O artista plástico britânico Lucian Freud morreu em Londres, EM 20 de julho último, depois de uma carreira longa e exitosa, mas polêmica, que deixou uma marca inigualável na história da arte do século 20.

Um dos talentos mais representativos de sua geração, autor de obras impactantes e portraits perturbadores, foi uma das maiores expressões da pintura figurativa da atualidade.

Neto de Sigmund Freud, Lucian Michel Freud nasceu em Berlim, em 8 de dezembro de 1922. William Acquavella, marchand e amigo de longa data, descreveu-o como “um dos nomes mais representativos de sua geração, ele conseguiu registrar indivíduos e paisagens com a mesma profundidade, drama e energia. Foi uma personalidade empolgante, modesta, calorosa e espirituosa. Viveu para pintar e pintou até o dia da sua morte, afastado dos ruídos do mundo da arte”.

Lucian dedicou a vida ao que mais amava: pintar brilhantes e inesquecíveis retratos, tanto de celebridades quanto de pessoas comuns. A rainha Elizabeth II, seu amigo Lord Jacob Rothschild, Jerry Hall, a ex-mulher do cantor Mick Jagger, e a modelo Kate Moss foram algumas das personalidades que eternizou em seus portraits.

O quadro da monarca inglesa (2001) – um retrato pouco lisonjeiro marcado por um olhar severo – provocou reações controversas. Elogiado por uns, criticado por outros, gerou o seguinte comentário por parte de Arthur Edwards, fotógrafo do tabloide The Sun: “Deveria ser pendurado no banheiro”.
 
Com o seu talento plenamente reconhecido, em 1989 recebeu o Prêmio Turner. Suas obras alcançaram valores muito elevados em leilões internacionais. A venda ao magnata russo, Roman Abramovich, durante um leilão, em 2008, do quadro “Benefits Supervisor Sleeping”, de 1995, por US$ 33,6 milhões, ganhou as manchetes internacionais. Até então, jamais alguém pagara tanto por uma tela de artista vivo. Lucian não temeu ousar nesta obra, ao retratar uma mulher portadora de obesidade mórbida sem roupas. Seria o retrato de Sue Tilley, gerente de uma agência de empregos da Dinamarca, que pesava 127 quilos.

Entre os prêmios e honrarias recebidas, Lucian Freud era membro da Ordem do Mérito, uma das mais prestigiosas ordens de cavaleiros outorgadas pela Rainha da Inglaterra por grandes realizações no campo das artes, literatura e ciências. A honraria é restrita a 24 membros, incluindo-se entre os agraciados Florence Nightingale, Sir Winston Churchill, Sir Edward Elgar e Madre Teresa.

Os primeiros anos

Sua trajetória poderia ter sido completamente diferente e ele se tornar um nome a mais na lista de vítimas do nazismo. Em 1933, após a subida de Hitler ao poder, seus pais – o arquiteto Ernst Ludwig e Lucienne  – tomaram a decisão de deixar Berlim e recomeçar a vida na Grã-Bretanha. Seu pai, o último dos quatro filhos de Sigmund Freud, era um sionista convicto e em 1927 visitou a então Palestina para construir a casa de Chaim Weizmann, que viria a se tornar o primeiro presidente do moderno Estado de Israel.

Então com 11 anos, Lucian e seus irmãos Clement (que viria posteriormente a ser locutor de rádio e parlamentar agraciado com o título de Sir) e Stephen acompanharam os pais na mudança para a Inglaterra, iniciando um novo capítulo na história familiar.

Lucian, assim como toda a sua família, naturalizou-se britânico em 1939, assumindo definitivamente o país, como seu lar. Durante a 2ª Guerra, em 1941, entrou por um breve período de tempo na Marinha Mercante. Mas a arte sempre foi sua paixão. Em 1938 matricula-se na Central School of Arts, de Londres, no ano seguinte na East Anglian School of Painting and Drawing, em Debham, então dirigida pelo célebre Cedric Morris, onde ficou até 1942, quando passou a estudar no Goldsmiths’s College (1942-1943).  Apesar de seu amor à arte, Lucian freqüentava poucas aulas e, como justificativa, dizia sentir-se solitário. Ademais, tinha dificuldade com o inglês e, principalmente, era considerado temperamental. Sobre isso, certa vez afirmou: “Confesso que isso me deixava muito orgulhoso”.

