A festa de Sucot, que se inicia cinco dias após Yom Kipur e que tem duração de uma semana, é imediatamente seguida por outra festa religiosa: Shemini Atseret. As palavras Shemini Atseret significam, literalmente, “o oitavo (dia) de retenção”. Os Mestres Chassídicos explicam que o principal objetivo dessa festa é “reter” as revelações e os poderes espirituais que recebemos durante as festas do mês de Tishrei – Rosh Hashaná, Yom Kipur e Sucot – para que possamos utilizá-los ao longo do ano.

Fora da Terra de Israel, Shemini Atseret é uma festa celebrada durante dois dias - 22 e 23 do mês hebraico de Tishrei1. O segundo dia de Shemini Atseret é conhecido como Simchat Torá – (a festa da) Alegria da Torá. Em Simchat Torá, concluímos e recomeçamos o ciclo anual de leitura da Torá.

Trata-se de uma festa muito alegre – uma das datas mais felizes do calendário judaico – na qual cantamos e dançamos com os Sifrei Torá – os rolos da Torá. Os Mestres Chassídicos ensinam que, em Simchat Torá, “alegramo-nos com a Torá e a Torá se alegra conosco; a Torá quer dançar, e, portanto, tornamo-nos os pés dançantes da Torá’’. Retiramos todos os rolos da Torá da Arca Sagrada e dançamos com eles ao redor da Bimá – a plataforma elevada da sinagoga onde é lida a Torá. As danças com os Sifrei Torá ao redor da Bimá são chamadas de Hakafot, que significa “andar em círculos”. Em Simchat Torá, é costume fazer sete Hakafot ao redor da Bimá. Algumas comunidades até dançam com os rolos da Torá nas ruas. Em algumas sinagogas, é costume que, nessa festa, todos os homens presentes recebam uma Aliá – isto é, sejam chamados à Torá. Nesse dia, é comum a sinagoga se encher de jovens e crianças, todos desejosos de celebrar e dançar com a Torá.

Simchat Torá é uma festa judaica singular. Não é mencionada na Torá nem no Talmud. Não é uma festa rabínica, como Purim e Chanucá, não foi instituída por autoridades religiosas e nem sequer comemora qualquer libertação ou vitória histórica do Povo Judeu. Qual é, então, a origem de Simchat Torá?

O Rabino Lord Jonathan Sacks, ZT’’L, escreveu que Simchat Torá nasceu na Babilônia, provavelmente no final do período dos Amoraim – os rabinos do Talmud, no quinto ou sexto século da Era Comum. O costume babilônico – que se tornou universal – era dividir a Torá em 54 porções semanais para serem lidas no decorrer de um ano. (Na Terra de Israel, a leitura de toda a Torá era concluída a cada três anos e meio). Na Babilônia, no segundo dia de Shemini Atseret lia-se a última porção da Torá.

Há um costume judaico muito antigo de se fazer uma celebração para comemorar um siyum (o término) de um tratado talmúdico ou de uma ordem da Mishná. Esse costume evoluiu e a tradição de celebrar um siyum passou a incluir o término da leitura dos Cinco Livros da Torá. Considerava-se uma grande honra ser chamado à Torá para a leitura da sua última porção. A celebração do término da leitura da Torá, que ocorria no segundo dia de Shemini Atseret, ficou conhecida como Simchat Torá.

Simchat Torá tornou-se uma das festas mais populares do ano judaico. Muitos judeus que vivem na Diáspora não vão à sinagoga no primeiro dia de Shemini Atseret, mas o fazem no segundo dia, em Simchat Torá. Além disso, é curioso o fato de que muitas das pessoas que dançam com grande entusiasmo em Simchat Torá nunca sequer estudaram uma palavra da Torá. Esse fenômeno evidencia o fato de que a Torá está tão gravada na alma dos judeus que, mesmo aquele que nunca a estudou, pode se alegrar muito com esse livro que D’us escreveu e deu a nosso povo. Como ensina o Zohar, a obra fundamental da Cabalá, existe um vínculo triangular metafísico que une D’us, Sua Torá e o Povo Judeu. Com efeito, todos nós, judeus, que somos a encarnação de nosso Patriarca Jacob, estamos intrinsecamente conectados à Torá e a seu Autor, o Todo Poderoso. Como está escrito: “Moshé nos deu a Torá, a herança (morashá) da congregação de Jacob” (Deuteronômio 33:4).

