A festa de Shavuot comemora o momento da entrega da Torá e o casamento entre o Céu e a Terra. Até a Revelação Divina no Monte Sinai, D’us era inatingível. A entrega da Torá marca o momento em que D’us se revela a todo o povo judeu, sendo esse o momento em que fomos capazes de conhecê-Lo. Com a entrega da Torá, nossa missão deixa de ser atingir o Céu, mas sim trazer o Céu para a Terra.

Na linguagem do Midrash: D’us desejou ter uma moradia neste mundo inferior. E cabe a nós transformar este nosso mundo em uma morada para Ele, pois, afinal, o objetivo maior é transformar a Terra em um paraíso.  

Até a entrega da Torá existia um decreto Divino que separava de forma irreconciliável o mundo material do mundo espiritual. O ser humano buscava D’us por vários caminhos. Alguns acreditavam que o caminho para se chegar mais perto do Altíssimo era viver de uma forma espiritual, desconectando-se das coisas materiais e levando uma vida de abstinência. Porém, por mais elevada que a pessoa fosse, havia um abismo entre D’us Infinito e o ser humano finito – e esse abismo não podia ser cruzado pelo ser humano. D’us o cruzou com a Revelação Divina no Monte Sinai.

E assim está expresso nas palavras que definem a Revelação de D’us no Monte Sinai: “E D’us desceu ao Monte Sinai”. E quando isso ocorreu, o “Céu beijou a Terra” e o decreto que separava o mundo espiritual do material foi eliminado. Pela primeira e única vez na História, D’us Se revelou publicamente – a todo o Povo Judeu.

Em Shavuot, comemoramos o recebimento pelo Povo Judeu de um código de leis morais e espirituais ditadas por D’us.

O encontro do Céu e a Terra

D’us, em sua eterna bondade, revelou no Monte Sinai como nos conectarmos a Ele. Isso é feito através das mitzvot (plural, em hebraico, de mitzvá). As mitzvot promulgadas pelo Eterno fundamentam a responsabilidade do ser humano perante outros seres humanos e Seu Criador. São leis espirituais que, uma vez trazidas à Terra, assumiram forma física e cotidiana.

O Eterno nos deu dois tipos de mitzvot: as positivas e as negativas. As mitzvot positivas são as que ditam o que devemos fazer: faça caridade, respeite pai e mãe, cumpra o Shabat etc. As mitzvot negativas ditam o que não devemos fazer: não mate, não roube, não cometa idolatria, não coma em Yom Kipur. Ao todo são 613 mitzvot: 248 positivas e 365 negativas.

A divisão das mitzvot entre positivas (faça) e negativas (não faça) nos ensina que, ao mesmo tempo em que precisamos nos preocupar em fazer o positivo, precisamos também nos proteger do negativo. No mundo em que vivemos, as forças negativas são maiores do que as positivas, e é por isso que existem mais mitzvot negativas do que positivas.

A palavra mitzvá é usualmente traduzida como mandamento, porém, em hebraico, ela advém da palavra tsavta que significa conexão ou ligação. O poder da mitzvá é justamente o de conectar o ser humano, limitado, com o Infinito; de conectar o mundo material ao espiritual, dotando o ser humano da capacidade de elevar os elementos materiais desse mundo permeando-os de espiritualidade.

Quando transgredimos alguma dessas mitzvot nosso ato causa uma desconexão de D’us. Através das mitzvot, D’us nos mostra como podemos nos conectar a Ele e como podemos perder essa conexão. De acordo com a Cabalá, nossas ações neste mundo causam transformações nas esferas mais elevadas.

A ação é o principal

No Judaísmo, ao contrário de outras crenças, a ênfase está em nossas ações e não em nossas intenções ou pensamentos. Na linguagem dos nossos Sábios: ma’assê hu’aicar. A ação é o principal. O que isso significa? Significa que ter uma boa intenção ou meditar sobre o bem de nada adianta se não praticarmos, de fato, o bem. O mundo em que vivemos é chamado de mundo da ação, onde o que tem maior valor são os nossos atos, as nossas atitudes, o nosso comportamento e a maneira pela qual vivemos.

Havia um chassid muito caridoso, seguidor do Rebe Shneur Zalman, o primeiro Rebe de Lubavitch. Ele cumpria com muito zelo a mitzvá de receber hóspedes em sua casa, em especial pessoas com menos recursos materiais. Certa vez, angustiado, ele abordou o Rebe. E o questionou se ele estaria agindo com todo o seu coração. O Rebe sorriu e lhe respondeu: “Seus hóspedes estão satisfeitos? Mesmo se você não agiu com a melhor de suas intenções, o objetivo foi alcançado. Essas pessoas estão sendo alimentadas e recebem a ajuda que, de fato, precisam para poderem crescer material e espiritualmente”.

