, também chamado de “sede de observação”. Na psicanálise, o ego é a parte do aparelho psíquico que está em contato com a realidade externa. Serve de mediador entre os impulsos instintivos e a realidade. No livro, Anna elaborou sobre uma variedade de mecanismos de defesa psicológicos, sendo, os principais, repressão, negação, racionalização, comportamento reacionário, isolamento, projeção, regressão e sublimação. Estes permitem ao ego eliminar a ansiedade e habilitam o funcionamento psicológico original do indivíduo. Sem dúvida, esta obra foi uma contribuição pioneira no campo da psicologia do ego e de grande utilidade para a compreensão mais profunda do adolescente.

Para Anna, as crianças sempre foram sua razão de ser. Ela desenvolveu o modelo de estudo sistemáti-co de sua vida emocional e mental. Em 1947, fundou em Londres a Clínica de Terapia Infantil Hampshead, importante centro de pesquisas e treinamento para psicanalistas, dirigindo-a até sua morte. Lá, logo começou a trabalhar no berçário de Hampshead, como psicanalista de crianças. Durante a 2ª Guerra Mundial, Anna Freud e sua colega, Dorothy Burlingham, escreveram três livros baseados em seu trabalho nos berçários, que consideravam verdadeiro laboratório para o desenvolvimento infantil. Na realidade, era um abrigo para 80 crianças, a maioria separadas dos pais, que haviam perdido casas e pertences nos bombardeios nazistas. Os três livros eram “Jovens em tempo de guerra” (1942), “Crianças sem família” (1943) e “Guerra e crianças” (1943). As duas colegas descreveram o tratamento adequado para crianças separadas de suas famílias e submetidas às condições estressantes da guerra. Em 1943, Anna Freud fundou a famosa “Clínica Hampshead”, na Grã-Gretanha, onde planejava estudar o efeito da guerra sobre as crianças. Foi pioneira no diagnóstico do desenvolvimento da criança sob estresse, que acarreta distúrbios mentais. Anna visava adaptar a criança à realidade, mas não necessariamente como uma revelação do conflito inconsciente. Trabalhava junto aos pais e acreditava que a terapia devia ter uma influência educacional positiva na criança.

Em 1951, fecharam-se os berçários de Hampshead. Dois anos mais tarde, Anna fundou a “Terapia Infantil de Hampshead”, que se tornou o maior centro do mundo para tratamento psicanalítico infantil, mudando e talvez salvando a vida de inúmeros jovens problemáticos, com distúrbios mentais. Treinou muitos profissionais competentes em terapia infantil e teve muita notoriedade e influência na psiquiatria, de modo geral. Muitos colegas a consideravam a sucessora do pai; psicanalistas americanos a elegeram “a maior, em expe-riência clínica, de seu tempo”.

Anna Freud questionava velhas teorias que se baseavam na noção de que o desenvolvimento saudável de uma criança dependia de uma rígida disciplina. Através das ferramentas da psicanálise, tratava as neuroses infantis interpretando seus sonhos e suas brincadeiras. Seu livro, “Normality and Pathology in Children” (Normalidade e Patologia nas Crianças), de 1965, é um resumo abrangente de seu pensamento, estudo e método de tratamento.

Sua contribuição à terapia e à psicologia infantil foi, sem sombra de dúvida, imensa. Ela demonstrou quão válidas eram as reconstruções que seu pai fizera sobre o desenvolvimento e a patologia infantil, através de suas sessões de análise, mas foi muito além disso. Acrescentou muito ao que já se sabia, através da observação direta das crianças. Anna influenciou muito a atenção futura que seria dada a estas, principalmente à criança e ao adolescente institucionalizados, separados de seus pais e desprovidos de laços afetivos. Não gostava de publicidade, recusando vários convites para ser entrevistada. Seu maior receio era que talvez pudessem afetar seus pacientes e interferir em seu tratamento. Seu trabalho vinha em primeiro lugar e sua dedicação a este era absoluta.

Anna Freud teve um papel revolucionário na psicologia infantil, tanto quanto seu pai o teve na de adultos. Foi condecorada com um certificado de honra pela Universidade Hebraica de Jerusalém, no “Bedford College”, em 14 de julho de 1976.

Bibliografia:
• Slater, Elinor & Robert, Great Jewish Women
• Lyman, Darryl, Jewish Heroes and Heroines