‘Um pintor judeu, isto não existe’, disse, um dia, Feiga Segal a seu filho, Marc. mas este se tornaria um dos maiores pintores do século 20.

Marc Chagall, nome artístico de Moishe Segal, era o mais velho entre os nove filhos de Zachar e Feiga-Ita. Segal é um nome derivado de uma abreviatura de Segan Levi, "assistente dos levitas". Em russo, seu nome era Mark Zakharovi Sagalov, simplificado mais tarde para Sagal, de onde se originou a transcrição francesa Chagall, com a qual ficaria conhecido. Nasceu em 7 de julho de 1887, durante um terrível incêndio que destruiu grande parte de sua cidade natal, Vitebsk, ao Noroeste da atual Bielorrússia. Na época, a cidade, em que mais de metade da população era judia, estava localizada no chamado "Território do Acordo", onde os czares russos obrigavam os judeus a viver.

O nascimento do pintor foi marcado por medo e apreensão. Feiga, prestes a dar à luz, foi levada às pressas, em sua própria cama, para o outro lado da cidade, longe do fogo.

Quando, algumas horas mais tarde, Moishe nasceu, ele era tão pálido e frágil que a parteira ficou preocupada, para o desespero de seus pais, que julgaram que o bebê não sobreviveria.

No entanto, contrariando as expectativas, viveu para ser um dos maiores pintores do século 20.

Uma criança sonhadora, Moishe passava muito tempo ao lado de sua mãe. Sentado tranquilamente à mesa da cozinha, na casa onde viviam, ou nas escadas da loja de arenque da família, ele passava os dias desenhando, enquanto Feiga cozinhava ou cuidava de outros afazeres, ocupada em aumentar a renda familiar. De vez em quando, o menino lhe mostrava seus trabalhos. Ao vê-los, carinhosamente afagava os seus cabelos, e dizia: "Sim, meu filho, estou vendo, você tem talento. Mas, quem sabe? Talvez lhe seja mais produtivo ser comerciante...". Assim, sempre que lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, dizia que pretendia ser dançarino, músico, poeta ou pintor. Desde cedo, sonhava em sair de Vitebsk e correr o mundo. Mas foram as imagens e experiências de seus primeiros anos de vida naquela aldeia que serviram de inspiração para muitos de seus quadros.

Uma família muito presente

Ter um filho artista não era o sonho de seus pais, judeus chassídicos, que trabalhavam arduamente para garantir o sustento da numerosa família. Para eles, o pequeno Moishe deveria ser contador, trabalhar na loja ou em qualquer outra profissão mais pragmática.

Portanto, quando manifestou à mãe seu desejo de se tornar pintor, ouviu a seguinte resposta: "Pintor judeu? Isto não existe". Ainda assim, ele não desistiu e Feiga se tornou sua principal aliada - mesmo não acreditando que seu primogênito pudesse realmente um dia viver de arte.

Tanto o pai quanto a mãe de Marc Chagall, que eram primos, eram naturais da aldeia de Lyozno, um shtetl próximo a Vitebsk. Não foi fácil, principalmente para o pai, Zachar, um homem simples, empregado em uma fábrica de arenques, aceitar o fato de seu filho querer ser artista. Segundo a própria descrição de Chagall, o pai era "um homem com o coração do povo, poético e silencioso, com a barba por fazer, os olhos marrom e cinza, ao mesmo tempo, o rosto coberto de rugas e vincos. Ele voltava todas as noites para casa, cansado, com as roupas brilhando de gordura de peixe. Somente seu rosto, ora amarelo, ora iluminado, esboçava um sorriso pálido....Aos meus olhos, tudo em meu pai parecia mistério e tristeza. Uma imagem inacessível. Sempre cansado, preocupado.... seus olhos transmitiam resignação". O filho sofria ao ver o pai "levantar peso e mexer nos arenques, com as mãos geladas, enquanto seu patrão, um homem gordo e forte, apenas o observava". Mas Zachar jamais se queixava, nunca demonstrando amargura. Mantinha-o de pé a sua intensa fé em D's. E, como escreve Chagall em suas memórias: "Apesar de sua labuta, penosa e apagada, e de seu temperamento quieto e taciturno, o pai era muito carinhoso com os filhos. Voltava à casa sempre com os bolsos cheios de docinhos e frutas cristalizadas, que faziam a nossa alegria."

Feiga, a mãe do artista, era uma mulher de pequena estatura, muito ativa e cheia de vida. Era filha de um açougueiro de Lyozno, sobre quem as más línguas diziam que se casara sem esperar pelo consentimento do futuro marido. Era o protótipo da balebouste, como se dizia em iídiche, a personificação de uma verdadeira mãe e dona-de-casa. Cuidava bem dos filhos, da casa e da roupa. Feiga tinha uma vida dura, tendo ficado com a cabeça branca ainda muito jovem. "Seus olhos viviam cheios de lágrimas", escreveu o filho,certa vez. Sem jamais se queixar, a não ser quando as crianças dormiam e ela se sentava sozinha na mesa da cozinha, e dizia não ter com quem conversar. Mas, tinha o dom da eloqüência - coisa rara naquele e em outros vilarejos pobres. E gostava de argumentar.

