Meu olhar de historiadora sobre Lasar Segall e sua obra é múltiplo por reunir os elementos necessários para um estudo aprofundado sobre a imigração, os imigrantes no Brasil e o legado de um imigrante-artista para a cultura brasileira. Enquanto pesquisadora dedicada aos estudos sobre antissemitismo, Holocausto e Segunda Guerra Mundial, encontrei na sua trajetória e produção artística um conjunto de informações que considero únicas por trazerem mensagens universais.

Considero Lasar Segall um dos mais expressivos artistas-símbolos dos judeus na Diáspora e um dos mais importantes críticos da intolerância nos anos de 1939 a 1957. Suas obras podem ser “lidas” enquanto registros de protesto contra a degradação da retórica política, a injustiça e o genocídio. É nesta direção que tenho utilizado o conjunto de suas obras produzidas entre 1936-1947 como um marco na história da arte moderna brasileira. Entre os artistas estrangeiros radicados no Brasil na primeira metade do século 20 é o único que conseguiu expressar em suas telas a brutalidade sistemática praticada pelos regimes totalitários e reconstituir o drama da travessia dos imigrantes, apátridas, refugiados e exilados.

O mais incrível: retratou o Holocausto, a guerra e o extermínio de milhões de judeus, sem estar in loco, inspirando-se na dor da morte, no terror à violência e no significado da perda da dignidade. Se algumas telas de Segall reconstituem imagens da morte em massa, outras retratam as estratégias de sobrevivência adotadas pelas minorias oprimidas expressas (sutilmente) no caminhar exausto do “judeu errante”, no gesto impetuoso de angústia e do medo, na resignação e apatia dos refugiados judeus. Enfim, a metáfora do sofrimento se transformou na força motriz da criação segalliana que, ao alertar a sociedade para a degradação humana, cumpriu seu papel revolucionário.

Nascido em Vilna em 1891, Segall fixou-se definitivamente em São Paulo em novembro de 1923, vindo a ocupar destacada posição no cenário da arte moderna brasileira. Foram suas andanças pelos tempos sombrios de Berlim, Dresden e Paris, assim como seu retorno a Vilna, que lhe aguçaram a sensibilidade para os temas judaicos, as utopias expressionistas e as concepções de uma arte engajada. Enquanto cidadão russo movido por sua alma judaicaSegall abordou a questão dos imigrantes, dos refugiados, do antissemitismo e da barbárie nazista contra os judeus. Sua opção por uma série de temas representativos da memória coletiva judaica (campos de concentração, pogroms, refugiados, guerras, massacres etc.) expressa a aplicação do seu conceito de revolução espiritual através da arte.

Em meus estudos sobre intolerância e arte política, analiso as obras de Lasar Segall enquanto fonte de crítica social sob múltiplas vertentes: psicológica, histórica, artística e política. O compromisso que mantém com suas origens judaicas aparece cunhado pela sua vivência no gueto de Vilna e pela prática do antissemitismo na Rússia czarista nas primeiras décadas do século passado. Apresenta-se como um pintor engajado com as concepções e utopias expressionistas em circulação no período entre-guerras, na Alemanha, ao mesmo tempo em que mantém sua postura entre dois mundos: o da ortodoxia e o da modernidade. Não ficou inerte diante da ascensão do nacional-socialismo na Alemanha e das práticas genocidas arquitetadas pelo Terceiro Reich, sendo ele mesmo vítima do antissemitismo.

Ao retratar os desastres da guerra e o caminhar errante dos refugiados do nazifascismo, estava criando uma arte engajada com os movimentos de resistência na Europa ocupada. Haja visto seu contato com renomados artistas e intelectuais identificados com os movimentos da vanguarda artística e de combate ao totalitarismo. Valendo-se da sua fama de artista renomado usou seus contatos para tentar salvar amigos judeus presos em campos de concentração ou refugiados do terror nazista.

O período de 1909 e 1912 foi avaliado pelo próprio Segall como uma “época de grande inquietude artística, de fermentação e de transformação”. Os múltiplos retornos a Vilna em distintos momentos de sua formação artística (1910, 1911, 1917/1918), o despertaram para as recordações de sua infância no gueto judeu levando-o a reavaliar sua identidade judaica. Aproximou-se dos valores do judaísmo russo sem se deixar sensibilizar pelas propostas de renovação artística sustentadas pelos movimentos nacionalistas judaicos, que, tanto na Rússia como na Alemanha, congregavam um grande número de defensores do renascimento de uma arte tipicamente judaica. Conflitos de identidade marcavam a postura destes artistas judeus russos atraídos pela possibilidade de romper com a rigidez das tradições e visualizar um mundo novo. Podemos considerar que foi o crescente desejo de mudança o que contribuiu para o florescimento de vanguardas russas no mundo das Artes e das Letras.