Dono de um talento inegável, Lucian começou rapidamente a ter seus trabalhos publicados. Entre 1939 e 1943 colaborou com a revista literária Horizon, então editada por Cyril Connolly. Ele tinha apenas 17 anos quando Connolly, já antevendo o sucesso que se anunciava, aceitou publicar seu autorretrato. Aos 21 anos  realizou sua primeira exposição individual na Galeria Lefèvre. No ano de 1946 o jovem artista decide ampliar seus horizontes, passando um ano fora da Inglaterra  entre Paris e Grécia, pintando. A partir de 1949 começou a lecionar na Slade School of Fine Arts, em Londres. Com o retorno ao país, ocorre uma nova escalada de sucesso em sua carreira. Em 1951, recebeu o Prêmio do Conselho do Festival da Grã-Bretanha, pela obra “Interior in Paddington”, então exposta na Galeria de Arte Walker, em Liverpool.

Nas décadas de 1940 e 1950, a pintura abstrata era a tendência dominante no milieu da vanguarda britânica. Freud, no entanto, buscava um estilo próprio. Suas configurações surrealistas iniciais de animais e plantas de tamanhos desproporcionais colocados em ambientes domésticos deram lugar a um amadurecido foco realista traduzido em portraits e nus. Mas Freud não estava sozinho nem alijado do movimento dominante em sua busca pelo figurativo. Entre seus amigos artistas contavam-se Francis Bacon, Frank Auerbach, Leo Kossoff e R.B. Kitaj – grupo que mais tarde foi denominado por este último de Escola de Londres. Muitos deles eram judeus e, para todos, a figura humana era uma preocupação significativa.

Apesar de seus amigos nos círculos artísticos britânicos serem judeus e de ele ter passado sua juventude como refugiado judeu, é difícil ver em Lucian Freud um “artista judeu”. E reivindicar este rótulo para sua arte seria uma busca muito redutora atrás de uma essência judaica ou, o que seria mais provável, de um estereótipo judeu. Diferentemente de Kitaj, Lucian não explorou a problemática ou a história judaica; suas figuras mostram pouca identidade étnica e suas pinturas retratam escassos espaços sociais ou pessoais e além de seu estúdio.

De fato, seus quadros parecem um eco mais suave do movimento da Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade) da Alemanha entreguerras, no qual figuras tensas de homens e mulheres incorporam o mal-estar social e existencial reinante. O judaísmo na carreira do artista exemplifica principalmente o moderno sucesso da Diáspora: a aculturação, o secularismo, o reconhecimento nacional e a aprovação internacional.

A realidade nua e crua

Paddington foi o bairro londrino escolhida pelo pintor para montar o seu estúdio, onde permaneceu por mais de 30 anos, mudando-se então para a região do Parque Holland.

As obras iniciais de Lucian redefiniram a arte britânica e as últimas são comparáveis ao trabalho dos grandes nomes da arte figurativa de todos os tempos. Definido por amigos próximos como sendo “um grande companheiro” e “terrivelmente inteligente”, jamais se preocupou em ser modesto, sendo sempre apenas ele mesmo. Quando falava sobre seus primeiros trabalhos, costumava dizer que estes tinham sido produto “de observação concentrada e detalhada”, do ato de arregalar os olhos o mais perto possível do objeto examinado.

Até os anos 1950, flertando com o surrealismo, suas pinturas eram consideradas relativamente refinadas, tanto na técnica como no conteúdo, utilizando pincéis mais finos e tintas mais ralas. A partir da segunda metade da década de 1950, começou a modificar seu estilo e a utilizar pincéis mais rústicos e traços mais grossos, e temáticas mais ousadas, resultando em trabalhos como “Woman Smiling”, de 1959, definido pelos curadores da Galeria Tate, de Londres, como um marco em sua obra. O novo estilo de Lucian provocou reações diferenciadas nos críticos. Alguns o consideraram “chocante”, “violento” e “afetado”.