O único que ficava perto dela, às vezes, era Moishe. Ela, então, implorava-lhe que conversasse com ela, mas, por ser criança, ele não sabia o que dizer. "Todo o meu talento", escreveu Chagall, "se escondia em minha mãe e em tudo o que lhe pertencia, e à exceção de sua mente, ela me transferiu todas as suas qualidades".

Depois de casar, Feiga abrira uma pequena loja onde vendia arenque, farinha e açúcar. A típica "venda iídiche" dava lucro e acrescia bastante a renda familiar. Portanto, a família não só criou seus oito filhos, mas ainda conseguiu construir quatro casas, que aportavam bom aluguel. Os fregueses eram, naturalmente, os vizinhos, judeus entre os quais cresceu Marc Chagall e cujas características ele guardou na retina e no coração.

O menino passava grande parte do tempo na loja da mãe, observando-a enquanto trabalhava e cuidava dos negócios. Sobre ela, Chagall escreveu: "Eu a vejo dirigindo toda a casa, orientando meu pai, construindo pequenas casas, inaugurando uma loja, alugando um caminhão de mercadoria, sem dinheiro, tudo "no fiado". Com que palavras posso descrevê-la, sempre sorrindo, na porta da loja ou à mesa, sentada durante horas, esperando um vizinho para ter com quem desabafar". Ela falava com perfeição o iídiche, esta língua tão rica onde cada palavra pode ter inúmeras interpretações, segundo o humor de quem falava.

Quando as irmãs de Chagall chegavam à idade de se casar, era ela quem tomava a dianteira e, sozinha, saía à procura de um par, um "shiduch" adequado, pesquisando, ela mesma, tudo o que podia sobre os possíveis candidatos.

Feiga gostava de ter Moishe sempre por perto, nunca o perdendo de vista. Enquanto ficava sentado à entrada da loja, observava, absorto, o vai-e-vem dos clientes que, um dia, lhe serviriam de inspiração e povoariam inúmeros de seus quadros. Atento e em silêncio, o rapazinho observava a expressão e os gestos do açougueiro, do guarda, dos vendedores, do barbeiro, do shnorer (o que pechinchava) e do rabino. A mãe o queria por perto, temendo que o ódio da população contra os judeus pudesse feri-lo, pois em Vitebsk, como no resto da Rússia, esse ressentimento rapidamente se transformava em um pogrom. Assim era a vida dos judeus, à época.

Os Segal eram fervorosos chassidim. Zachar ia todos os dias à sinagoga, como aprendera com seu pai e seu avô. As festas eram escrupulosamente respeitadas e celebradas com alegria. Em Iom Kipur, por exemplo, Marc acompanhava o pai, ouvindo atentamente as rezas, impressionado pelo fervor e exaltação dos que oravam na sinagoga. Um dos seus momentos preferidos era o do toque do shofar, marcando o fim de Iom Kipur. A exaltação mística dos chassidim, as orações, os cantos e danças marcariam profundamente o jovem.

A celebração de Shabat também era uma ocasião especial na rotina da família, pois era a oportunidade de todos se reunirem ao redor da mesa, coberta por uma toalha branca, sobre a qual destacavam-se os dois castiçais. Mais uma vez, a imagem de sua mãe é uma das lembranças mais fortes, pois ela corria contra o tempo para preparar tudo antes do pôr-do-sol. Feiga fazia a chalá e o guefilte fish que servia à noite, quando tios e primos juntavam-se para o Shabat.

Apoio decisivo

Quando Moishe completa seis anos, a mãe o manda ao cheder, situado próximo à sinagoga de Zaruchjevskaja, a maior de Vitebsk. Durante curto período, Marc lá estudou. O rabi ensina-lhe hebraico e história judaica, mas, a bem da verdade, ele não apresentava qualquer progressos nos estudos.

Feiga queria que seu filho tivesse boa instrução e o matricula no curso de comércio, de quatro anos, que ele deve ter completado em meados de 1905. Àquela época, os judeus não eram aceitos nos colégios públicos da Rússia. Mas a zelosa Feiga conseguiu subornar a pessoa certa e Marc foi admitido diretamente no terceiro ano. À época, Marc - a quem todos chamavam de Moshka - apresentou sinais de gagueira. Era mau aluno, frágil de corpo e motivo de chacota constante dos amigos. Foi quando larga tudo e se dedica somente à pintura.

Seu desinteresse pelo estudo preocupava a mãe que não parava de se perguntar de quem o filho herdara aquela mania de viver sonhando, sempre num mundo de fantasia. Quem sabe, seria do tio Nóiech, um excêntrico chassid, que tocava violino? Para ganhar a vida, dedicava-se ao transporte de animais, durante a semana, mas, no Shabat se transformava.

