O fantasma do antissemitismo volta a rondar a Hungria, em movimentos impensáveis para um país integrante da União Europeia.

A infame memória do líder fascista Miklos Horthy, aliado do nazismo, ganha homenagens; autores racistas dos anos 1920 passam a fazer parte de currículos escolares e um deputado de extrema-direita pede às autoridades que seja compilada uma lista de judeus húngaros que representem “um risco para a segurança nacional”.

Nem o futebol escapou. Em janeiro, a FIFA puniu a seleção húngara depois que torcedores gritaram slogans antissemitas durante uma partida contra Israel, em Budapeste. No momento em que foi tocado o hino israelense, Hatikva, um grupo na torcida deu as costas ao campo e disparou ofensas racistas e homenagens ao ditador Benito Mussolini. O jogo pelas eliminatórias para a Copa do Mundo no Brasil terminou empatado em 1 a 1.

A Hungria vai jogar sua próxima partida, contra a Romênia, num estádio vazio. Além de impedir o acesso de torcedores, a FIFA impôs à Associação Húngara de Futebol a multa de 43 mil francos suíços e ainda ameaçou excluir o país da Copa de 2014, caso se repitam lufadas racistas em jogos do time de Budapeste.

Dirigentes esportivos húngaros classificaram como “excessiva” a punição imposta pela entidade máxima do futebol mundial. No entanto, o Comitê Disciplinar da FIFA sustentou que “condenava de forma unânime o repugnante episódio de antissemitismo” e as ações de “natureza política, provocativa e agressiva perpetradas por torcedores da seleção nacional da Hungria”.

A marcha para o extremismo paira sobre o país há alguns anos. Porém, se intensificou sobremaneira nos últimos meses. Em 2010, o partido de direita Fidesz (Aliança dos Jovens Democratas) obteve 52% dos votos, o que, graças a engrenagens do sistema político, proporcionou-lhe valiosa maioria de dois terços das cadeiras no Parlamento. Pôde então comandar a elaboração de uma nova Constituição, adotada em 1° de janeiro de 2012 e responsável por uma saraivada de críticas oriundas da oposição e do exterior.

Autoridades, parlamentares e juristas europeus, especialistas das Nações Unidas, governos alemão e norte-americano, entre outros, expressaram preocupação com os rumos da jovem democracia húngara em um novo quadro constitucional que, por exemplo, ameaça separação entre os poderes, a liberdade de imprensa e a independência do Banco Central.  Dezenas de milhares de manifestantes foram às ruas da capital Budapeste protestar contra a nova Constituição.

O Fidesz surgiu em 1988, como partido de jovens empenhados em derrubar o moribundo regime comunista e colocar a Hungria no universo das democracias liberais. No ano seguinte, caíram o Muro de Berlim e o regime húngaro controlado pelo Kremlin.  Anteriormente, Budapeste despontava como um “laboratório de reformas” para a Perestroika e, por haver avançado bastante nas mudanças, candidatava-se ao posto de pérola democrática do Leste europeu.

Os últimos anos, no entanto, enterraram essa percepção. A Hungria do atual premiê Viktor Orban, do Fidesz, abocanhou espaço no noticiário internacional não por conquistas democráticas, mas por guinadas à xenofobia e ao autoritarismo, envoltas na incapacidade governamental de lidar com a crise econômica que se abate sobre o continente. Em maio de 2012, a taxa de desemprego húngara batia em 11%.

A extrema direita, representada pelo Jobbik (Movimento por uma Hungria Melhor), passou a mostrar suas garras com mais intensidade. Transformou-se no terceiro principal partido do país, com 43 deputados em um total de 386. E um de seus líderes protagonizou, no final do ano passado, um dos momentos mais sombrios na deterioração da democracia húngara.

Marton Gyongyosi, deputado do Jobbik e vice-presidente do comitê de Relações Exteriores do Parlamento, exortou as autoridades a compilar uma lista de húngaros de origem judaica, no Legislativo e no Executivo, que “representem um risco para a segurança nacional”. O apelo lembrou momentos dramáticos da Alemanha nazista e também da Hungria governada por Miklos Horthy, entre 1920 e 1944, aliado do Terceiro Reich.

Mais de 500 mil judeus da Hungria pereceram no Holocausto. Atualmente, a comunidade contabiliza cerca de 100 mil integrantes, numa população total de 10 milhões de pessoas. A fala de Gyongyosi trouxe à tona memórias de perseguições e massacres.

Num primeiro momento, o primeiro-ministro Viktor Orban, do direitista Fidesz, permaneceu calado. O porta-voz do governo condenou a saraivada racista de Gyongyosi. O conjunto da obra, de reação governista, foi tachado de “tépido” pela publicação britânica The Economist. Dias depois, milhares de pessoas se concentraram em frente ao Parlamento húngaro, para denunciar o antissemitismo do deputado do Jobbik. Discursaram lideranças da oposição socialista e até mesmo do governista Fidesz.

No dia seguinte, o premiê Orban finalmente saiu das sombras e criticou a proposta de Gyongyosi. Recebeu Peter Feldmajer, líder da comunidade judaica húngara, e prometeu segurança e proteção. A reação levou até mesmo o deputado racista a rever sua proposta, ao afirmar que “apenas os judeus com cidadania húngara e israelense” teriam de ser monitorados.

De olho nas eleições de 2014, o Jobbik busca explorar a insatisfação com os rumos da economia húngara e distribui ataques de xenofobia contra judeus e outras minorias, como ciganos. O partido tenta ainda faturar politicamente com a reabilitação de Horthy, cujo nome foi emprestado a diversas ruas pelo país, além de estátuas inauguradas em homenagem ao colaborador nazista.

O Partido Socialista, de oposição, enviou em junho uma carta aberta ao primeiro-ministro Orban, advertindo que o país mergulhava em “séria crise moral” devido ao culto à memória de Miklos Horthy. No mês seguinte, o presidente húngaro, Janos Ader, reuniu-se em Jerusalém com o premiê Binyamin Netanyahu, que expressou sua preocupação com o “ressurgimento do antissemitismo na Hungria”.

Com medo do avanço do Jobbik, o governista Fidesz faz um jogo duplo, de tentar manter credenciais democráticas e críticas a ações extremistas, ao mesmo tempo em que alimenta o nacionalismo extremado, com alicerces em um período de racismo e perseguições. Em maio, por exemplo, o premiê Orban autorizou a inclusão em currículos escolares de obras de autores antissemitas. A comunidade judaica húngara enviou um protesto ao Ministério da Cultura.

Em 2009, a justiça do país funcionou ao banir a Guarda Húngara, organização com uniforme e símbolos calcados no Partido da Cruz de Flechas, de ação hitlerista e que, de 1944 a 1945, governou Budapeste. Entre a fundação e o banimento da estrutura neonazista, passaram-se dois anos.

Após o final do regime comunista, em 1989, a comunidade judaica húngara viveu uma onda de revitalização, com abertura de centros religiosos, museus, restaurantes e escolas. A maior sinagoga da Europa, localizada em Budapeste e construída em meados do século 19, passou por reformas. O festival judaico de verão, criado em 1998, saltou de um público inicial de 3 mil para os atuais 120 mil visitantes.

Oskar Deutsch, presidente da comunidade judaica vienense, constatou recentemente um aumento na chegada de judeus oriundos de solo húngaro. “Fico contente pelo fato de haver pessoas chegando, mas as circunstâncias que as forçam a deixar a Hungria, devido à situação política, devido ao antissemitismo, me desagradam profundamente”, observou o dirigente comunitário.

O Jornalista Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.