Os judeus portugueses estão eufóricos, neste começo do século XXI. O centenário da Sinagoga de Lisboa, oficialmente chamada Shaaré Tikvá (Portas da Esperança), tornou-se um marco para a comunidade judaica não só da capital, mas de todo Portugal, servindo como mola propulsora para a concretização de antigos anseios.

Os preparativos para o primeiro Congresso das Comunidades Judaicas Portuguesas, agendado para 2004, vêm também recebendo atenção especial dos líderes comunitários. A criação de uma Confederação das Comunidades Judaicas Portuguesas é igualmente um próximo passo a ser alcançado, além da criação do Museu Judaico, a ser instalado na Sinagoga de Lisboa, que está sendo totalmente restaurada. O museu terá enfoque pedagógico e turístico, visando a divulgar e valorizar a história dos dois séculos da Comunidade Israelita de Lisboa, suas origens, a luta ao longo do século XIX pela sua unificação e reconhecimento oficial, o trabalho em prol dos refugiados da Segunda Guerra, os rabinos, as mulheres e os homens que deram ao ishuv vida e alma.


Shaaré Tikvá: 100 anos de judaísmo

Em 2 de junho passado, numa solenidade carregada de emoção e simbolismo, a Shaaré Tikvá estava completamente cheia para a comemoração dos seus 100 anos, com convidados da África do Sul, Estados Unidos, Israel e de vários países da Europa. Também marcaram presença líderes de outras religiões, além de representantes oficiais do Estado português entre estes o próprio presidente da República, Jorge Sampaio, que, embora não sendo judeu, poderia, segundo a Lei do Retorno, fazer aliá e tornar-se cidadão israelense, já que sua avó materna era a judia Bensliman Bensaúde. Representando o Estado de Israel estava seu Embaixador em Lisboa, Shmuel Tevet. Impossibilitado de comparecer, o presidente de Israel, Moshe Katsav, enviou seus cumprimentos por escrito.

A cerimônia teve momentos altos: o cortejo dos Sifrei Torá [rolos da Torá], a entoação dos salmos 100, 111 e 150 - os mesmos recitados 100 anos atrás, na cerimônia da colocação da primeira pedra da edificação a evocação dos nomes dos rabinos e ofi-ciantes que serviram a comunidade ao longo do século, e os cânticos do Jerusalem Cantors Choir - um coro de chazanim, vindos especialmente de Jerusalém, conta Esther Mucznik, a hiperativa vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, ou apenas CIL.

O cântico Chishki Chizki, entoado por ocasião da inauguração da Sinagoga Portuguesa de Amsterdã, em 1675, e a presença do rabino Abraham Levy, líder espiritual da Spanish and Portuguese Congregation of London, por sua vez ligada à Sinagoga de Bevis Marks, fundada por judeus portugueses no século XVII, foram um traço de união com o passado. As mensagens do Presidente do Estado de Israel e do Presidente da República de Portugal, conclamando à paz e à tolerância, representam um compromisso para o futuro, completa Esther.

A Shaaré Tikvá é a maior sinagoga de Portugal, em número de assentos; o Templo do Porto é o maior em tamanho e número de ambientes. Inaugurada em 1904, a Sinagoga de Lisboa segue o rito ortodoxo sefaradita português, mas com influência marroquina, explica o rabino israelense Shlomo Vaknin, líder espiritual da congregação, figura amplamente solicitada pela imprensa portuguesa. Vaknin lamenta que não se tenham os dez homens para compor o minian diário para as orações. No Shabat é diferente, frisa. A Sinagoga de Lisboa foi a primeira a ser construída depois das conversões forçadas e da destruição oficial do judaísmo português, em 1497. Por isso, tem um especial simbolismo para os judeus portugueses.

A cerimônia de 2 de junho marcou os 100 anos da colocação da pedra fundamental da sinagoga, em 1902. Os judeus de Lisboa davam, então, o primeiro passo para a concretização de um sonho: a construção de uma sinagoga que os reatasse com o passado da presença judaica em Portugal, antes da expulsão, abrindo simultaneamente uma porta de esperança para o futuro, explica a vice-presidente da CIL.