Colocava o talit e lia a Torá, em voz alta. Passava horas com o pequeno Marc conversando sobre o Eterno e, juntos, sonhavam com um mundo melhor, onde não havia miséria nem anti-semitismo.

Quando viam Moishe desenhando, seus tios diziam que o menino herdara o talento de um ancestral, Chaim Ben-Isaac Segal, que, no século 12, pintara os afrescos dos murais da sinagoga de Mohilev, uma das mais bonitas da Ucrânia.

Marc Chagall gostava de passear de bonde, pela cidade. Certa vez, enquando o transporte descia em direção à Praça Sobornaja, o rapaz notou o letreiro que anunciava a Escola de Pintura. Depois disso, sua vocação explode dentro dele. Sem se conter mais, revela à mãe a sua angústia: "Quero ser pintor! Chega! Não quero ser contador. Sinto que minha vida vai tomar outro rumo... Não sou capaz de mais nada, além de pintar. Mãe, ajude-me, quero ser pintor! Há uma escola de arte na cidade e se eu conseguir entrar e lá estudar, serei um artista... e o homem mais feliz do mundo!"

Para ela, a idéia do filho não passava de uma grande loucura, mas aos poucos o jovem conseguiu convencê-la de seu talento e pede que deixe o professor da escola de arte, Yehuda Penne, julgar sua capacidade artística. Feiga decide ajudar o filho, apesar da forte oposição do marido, que a repreende por estar apoiando-o a encontrar sua verdadeira vocação, ao invés de tentar dissuadi-lo. Pressionado, o pai acaba dando o dinheiro para pagar as aulas e Feiga leva o jovem ao ateliê de pintura.

Era a primeira vez na vida que ela própria pisava no ateliê de um pintor. Ao observar as obras nas paredes, tem certeza que seu filho nunca conseguiria fazer nada parecido. Mas Chagall não tem dúvidas. No fundo de seu coração sabe que será um grande artista, mas pintará algo diferente daquilo, retratará o shtetl, as ruas de terra, os galos, as galinhas, as cabras e seus sonhos...

Quando Chagall se desentende com Yehuda Penne, pelo fato do mestre forçar os alunos a pintarem de uma forma muito acadêmica, é Feiga quem lhe consegue um lugar de aprendiz em um estúdio de fotografia. Mas o jovem estava determinado a ser pintor e decide ir a São Petersburgo, para lá estudar.

Em 1907, concretiza seu sonho. Os primeiros tempos na cidade grande são de extrema dificuldade. Como Chagall não possuía a autorização especial, sem a qual um judeu não podia viver na cidade fora do Território do Acordo, passa grande parte do tempo escondido.

Isto até o dia em que conhece o advogado e mecenas Goldberg, que imediatamente percebe o seu talento. Colocando-o sob sua proteção, consegue-lhe a permissão de moradia e lhe empresta uma quantia em dinheiro para que ele possa estudar na famosa Escola de Arte de Swanseva. Eram os primeiros passos para a construção de uma grande carreira.

Gradativamente, já conhecido sob o nome de Chagall, torna-se famoso e a grande São Petersburgo se torna pequena para o seu talento. É quando passa a sonhar com Paris, a Cidade-Luz.

Como toda mãe, Feiga tem dificuldade em aceitar a idéia de que seu filho queira deixar a Rússia. Como iria se sustentar? Como iria viver? Mas ele a tranqüiliza e parte de sua terra natal. Chega a Paris no fim do verão de 1910, instalando-se no bairro de Montparnasse, onde entra em contacto com a vanguarda modernista que enchia de cor, alegria e vivacidade a capital francesa. Em 1914, Chagall volta à Rússia, onde permanece por oito anos. Dois anos após sua chegada, Feiga, que nem completara 50 anos, falece em Vitebsk.

Foi um momento muito difícil na vida de Chagall, principalmente por não ter conseguido estar ao seu lado, naquela hora. Mas, em memória de sua amada mãe, ele pinta uma tela que se tornaria um ícone em seu trabalho: "Os Portões do Cemitério".

Feiga não viveu para testemunhar a glória do filho. Não pôde admirar os vitrais que ele fez para o Hospital Hadassa, em Jerusalém, nem o teto da Ópera Garnier, em Paris. Muitos anos após a morte da mãe, Chagall escreveu uma homenagem àquela que o soube ajudar e nele acreditou: "Ela tanto me amou. Onde eu estava...? Por que não cheguei a tempo? Onde estás agora, minha mãezinha...? No céu, ou na terra...? Estou aqui, longe de ti. Queria tanto estar perto de ti para poder, ao menos, visitar teu túmulo, tocar em tua lápide. Mãe, não consigo mais rezar e choro, cada vez menos, por ti. Mas meus pensamentos estão sempre contigo e me consumo em tristeza. Não te pedirei que rezes por mim. Só tu podes avaliar o quanto estou triste. Fala comigo. Mãe, no mundo vindouro, no paraíso, nas nuvens, onde quer que estejas, estás feliz. Será que minhas palavras conseguem levar-te a ternura que enche meu coração?"