Podemos questionar nossas intenções, porém elas não devem nos impedir de fazer o bem. É comum ouvir que o importante é ser um bom judeu no coração. O que está dentro de nós é de grande valor, mas palavras, sentimentos e filosofias não bastam. Somente ações podem transformar o mundo em que vivemos.

Realmente, uma ação completa é a que vem acompanhada de sentimento e conscientização. É quando nosso coração e mente andam juntos. De acordo com a Cabalá, nossa intenção é comparada a asas e elevam nossas ações a esferas mais elevadas.

Faremos e Ouviremos

O povo de Israel, reunido aos pés do Monte Sinai, prometeu seguir os mandamentos da Lei Divina e afirmou, em uníssono: “Naassê Venishmá”(Êxodo 24:7): “Faremos e ouviremos”.

Dissemos ao Todo Poderoso: faremos e depois buscaremos entender o que ouvimos, o que nos foi ordenado. Isso ressalta a importância de buscar entender o Judaísmo, estudar seus preceitos e não os seguir somente como um ato de fé. Uma das explicações para esse versículo é que muitas vezes o entendimento só vem depois de realizarmos uma ação. Quando fazemos algo, quando temos a experiência e depois buscamos entender o que fizemos, o entendimento é mais profundo.

Por exemplo, é difícil “compreender”, em toda a acepção do termo, sem ter passado pela emoção de ouvir a reza da Neilá, quando se aproxima o término do Yom Kipur, ou ver um filho fazer Bar-mitzvá. Não conseguimos colocar em palavras a conexão que sentimos ao colocar Tefilin ou ao acender as velas de Shabat. Certas experiências, só conseguimos verdadeiramente “entender” depois de tê-las vivido. Por isso, o Judaísmo é, acima de tudo, experienciar e vivenciar nossas tradições.

A Torá e os anjos

O Talmud diz que quando Moshe subiu ao Céu para receber a Torá de D’us, ele discutiu com os anjos. Os anjos disseram que a Torá lhes pertencia e reclamaram, pois como um ser humano, com todas as suas imperfeições, poderia tomar posse da maior riqueza Divina?

Ao que Moshe lhes respondeu: “Anjos têm má ou boa inclinação? Trabalham e precisam descansar no Shabat? Foram escravos no Egito? Têm pai e mãe para respeitar?” E assim por diante. Moshe ganhou a discussão e trouxe a Torá para a Terra.

O chassidismo nos mostra o lado místico dessa conversa entre Moshe e os anjos. Os anjos reivindicavam a Torá para os Céus e Moshe mostrou que a Torá só tem valor na Terra. A Torá foi entregue a este nosso mundo, a seres humanos, com todos seus desafios, suas falhas e suas dificuldades.

Em uma entrevista particular com o Rebe de Lubavitch, uma pessoa perguntou: “Por que D’us precisa dos seres humanos? Os anjos cumprem a sua missão de uma maneira tão perfeita. E os seres humanos, desde que estão aqui neste mundo, só causam problemas”. A que o Rebe respondeu: “Existem paisagens muito bonitas no mundo e pessoas que fotografam e pintam essas paisagens. O que tem mais valor, uma foto ou uma pintura?”

“A pintura”, respondeu a pessoa e o Rebe voltou a fazer uma pergunta: “E o que é mais perfeito, a foto ou a pintura?” O Rebe então explicou que mesmo que a foto seja mais perfeita, replicando de maneira precisa a paisagem, ela é, em grande parte, fruto de uma máquina. A pintura, por sua vez, envolve todo o esforço e dedicação de um artista. O artista coloca sua alma e seu coração naquilo que está retratando. Por isso, a pintura tem maior valor. Da mesma forma, os anjos são mais perfeitos. Mas o ser humano, com todas as suas imperfeições, se esforça e trabalha para se transformar e transformar este nosso mundo. D’us ama nossas imperfeições e conhece nossos dilemas e desafios. E tudo o que alcançamos tem grande valor para Ele.

Os três pilares do mundo

Existem três pilares sobre os quais o mundo se sustenta: 1. O estudo da Torá. 2. Avodá – as rezas1. 3. Os atos de bondade.