Ajuda brasileira

As necessidades do ishuv vinham se tornando maiores e o brasileiro Marcos Prist, 33, ex-assessor executivo do departamento de juventude da Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) foi contratado, em janeiro deste ano, para assumir o cargo de Diretor Executivo da CIL, visando a otimizar, potencializar, coordenar e desenvolver o trabalho e as atividades nas áreas institucional, social, educacional e administrativa dessa comunidade.

História recente

A atual comunidade judaica de Lisboa tem sua origem nos grupos de judeus sefaraditas que se instalaram em Portugal, no início do séc. XIX. Eram em sua maioria negociantes, provenientes de Gibraltar e Marrocos. Alguns dos seus nomes ainda evidenciavam uma ligação à origem ibérica, antes do período da expulsão, no final do séc. XV.

Eram pessoas com nível cultural acima da média, sabendo ler e escrever e falando, além do hebraico litúrgico, o árabe ou o inglês e haquítia, dialeto judeu-hispano-marroquino. Tinham numerosos contatos internacionais, devido não só às atividades comerciais, mas também a seus laços familiares espalhados pelo mundo. Estes fatores explicam o rápido florescimento econômico e cultural não só, aliás, dos judeus de Lisboa, mas também dos grupos que foram se instalando nessa primeira metade do séc. XIX nos Açores e em Faro.

Os judeus ainda eram considerados uma colônia estrangeira e a comunidade não tinha existência legal. A Carta Constitucional de 1826 reconhecia apenas o catolicismo como única religião permitida aos cidadãos portugueses, remetendo os outros cultos para os estrangeiros. Daí que nessa altura se fale de colônia israelita, tal como se falava de colônia inglesa ou alemã.
Não podendo obter a legalização da comunidade, os judeus de Lisboa foram criando, sobretudo na segunda metade do séc. XIX, instituições de beneficência sob a forma de associações autônomas, cujos estatutos eram submetidos à aprovação do governo civil, ou sob a forma de fundações privadas, geralmente dirigidas por senhoras. Estas instituições desempenharam um papel decisivo na união e organização do judaísmo português.

Ao longo do século XIX sucederam-se tentativas de construção de uma sinagoga em Lisboa. As dificuldades eram grandes, devido ao não-reconhecimento, pelo regime monárquico, da colônia israelita como portuguesa de fato. Contornando tal obstáculo, os judeus de Lisboa, reunidos em Assembléia Geral em 4 de março de 1897, promovem a criação de uma comissão de edificação de uma sinagoga, presidida por Leão Amzalak. Em 23 de agosto de 1901, foi assinada a escritura de compra de um terreno na rua Alexandre Herculano. Por impedimento legal, a escritura de compra foi feita em nome particular, sendo o terreno posteriormente doado à comunidade.

O projeto da Shaaré Tikvá foi de autoria de um dos maiores arquitetos da época, Miguel Ventura Terra. Teve, contudo, que permanecer escondido por um muro, já que não era permitida a construção com fachada para a via pública de um templo que não fosse católico, então a religião oficial do Estado português. Finalmente, em 25 de maio de 1902, Abraham E. Levy coloca a pedra fundamental e, dois anos depois, em 18 de maio 1904, é inaugurada a Sinagoga Shaaré Tikvá, coroando um esforço de mais de 50 anos dos judeus lisboetas.

O reconhecimento oficial da comunidade em 1912 - precisamente 416 anos depois do Edito de Expulsão e quase um século depois da extinção da Inquisição e a construção da sinagoga deram um novo impulso à vida comunitária em Lisboa. Assim, logo em 1912, é criada a Associação de Estudos hebraicos Ubá le Zion, cujo grande dinamizador foi Adolfo Benarus, professor da Faculdade de Letras de Lisboa, escritor e pedagogo, que também foi fundador, em 1929, da Escola Israelita, que chegou a ter perto de uma centena de alunos. A criação de um boletim - elo de ligação entre os membros da comunidade, dirigido por Joseph Benoliel a organização de uma biblioteca, em 1915, e a fundação da Associação da Juventude Israelita Hehaver, em 1925, são outras tantas pedras na consolidação da Comunidade Israelita de Lisboa.