Na década de 1920, Segall já havia optado por dar às suas obras um caráter universal, sem abrir mão de sua identidade judaica, o que explica a presença de questões étnicas em muitas de suas obras. Ao adotar os imigrantes e os personagens judeus como matrizes para sua criação, Segall (re)definiu seu território simbólico dando visibilidade as suas tradições culturais. Como imigrante, artista e judeu, Segall viveu o impacto de ser “um estranho no ninho” ao experimentar a sensação de ser tratado como “o outro”.

Entre 1910-1912, como aluno da Academia de Dresden, foi “riscado” da lista de Gotthard Kuehl por “ser russo” (Gestrischen weil Russe) e “judeu-oriental” (Ostjude) que, na década de 1920, seria visto como uma ameaça à superioridade cultural do “judeu alemão”. Entre 1914-1916, Segall testemunhou psicoses coletivas da Europa em guerra, vivenciou o isolamento dos amigos, enfrentou o medo e dificuldades financeiras. Daí os registros de memória que, anos mais tarde, somaram-se a outras tantas imagens de humilhação e degradação dos judeus na Alemanha, cenas assimiladas de fotografias que se prestaram como matrizes de criação para as séries Pogroms, Campos de Concentração, Visões de Guerra, Êxodo, Emigrantes e Navio dos Emigrantes.

Ao longo de sua trajetória em Dresden e, posteriormente, no Brasil, Segall sempre se destacou por um tipo especial de judaicidade, plena de sígnos judaicos. Teve a sensibilidade – a partir dos fundamentos do Judaísmo – para retratar o mundo dos aflitos e da aflição, da vida e da morte, dos gestos e dos murmúrios secretos. Daí sua produção estar impregnada de experiência histórica (memória e registro) e cunhada pela presença do ser humano magoado, maltratado e humilhado. Ainda que em formas geométricas animadas, seus personagens se impõem através dos olhos que, segundo Segall, são as “janelas da alma”.

A partir de 1930, Segall retomou a figura do emigrante transfigurado na imagem do refugiado cujo drama social se fazia, desta vez, limitado pelo espectro nazista que dominava as terras do Velho Mundo. Cenas da emigração forçada emergem como reflexo de um longo e contínuo movimento voluntário de emigração interior a que se entregara Segall no decorrer dos anos de 1930.

Reformulou seus cenários e resgatou personagens-símbolos do cotidiano da intolerância, da guerra e da paz, ora realidade ora utopia. Segall transferiu para suas telas a dor, o sofrimento e a angústia daqueles que, por serem judeus, haviam sido transformados pelo Estado nazista em sub-homens (Untermenschen). Foi neste intervalo, de ascensão e queda do nacional-socialismo na Europa, que Segall produziu alguns dos seus monumentais “folhetins de crítica social” onde a figura do judeu humilhado simboliza o sofrimento de outros tantos povos perseguidos, ora sobreviventes, ora caminhantes sem-pátria.

É neste contexto que devemos avaliar Navio dos Emigrantes:enquanto um navioque não tem direção definida. Um clima de dormência, desânimo e apatia paira sobre aqueles “passageiros sem classe” estirados pelo convés do navio. O nazismo lhes havia tirado tudo. Restava-lhes apenas a dignidade, a vontade de recomeçar e o calor humano. No Navio todos se aconchegam e se consolam manifestando um raro sentimento de fraternidade, tal como Lessing o entendia no século 18, a dizer: o apego fraternal a outros seres humanos que brota do ódio ao mundo onde os homens são tratados “inumanamente”.

Foi como cidadão identificado com o sofrimento dos “párias” e dos “miseráveis” que Segall tentou chamar a atenção do mundo para a catástrofe vivenciada pelos judeus na Europa. Sem poder alterar o mundo real criado pelo nazismo, Segall transformou suas telas em folhetins de denúncia social. Mas o mundo estava cego e surdo. Ciente de que vivia num país sob a égide do autoritarismo varguista, Segall optou pelo lado da resistência diluindo, através de suas mensagens humanitárias, a crítica de que sua postura artística era “burguesa”. Mesmo assim, tentou prever a paz como forma de “reencantamento do mundo” inspirando-se no cotidiano da vida no shtetl e nos cenários tropicais da natureza brasileira. O “ato revolucionário” de sua produção está no fato dela desencadear no espectador o sentimento de fraternidade. Na sua essência, suas obras nos remetem a imagens análogas correspondentes às antíteses Inferno/Purgatório, Purgatório/Paraíso, Ruptura/Continuidade, Vida/Morte e Guerra/Paz. Se avaliada sobre este prisma, a arte de Segall pode ser interpretada como um sinal preventivo para os descaminhos do totalitarismo.

Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora e professora do Departamento de História, FFLCH- Universidade de São Paulo. Autora dos livros: Cidadão do Mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo (Perspectiva, 2020); Dez mitos sobre os Judeus (Ateliê Editorial, 2ed. 2020); Judeus e Judaísmo na obra de Lasar Segall, em coautoria com Celso Lafer (Ateliê Editorial, 2004), dentre outros.