Não há santidade maior no mundo do que a relação entre o Todo Poderoso e o Povo Judeu, e a Torá é o fio de prata, a fonte da vida, que liga todo judeu a seu Criador. Visto que a Torá é a herança espiritual de todo judeu, sem exceção, somos todos convocados para celebrar no dia em que terminamos sua sagrada leitura. Em Simchat Torá, celebramos o fato de que a Torá é uma herança que pertence igualmente a todos os Filhos de Israel.

A alegria de Simchat Torá

Em nossas orações, referimo-nos à festa de Sucot, que precede Shemini Atseret / Simchat Torá, como Zman Simchatenu – a “época da nossa alegria”. Antes da destruição do Templo Sagrado de Jerusalém e a expulsão dos judeus da Terra de Israel, a natureza da alegria intrínseca à Sucot era evidenciada pelos dois mandamentos básicos dessa festa: habitar na Sucá e tomar2 nas mãos as Quatro Espécies (Lulav, Etrog, Hadass e Aravá). A Sucá lembrava aos judeus o quão abençoados eles eram pelo fato de viverem na Terra de Israel, pois um dos propósitos do mandamento de habitar na Sucá é lembrar como nossos ancestrais – a geração que Moshé Rabenu conduziu para fora do Egito – tiveram que viver por 40 anos no deserto – em cabanas, sem um lar ou país permanente. O outro mandamento da festa de Sucot – tomar nas mãos as QuatroEspécies – é uma demonstração da fecundidade da Terra de Israel, graças às bênçãos Divinas de chuva e prosperidade. A alegria da festa de Sucot era, portanto, a alegria de viver na Terra Prometida, sob a sombra do Todo Poderoso. Simchat Torá, por outro lado, surgiu em uma época em que os Filhos de Israel viviam exilados na Babilônia. E quando Simchat Torá se espalhou por todo o mundo judaico, os judeus haviam perdido praticamente tudo: sua Terra, a segurança de ter seu próprio país, sua liberdade e independência e o Templo Sagrado de Jerusalém – basicamente tudo o que havia sido sua fonte de alegria. Uma única frase em um dos piyutim (poemas litúrgicos) da Neilá, no final de Yom Kipur, resume a situação deles: Ein Shiur Rak HaTorah Hazot, que basicamente significa, “Nada resta, senão esta Torá”. Tudo o que havia restado era a Torá. Como poderia o Povo Judeu encontrar alegria tendo perdido tudo, exceto a Torá?

Rabi Saadia Gaon, que viveu no século 10, fez uma pergunta simples, mas fundamental, e com profundas consequências: após a expulsão da Terra de Israel, qual a causa de o Povo Judeu ainda constituir uma nação? Na Diáspora, os judeus não tinham mais nenhuma das pré-condições normais de uma nação. Já não viviam em sua pátria, dela tendo sido expulsos. Os judeus estavam espalhados por todo o mundo e, portanto, não viviam no mesmo território. Eles não faziam parte de uma única ordem econômica ou política. Eles não compartilhavam a mesma cultura nem falavam a mesma língua. No entanto, era inegável que os judeus ainda estavam vinculados por um destino e responsabilidade coletivos. Portanto, RabiSaadia Gaon concluiu: Nosso povo é uma nação apenas em virtude da Torá. De fato, ao longo dos quase dois mil anos de exílio, mais do que o Povo Judeu preservou a Torá, a Torá preservou o Povo Judeu. Como o Talmud afirma sobre a Arca Sagrada que continha as Tábuas: “Ela carregava aqueles que a carregavam” (Talmud Bavli, Sotá 35a).

A Torá é o legado do nosso passado e a promessa do nosso futuro. É, como dizemos em nossas orações diárias, “nossa vida e a extensão de nossos dias”. É nosso contrato com D’us – o registro da aliança eterna que nos une. Na Babilônia e em todo o restante da Diáspora, os judeus haviam perdido tudo, mas eles ainda tinham a Palavra de D’us e era o suficiente. Bastava para mantê-los conectados com D’us e uns com os outros, não importa o quão espalhados estivessem pelo mundo. Por milhares de anos, em Simchat Torá, sem serem comandados por nenhum versículo da Torá ou qualquer decreto rabínico, os judeus no mundo todo cantavam e dançavam com a Torá. Eles estavam determinados a não esquecer que, enquanto tivessem a Palavra de D’us, eles poderiam celebrar a vida e o fato de serem judeus.

