O ano em que estamos prestes a adentrar, 5770 - alude a paz, pois forma o acróstico das palavras Hashaná Tehê Shalom Alenu - Que neste ano haja paz sobre nós.

O sonho de toda a humanidade é viver em paz: sem violência e guerras, sem conflitos e divergências; viver em um mundo onde as opiniões alheias são respeitadas, onde há espaço para que cada ser humano possa se expressar e se sentir à vontade, e onde haja convivência e harmonia com vizinhos e semelhantes.

A Era Messiânica é designada como uma época de suprema felicidade justamente por ser um período em que haverá paz entre as nações e entre todos os seres, inclusive aqueles que hoje são hostis. Assim consta no Livro do Profeta Yeshayahu: "O lobo morará com o cordeiro, o leopardo deitará com o cabrito... A vaca pastará com o urso, seus filhotes deitarão juntos; a criança de colo brincará sobre o buraco da víbora..." em harmonia perfeita e verdadeira.

A palavra Shalom é geralmente traduzida como paz. Refere-se à paz entre duas ou mais entidades, nações ou indivíduos, mas pode também se referir à paz interior de espírito de uma única pessoa. Porém, o significado da palavra Shalom é muito mais amplo e profundo, como demonstra sua própria etimologia, que advém da raiz Shin-Lamed-Mem - Shalem. A palavra Shalem significa ser completo, estar repleto ou pleno.

A raiz etimológica da palavra Shalom ensina que somente uma pessoa completa, íntegra e com boas intenções pode alcançar a verdadeira e duradoura paz. O caminho necessário para se obter a paz, que é uma ascensão espiritual, é lento, mas os benefícios alcançados são, sem dúvida, de valor imensurável.

De acordo com o Maharal de Praga - um dos maiores sábios e Cabalistas, famoso por ter criado o Golem - o significado da paz se espelha nas próprias letras da palavra Shalem . A primeira letra, Shin - - é formada por três ramificações: os extremos - direita e esquerda - e a ramificação do centro, que os une e, por assim dizer, faz reinar a paz entre os opostos. Em seguida, vem a letra Lamed - que tem a cabeça erguida para cima, simbolizando a elevação espiritual que se alcança através de Shalom. E, por último, a letra Mem - - cuja forma se assemelha a de um quadrado fechado, ensinando-nos que aquele que finalmente consegue atingir esse nível, estará protegido pelos quatro cantos, como uma muralha de uma cidade.

No plano pessoal, a paz implica um estado de espírito isento de ira e de desconfiança. Quem está em paz, em geral, está longe de todo e qualquer sentimento negativo. Mesmo quando há conflitos e divergências, o homem da paz se sente tranqüilo. Mas o oposto também é verdadeiro: mesmo quando o mundo está em paz, uma pessoa que vive ressentida, sem Shalom, sente-se vazia, quebrada por dentro, desprovida de Shalem, incompleta.

O mesmo acontece no âmbito orgânico. Quando todos os elementos do sistema humano agem em harmonia, a pessoa tem boa saúde. Porém, quando há algum desequilíbrio - temperatura alta, pouco líquido no corpo, pressão demasiadamente alta ou baixa - o organismo como um todo adoece. Para se viver uma vida saudável, é necessário que haja paz e harmonia entre todos os componentes do corpo. Este é o desejo de cada pessoa para si própria e para os outros.

A saudação judaica "Shalom Alechem" - literalmente, que a paz esteja convosco - também significa, "que tenham boa saúde".

Três níveis de Paz

O Talmud ensina que aquele que sonha com um rio, com uma chaleira ou com um pássaro, será abençoado com paz. Esses três elementos são símbolos da paz porque representam três diferentes níveis de relacionamentos humanos.

Em sua forma mais elementar, a paz significa a ausência de conflito. Esse grau de paz existe quando duas ou mais pessoas mantêm contato apenas para servir seus interesses pessoais. Apesar de se relacionarem entre si, cada um dos participantes nessa relação de paz permanece uma unidade separada e avulsa.

O símbolo para este tipo de paz é um rio. O rio é considerado um meio de comunicação e transporte entre duas ou mais cidades. Representa um estado de intercâmbio que existe entre duas ou mais entidades totalmente separadas, que se conectam apenas em função de suas vantagens mútuas.

Há, entretanto, um segundo grau de paz, simbolizado pela chaleira. Esse tipo de paz está presente quando duas ou mais pessoas se reúnem para alcançar um objetivo comum que nenhuma delas sozinha seria capaz de atingir. Por exemplo, indivíduos se associam para realizar projetos, construir arranha-céus, enquanto que as nações se unem em pactos de defesa mútua. Nesse tipo de relação de paz, se cada participante agisse sozinho, não seria capaz de realizar o objetivo desejado. As metas almejadas só podem ser alcançadas graças ao esforço e à união de todos os participantes. Esse tipo de relacionamento é comparado à chaleira, pois esta foi criada para cozinhar alimentos ao utilizar a água e o fogo, conjuntamente. A água sozinha estragaria a comida, ao passo que o fogo, por si só, a queimaria. Mas graças ao efeito mediador da chaleira, é possível preparar alimentos próprios ao consumo. A chaleira torna assim possível uma paz produtiva entre a água e o fogo.