O apoio aos refugiados da Segunda Guerra

A partir dessa altura, a comunidade vai conhecer, por força dos acontecimentos europeus, uma alteração profunda, quer na sua ação, quer na sua composição. As perseguições anti-semitas no Leste europeu e a rápida ascensão do nazismo, na Alemanha, começam a fazer chegar a Portugal os primeiros judeus asquenazitas, que rapidamente se integram à comunidade judaica local. O desencadear da Segunda Guerra e a política de neutralidade que Portugal assumiu e a concessão de vistos de trânsito a perto de 100.000 refugiados levam a um afluxo de dezenas de milhares de judeus ao país. Os poucos que ficaram alteraram as proporções majoritariamente sefaraditas da comunidade de Lisboa. 

Os judeus portugueses tiveram neste período um papel importante no apoio aos refugiados, através da criação da Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados em Portugal (Comassis). Financiada pela Joint e outras instituições judaicas internacionais, a comunidade manteve a Cozinha Econômica e o Hospital Israelita, fornecendo diariamente alimentação, vestuário e atendimento médico aos refugiados.

Até a década de 1960, a comunidade se manteve demograficamente estável, mas a criação do Estado de Israel e a eclosão da Guerra Colonial de Angola levaram à emigração de algumas famílias, principalmente para Israel. Hoje, embora mais reduzida em número e tendendo a uma assimilação progressiva, a comunidade mantém os seus serviços essenciais em funcionamento.

A abertura política, após a Revolução dos Cravos, e a entrada de Portugal na União Européia têm feito chegar ao país judeus originários de diversos países da Europa e mesmo do Brasil. Tal fato pode dar uma nova cara à comunidade judaica em Portugal.

Centenário e revitalização

A Comunidade Israelita de Lisboa atua como representante e principal interlocutora do judaísmo português.

Ao longo de todo o século XX, até os dias de hoje, a Sinagoga de Lisboa tem sido o ponto de encontro e de unidade do ishuv lisboeta e o símbolo da sua presença e continuidade. A sinagoga já abrigou muitos episódios - tristes e alegres entre momentos trágicos e de esperança para os judeus de Portugal. Nela se assistiu ao nascimento da República portuguesa e se orou pelo fim da Primeira Guerra Mundial. Nela se rogou pelo fim do calvário dos judeus da Europa nas mãos de Hitler: os seus muros são testemunho da dor, do desespero e também da esperança de milhares de refugiados, sobreviventes do Holocausto, que por lá passaram, a quem a comunidade acolheu e confortou. Na Shaaré Tikvá comemorou-se a criação do Estado de Israel. Nela também se pediu o fim da Guerra Colonial portuguesa e se chorou a morte de Meir Kopejka, em Angola. Nela se viveu o 25 de Abril (Revolução dos Cravos) e se acolheu Mário Soares, o primeiro Presidente da República a entrar no templo. Na Sinagoga de Lisboa homenageou-se o diplomata Aristides de Sousa Mendes, por sua corajosa ação de salvamento de judeus, durante a Segunda Guerra. Nos seus muros se evocaram os 500 anos do Edito de Expulsão, de 1496, e se orou em memória das vítimas da Inquisição. Na Sinagoga de Lisboa esteve Yitzhak Rabin e, por fim, nela reuniram-se, agora em 2002, pela primeira vez na história da sinagoga, representantes da Igreja Católica e da Comunidade Islâmica, entre os judeus portugueses.

Além da sinagoga, o ishuv lisboeta coordena outras instituições como a Somech Nophlim (organização beneficente, criada em 1865), a Hevrah Kadisha (sociedade funerária), o Centro Israelita de Portugal (centro de atividades sociais), entre outros. Os membros de língua inglesa se reúnem para atividades sociais no Jewish Linha Club. Há ainda a Associação de Estudos Judaicos e a Associação de Amizade Portugal-Israel, organismos com forte ligação com a CIL, porém independentes. Além destes, na Universidade de Lisboa encontra-se a Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, que, financiada com dinheiro da família Benveniste (associada à CIL), estuda as tradições dos judeus sefaraditas na Península Ibérica e o idioma ladino.

 

A comunidade judaica portuguesa de hoje é formada por sefaraditas e asquenazitas. Inclui judeus do Marrocos, que chegaram no final do século XIX, russos e poloneses que fugiram dos pogroms da primeira metade do século XX e judeus da Romênia. Chegaram ainda judeus durante o período nazista, mas muitos não puderam ficar no país devido à rigidez da lei, que não o permitia. Asquenazitas e sefaraditas rezam nas mesmas sinagogas, explica Samuel Levy, presidente da CIL. A comunidade está estabilizada em seu número e, a cada ano, ocorrem um ou dois casamentos, completa.