 

Seria difícil encontrar um paralelo, em toda a história da humanidade, de um povo capaz de celebrar com tanta alegria, mesmo durante as épocas em que foram submetidos a sofrimentos indescritíveis. Elie Wiesel, sobrevivente e escriba do Holocausto, vencedor do Prêmio Nobel da Paz, escreveu: “O Gaon de Vilna disse que Ve-Samachta BeChaguecha (‘Você deve se alegrar em sua festa’; Deuteronômio 16:14) é o mandamento mais difícil de se cumprir. Eu nunca consegui entender essa observação intrigante. Foi apenas durante a guerra que eu a entendi. Aqueles judeus que, no curso de sua jornada para o fim da esperança, ainda conseguiram dançar em Simchat Torá; aqueles judeus que estudaram o Talmud de cor enquanto carregavam pedras nas costas; aqueles judeus que continuaram sussurrando as Zemirot shel Shabat (Canções de Shabat) durante a execução de trabalhos forçados... Ve-Samachta BeChaguecha era um mandamento impossível de cumprir – mas eles o cumpriram”. De fato, como escreveu o Rabino Lord Jonathan Sacks, ZT”L: “Um povo que pode andar pelo vale das sombras da morte e ainda se alegrar é um povo que não pode ser derrotado por nenhuma força ou medo”.

Maimônides (o Rambam), um dos maiores filósofos e legisladores judeus de todos os tempos, escreveu que sentir alegria ao cumprir uma mitzvá – um mandamento Divino – é tocar as alturas espirituais... e que não há grandeza ou honra maior do que comemorar diante de D’us (Leis do Shofar 8:15). Isso é o que ocorre quando cada judeu, independentemente de seu grau de conhecimento, dança com a Torá em Simchat Torá: ele toca as alturas espirituais; ele atinge a maior das grandezas, que é celebrar perante D’us.

Simchat Torá nasceu quando os judeus haviam perdido tudo, exceto a Torá e a capacidade de se alegrar com ela. No século 20, Simchat Torá passou a simbolizar a afirmação pública da identidade judaica. Os judeus da União Soviética, em particular, celebravam a festa em massa nas ruas de Moscou. Em 14 de outubro de 1973, mais de 100 mil judeus participaram de um comício pós-Simchat Torá na cidade de Nova York em prol dos refuseniks e dos judeus soviéticos.

Como escreveu o Rabino Sacks ZT”L: “O Alcorão chama os judeus de ‘o Povo do Livro’, mas isso é um eufemismo. Somos um povo apenas por causa do Livro. A Torá é nossa constituição como nação sagrada sob a soberania de D’us. É a carta de amor de D’us aos Filhos de Israel. Nós a estudamos incessantemente. Nós a lemos na sinagoga todas as semanas, completando-a ao longo de um ano. Durante os longos séculos de exílio, foi a memória de nossos ancestrais do passado e a esperança para o futuro. Em certo sentido, toda a história do Judaísmo é a história de um caso de amor entre um povo e um livro”.

Há milhares de anos, nos melhores e nos piores momentos da nossa história, na Terra de Israel ou na Diáspora, em Jerusalém ou em Auschwitz, nós, judeus, celebramos Simchat Torá perante D’us, o Autor da Torá, com alegria ilimitada. Nechemiah (Neemias) estava certo quando disse ao povo que chorava ao ouvir a Torá, percebendo o quanto se haviam distanciado dela: “Não vos aflijais, pois a alegria do Eterno é a vossa força” (Nechemiah 8:10).

Um povo cuja alegria não pode ser destruída é indestrutível. Um povo cujo destino está vinculado a um Livro eterno, escrito por um Ser Eterno, é um povo eterno.

1 Na Terra de Israel, Shemini Atseret é celebrada durante um dia apenas. Em Israel, a festa de Simchat Torá é aglutinada à Shemini Atseret e ambas são celebradas no mesmo dia: 22 de Tishrei.

2 O mandamento das Quatro Espécies é cumprido ao tomá-las nas mãos. Contudo, costumamos cumprir esse mandamento ao apontá-las e gentilmente sacudi-las em direção a cada uma das quatro direções, para cima e para baixo.

BIBLIOGRAFIA

Sacks, Rabbi Jonathan, Ceremony and Celebration, https://rabbisacks.org/wpcontent/ uploads/2020/10/CC-

Sacks, Rabbi Jonathan, The children of Israel dance for their portable homeland, https://rabbisacks.org/the-children-ofisrael-dance-for-their-portable-homeland

Shemini Atzeret/Simchat Torah Study, https://www.chabad.org/library/article_ cdo/aid/4330/jewish/Study.htm

Steinsaltz, Rabbi Adin Even-Israel, A Dear Son to Me, Maggid Books