Esses três pilares fazem um paralelo com os três tipos de relacionamentos humanos: entre o homem e D’us, entre o homem e ele próprio e entre o homem e os outros seres humanos.

Vejamos exemplos desses três pilares.

O Estudo da Torá

A Torá foi dada para o nosso bem: proíbe tudo o que faz mal à nossa alma e pede que pratiquemos atos que fortaleçam nossa essência e nossa ligação com D’us. Ao estudarmos a Torá, vemos o mundo pela verdade Divina.

A verdade Divina e a percepção humana muitas vezes diferem. Por exemplo: existe uma lei no Shulchan Aruch, nosso código de leis, que para muitos pode soar estranha. Ilustramos essa lei através da seguinte situação. Uma pessoa está em casa, decide abrir um vinho Casher antigo e inesperadamente um amigo aparece para visitá-lo. O impulso é dizer ao amigo, “Como você veio me visitar, vou abrir esse vinho em honra de sua visita”. Isto é proibido. De acordo com a Torá, fingir que se está fazendo pelo outro aquilo que íamos fazer de qualquer maneira é como enganar e roubar. Chama-se gonev dat habriyot, roubar a consciência daquela pessoa. Sem as diretrizes da Torá, poderíamos considerar isso uma gentileza, um agrado ao amigo.

Por milênios os judeus foram chamados de preguiçosos por descansar no Shabat. Como poderiam descansar durante 1/7 de sua existência? Hoje em dia, o mundo reconhece a importância de um dia de descanso.

O correto e o não correto nem sempre seguem a lógica humana ou o tempo que que vivemos. Com o recebimento da Torá, foi-nos dado o privilégio de ver o mundo e a nós mesmos de uma forma Divina.

O estudo da Torá alimenta nossa mente e nossa alma e o conhecimento adquirido modifica nossa percepção. Quando um programa de computador processa sempre os mesmos dados, ele nos fornece sempre o mesmo resultado. Nossa mente funciona da mesma forma. Quando recebemos sempre as mesmas informações, nossa percepção do mundo permanece inalterada. Quando adquirimos conhecimento Divino, crescemos e mudamos nossa forma de ver o mundo.

Modê Ani

Um dos três pilares do mundo é a reza. Ao acordarmos pela manhã, nosso primeiro ato é recitar: Modê ani lefanêcha, Mêlech chai vecayam, shehechezarta bi nishmati bechemlá rabá emunatêcha. Sou grato a ti, Rei vivo e eterno, por teres restaurado minha alma dentro de mim com misericórdia. Tua lealdade é grande.

Começamos o dia agradecendo a D’us por ter devolvido a alma ao nosso corpo. Como está escrito no Zohar, obra fundamental da Cabalá,durante o sono a alma se separa do nosso corpo, “recarrega” suas energias nos Céus e retorna ao acordarmos.

Mas o que é essa prática tão sagrada de recitar o Modê ani? Mal abrimos os olhos, já agradecemos a D’us. Com o Modê ani aprendemos a praticar a gratidão, um sentimento importantíssimo em todos os âmbitos de nossa vida. Em hebraico, idioma sagrado, Modê significa agradecer, mas também significa reconhecer. Uma pessoa agradecida é alguém que reconhece o que os outros fazem por ela.

Todos os nossos relacionamentos – casamentos, relacionamento entre pais e filhos, entre amigos etc. – melhorariam significativamente se começássemos nosso dia agradecendo e reconhecendo o que os outros fazem por nós.

É interessante também notar que a frase faria mais sentido se ela fosse escrita de maneira diferente Ani modê - eu agradeço, mas ela é escrita da forma Modê ani – agradeço, eu. Perguntam os nossos Sábios, por que as palavras se encontram nessa ordem? A razão é para que não comecemos o dia com a palavra “eu” e sim com o ato de agradecer. “Eu” é a palavra que mais falamos durante o dia. Quando o “eu” vem antes, podemos nos tornar pessoas egoístas, só pensando em nós mesmos. O agradecer é o principal, sendo assim é importante que venha antes do “eu”.

A cada novo dia que nos é concedido, acordamos com a consciência de que existe motivo para continuarmos neste mundo, ou seja, ainda temos uma missão a cumprir. Se recebemos mais um dia não foi por acaso. A Cabalá nos explica que cada um de nós é insubstituível, cada um de nós tem sua missão específica e essa missão não pode ser cumprida por outra pessoa. Não vivemos e não permanecemos neste mundo à toa. Cabe a cada um de nós fazer a sua parte para transformar este mundo num lugar melhor, mais justo, honesto, mais Divino e espiritual. Cabe-nos, portanto, ajudar a transformar este mundo numa moradia própria para D’us, o Todo Poderoso.  