 

Segundo Levy, cerca de 1.200 judeus vivem hoje em Portugal, embora o número seja contestado. Lisboa, Porto, Belmonte e Algarve formam o grupo das comunidades judaicas organizadas no país. Esther Mucznik afirma que o Congresso de 2004 e a conseqüente criação da almejada Confederação visa exatamente a englobar os quatro ishuvim. A tônica das relações intercomunitárias é a solidariedade e cooperação. Os elos são bem fortes e Lisboa, por ser a maior e mais organizada, presta assistência a todas as outras, explica. De acordo com Levy, Lisboa abriga cerca de 1.000 judeus, no Porto há em torno de 50, cerca de 100 em Belmonte e aproximadamente 40 no Algarve.

 

Tais números podem parecer ínfimos se comparados aos do Brasil, cuja maior congregação judaica a Congregação Israelita Paulista (CIP) tem sozinha 1.800 famílias associadas, totalizando mais de 7.000 judeus. No entanto, a CIL e o ishuv português como um todo vêm dando claros exemplos de que apostam num futuro próspero, baseado não em números, mas no fortalecimento da estrutura comunitária.

 

A criação da Confederação das Comunidades Judaicas Portuguesas pretendedar ao judaísmo português uma representatividade única, consistente e forte, perante a sociedade portuguesa. Deve ser uma confederação de comunidades, não de pessoas, declara Esther, a vice da CIL, que também diz que um censo para contar os judeus de Portugal deve ser realizado em breve. Levy, o presidente da comunidade, completa dizendo que nosso relacionamento com o governo português, assim como com a Igreja e com os muçulmanos, é respeitoso e muito bom. Eu não vejo preconceito anti-judaico no Portugal moderno, garante. Existe uma forte ligação entre a comunidade judaica portuguesa e o Estado de Israel.

 

Para o Embaixador de Israel em Lisboa, Shmuel Tevet, devemos parabenizar todos os esforços que vêm sendo feitos em prol do enriquecimento do judaísmo português. Minha esposa Nava e eu nos sentimos em casa.

Juventude: nova geração

Em março de 2002, o judaísmo português ganhou o primeiro movimento juvenil (tnuá) da sua história, o Dor Chadash (nova geração). Os jovens já contam com atividades para a ampla faixa etária de 4 a 25 anos.

 

Segundo Marcos Prist, seu coordenador, a idéia de estabelecer a tnuá partiu dele mesmo, que levou de São Paulo experiência suficiente no assunto - a comunidade judaica paulista possui doze movimentos juvenis e Prist foi responsável por um dos maiores, o Hashomer Hatzair. Mas não se trata de uma idéia isolada, e sim parte do projeto global de reestruturação da CIL que apresentei à comunidade, conta. Na sua opinião, para se conseguir continuidade, auto-gestão e formação de novos líderes não há modelo melhor do que o de um movimento juvenil.

 

Tikvá: comunicação

O boletim Tikvá é o principal veículo de comunicação entre os judeus portugueses, anunciando eventos religiosos e culturais, divulgando todas as atividades da comunidade, além de dar espaço a mensagens diversas, opiniões, sugestões, comentários. O casal Patricia Nanteuil e Joseph Lustigman, imigrantes franceses, foram os bravos idealizadores da publicação e seus mantenedores iniciais.

 

Quando foi lançado, apenas 200 cópias do Tikvá eram distribuídas. Este número rapidamente cresceu, e hoje o boletim já chega a mais de 2.500 leitores em Portugal, França, Suíça, Canadá, EUA, África do Sul, Brasil etc. Para Marcos Prist, o casal Lustigman fez um trabalho brilhante. Hoje, porém, não está mais à frente do boletim, que passou a ser coordenado pela própria direção da CIL. Renovado, ganhou novo formato com qualidade gráfica esmerada. E continua, o boletim acompanha o ishuv, vive um momento de abertura e de mobilização, de nova idéias e de grandes projetos.

Marcus Moraes
Jornalista responsável pelas notícias do site Morashá.com e correspondente da JTA (Jewish Telegraphic Agency) no Brasil e Portugal.
Colaboração: Esther Mucznik e Marcos Prist.