Lucien conheceu Francis Bacon em 1945, apresentado por um amigo em comum, o artista Graham Sutherland. Bacon teve grande influência em seu trabalho, sendo creditado pela libertação do estilo de Freud e por estimular seu desejo de retratar a vida humana. Bacon também pintou diversos retratos dele, o primeiro em 1951. Certa vez, ao referir-se ao trabalho do amigo, Lucian teria reconhecido ter ficado impressionado pela obra e personalidade de Bacon.

Um dos dois retratos de Bacon pintados por Freud (o outro foi roubado de uma exposição em Berlim, em 1988) foi vendido em 2010 pela casa de leilões Christie’s, em Londres, por US$ 9,4 milhões. A tela, pintada em 1956-57 oferece um vislumbre da amizade entre dois dos maiores artistas britânicos do século 20.

Retratar a realidade nua e crua passou a ser uma das características mais marcantes do artista. Em sua busca pela captura do que denomina de “outro lado do humano” expôs  em suas obras corpos obesos, desproporcionais e enrugados, em uma espécie de intensificação da realidade. Personagens gordos, feios e velhos, eram recorrentes nas telas de Lucian. Eles expressam a constatação da inexorabilidade do envelhecimento, do peso do tempo sobre o corpo, das cicatrizes das histórias pessoais. Entre olhares penetrantes e expressões faciais vincadas, o artista capturou a Humanidade em estado bruto.

Suas criações eram inspiradas nas pessoas que faziam parte de sua vida: familiares, amigos e conhecidos, pintores, amantes, crianças. Sua mãe e suas filhas, Bella e Esther, posaram para ele. Lucian preferia modelos amadores a profissionais que, em suas palavras, desejavam realmente estar ali mais do que alguém pago para esta função.  “Eu jamais conseguiria transmitir algo que não estivesse, de fato, em frente a mim, física e emocionalmente. Seria não apenas uma mentira, mas também uma grande fraude”. Assim, para ele, manter um relacionamento próximo com os modelos era importante.

O processo de criação poderia durar até um ano. Nesse período, o foco central de sua vida era o personagem da obra, mas que era rapidamente substituído por alguém diferente, para um novo projeto. Como costumava dizer, “o essencial em um tema é autobiográfico, tem tudo a ver com esperança, memória e envolvimento de fato. Eu pinto pessoas que conheço, que me interessam e com as quais me importo, sobre as quais penso, em ambientes onde vivo e que conheço bem”. Por isso ressaltava a importância da confiança e da intimidade com os modelos e os ambientes, princípio que o acompanhou ao longo de sua carreira. E dizia: “Para mim o quadro é a pessoa. Eu pinto a pessoa não precisamente pelo que pareçam, não exatamente pelo que sejam, mas como deveriam ser”.

Em 1974, realizou sua primeira retrospectiva, organizada pelo Conselho de Artes da Grã-Bretanha, na Galeria Hayward. Em 1987, o Museu Hirshhorn, em Washington, realizou uma exposição das obras de Lucian e o evento foi considerado, pelo The New York Times, um marco para o sucesso do pintor nos Estados Unidos.

Em 2002, novamente a Galeria Tate, de Londres, fez uma nova mostra do artista, com grande sucesso de público e vendas. Atualmente, suas obras fazem parte principalmente de coleções particulares, mas algumas podem ser vistas em acervos públicos, como a Galeria de Arte de Southampton e o Museu Nacional de Gales. É consenso entre especialistas de que ele foi um dos pintores mais importantes da arte contemporânea inglesa, com suas obras impactantes e seus retratos perturbadores. Para Nicholas Serota, diretor do grupo de galerias britânicas Tate, Lucian Freud tem um lugar único no panteão da arte do final do século 20.

Bibliografia:
“Lucian Freud: from Nazi Germany to Britain’s art elite”, artigo publicado por Jennifer Lipman em 22 de julho de 2011 no site http://www.thejc.com/news/uk
“Painting titan, Lucian Freud dies”, artigo publicado por Mike Collet-White em 22 de julho de 2011, pela Agência de Notícias Reuters
“Lucian Freud”, artigo publicado no dia 22 de julho de 2011 pela BBC News