Atos de Bondade

O terceiro pilar que sustenta o mundo são os atos de bondade, guemilut chassadim. O mandamento de guemilut chassadim inclui qualquer ato de bondade que é feito a outrem. Inclui emprestar dinheiro ou objetos, ser hospitaleiro, alegrar noivas e noivos, visitar os doentes, enterrar os mortos, consolar os enlutados e promover a paz entre as pessoas. O Midrash revela que a prática de atos de bondade é a pedra fundamental, o pilar sobre o qual se ergue todo o universo.

Um de nossos grandes Sábios, Rav Israel Salanter, dizia: Não existe ato mais espiritual do que uma pessoa de carne e osso dar um pedaço de pão a outra pessoa de carne e osso. Muitos acreditam que um ato espiritual significa um ato desconectado do material, distante do mundo em que vivemos, um ato que esteja ligado a anjos e almas. Na verdade, são os atos físicos e materiais os que são os mais espirituais e que fazem a verdadeira diferença neste mundo.

Quando falamos de atos de bondade, falamos também em tzedacá, o mandamento de ajudar os carentes, muito erroneamente traduzido como caridade. Tzedacá é justiça social, a própria etimologia da palavra em hebraico significa justiça; e não há nada mais justo do que alguém contribuir para o bem-estar de outros.

Parte do mandamento de tzedacá é dar o dízimo, dar uma percentagem de seu dinheiro. O dízimo tem um poder muito grande que advém da quantidade de energia e vida que colocamos na luta por nosso sustento. Muitas pessoas “dão o sangue” para conseguir dinheiro e sustento, frequentemente colocando o dinheiro acima da própria saúde. É interessante que o Talmud use uma expressão similar para dinheiro e para a sangue. Damim, dinheiro, vem da palavra dam, sangue (sangue no plural, damim).

É interessante que a mitzvá de tzedacá esteja ligada a uma porcentagem e não a um valor fixo. Ao dar uma porcentagem que está diretamente ligada ao todo, estamos elevando o todo. Quando uma pessoa faz tzedacá, dando uma porcentagem daquele dinheiro para uma instituição ou para alguém necessitado, ela está elevando toda a energia que foi colocada naquele trabalho, tornando-o sagrado.

A lição de dar tzedacá é que não viemos para esse mundo só para receber, viemos para dar de nós mesmos. Viemos para fazer uma diferença na vida das pessoas, para doar de nosso tempo, nossa energia e uma porcentagem dos frutos do nosso trabalho.

Israel é banhado pelo Mar Morto e o Mar da Galileia. O Mar da Galileia é o maior lago de água doce do país. Vemos peixes, pássaros e crianças brincando n’água. É um lugar cheio de vida. Em contrapartida, no Mar Morto não há plantas nem peixes. Sua alta salinidade não permite a existência de vida. Curiosamente, ambos são alimentados pelo mesmo rio, o Rio Jordão. Só que no Mar da Galileia a água continuamente entra e sai, existe um constante dar e receber de água, enquanto no Mar Morto, toda água que entra é engolida. Só tem entrada e não saída, por isso é um lago morto.

Da mesma forma há dois tipos de pessoas na vida. Aquelas que dão e que recebem, essas são pessoas cheias de vida. São pessoas que entendem que não vieram a este mundo só para receber, mas também para fazer sua contribuição, para deixar sua marca e fazer uma diferença na vida das outras pessoas.

E há pessoas que só sabem receber, que têm dificuldade de abrir a mão para a próximo e não ajudam ninguém. Pessoas que infelizmente optam por engolir tudo o que recebem. Sobre elas está escrito: os perversos na vida são chamados de mortos. A sua fonte da vida perdeu o seu significado e sua razão de ser.

A lição clara para nós é que não viemos ao mundo para receber. Como apreendemos, ma’assê hu’aicar, a ação é o principal. D’us deu a cada um de nós a capacidade, a força e o poder de transformar o mundo para o bem. Em vez de nos afastarmos do mundo, devemos preenchê-lo com boas ações, seguindo as diretrizes que nos foram dadas no Monte Sinai, e unir o Céu à Terra, transformando o mundo em um verdadeiro Jardim de D’us.

Rabino Gabriel Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante.

A Tefilá, palavra hebraica que é comumente traduzida como “oração”, corresponde à Avodá, o serviço Divino.