O terceiro e mais elevado nível de paz é o simbolizado pelo pássaro. Este tem duas habilidades distintas: sobreviver na terra e, ao mesmo tempo, voar pelos céus. Estas habilidades não são aptidões independentes que coexistem, lado a lado. Pelo contrário: são aspectos de um único organismo que opera em ambos os domínios, céus e terra. A maneira pela qual o pássaro caminha sobre a terra é afetada pelo modo como voa.

Ao mesmo tempo, a maneira como voa pelos céus é afetada pelo modo como caminha na terra. O pássaro é, simultaneamente, um ser terrestre e aéreo. Essa criatura representa um tipo de paz em que duas naturezas e duas entidades se fundem em uma única. As duas partes deste tipo de paz não apenas trabalham juntas, como no segundo tipo de paz, mas fundem-se em uma só.

Os três níveis de paz são válidos na relação entre uma pessoa e seus semelhantes. Porém, o terceiro nível é o mais louvável, pois através dele as pessoas se unem, formando um vínculo emocional que transcende a própria razão.

Paz entre opostos

Assim declarou o físico judeu Albert Einstein: "A paz é a única forma de nos sentirmos realmente humanos". Em outras palavras, o ser humano tem a obrigação de dar um passo adiante em prol da paz. A verdadeira paz só é alcançada quando há humildade de ambos os lados. O humilde tem o hábito de perdoar, de abrir mão de suas exigências e de ser muito indulgente. Se toda pessoa se comportasse como tal, não há dúvida de que não haveria disputas, conflitos e desentendimentos. Cada pessoa pode valorizar sua individualidade e, ao mesmo tempo, reconhecer e respeitar a existência de seu próximo. Pois a verdadeira paz é mantida não pela força, mas pela concórdia.

Ao final da reza da Amidá, recitada três vezes por dia, consta a famosa frase: "Ossé Shalom Bimromáv, Hu Berachamav, Yaassé Shalom Alenu veal Kol Israel" - "Aquele que faz reinar a paz nas Alturas, com Sua misericórdia, concede a paz sobre nós e sobre todo o Povo de Israel". Nossos Sábios lançam a pergunta: Que tipo de conflito há nas alturas, que se faz necessário que o próprio Todo Poderoso intervenha a fim de fazer reinar a paz? E eles respondem: os Céus são formados pela água e pelo fogo.

A própria palavra em hebraico para "Céus", Shamayim, indica isso. Shamayim é uma fusão de duas outras palavras: Esh - fogo, e Mayim - água. A própria natureza desses dois elementos é contraditória: o fogo e a água não podem conviver juntos. Contudo, o Todo Poderoso decreta que haja paz entre esses dois elementos, a fim de dar existência aos Céus. Esta é a nossa intenção ao dizermos que D'us faz reinar a paz nas Alturas, e, portanto, expressemos nosso desejo que Ele faça o mesmo conosco. Deve-se lembrar, contudo, que a paz só é possível quando se abre espaço para a existência de outros. É por esse motivo que a frase Ossé Shalom Bimromáv é dita apenas no final da Amidá, depois da pessoa recuar três passos. Isto simboliza que para se alcançar a paz, é necessário que o indivíduo abdique de sua posição e regrida um pouco, dando lugar para o seu semelhante.

Freqüentemente, as discussões e os conflitos são conseqüências de diferenças de opiniões e da falta de tolerância com a visão dos nossos semelhantes. O famoso Rebe de Kotsk citava o seguinte ensinamento do Talmud - "Da mesma forma como os rostos das pessoas são diferentes, assim também são os seus pensamentos" - e comentava: Assim como aceitamos com naturalidade a diferença de traços faciais entre as pessoas, também devemos aceitar, com a mesma naturalidade, o fato de duas pessoas não concordarem com a mesma opinião.

A paz versus a verdade

Duas das mais importantes figuras na história do povo de Israel foram Aharon HaCohen e Moshé Rabenu. Estes dois irmãos, que lideraram o Povo Judeu na saída do Egito, servem de exemplo de comportamento para todas as pessoas, em todas as gerações.

A Torá conta que quando Aharon faleceu, todo o Povo de Israel - sem exceção - chorou a sua morte. Por outro lado, quando Moshé Rabenu faleceu, relata a Torá, apenas os homens choraram. Por que a Torá faz questão de frisar a diferença na reação do povo quanto ao falecimento desses dois grandes líderes?

Aaron HaCohen era muito amado por todos, homens e mulheres. O motivo disto, ensina o Talmud, é que ele costumava fazer a paz entre colegas, irmãos, vizinhos, amigos e, sobretudo, entre cônjuges. Quando via duas pessoas se desentendendo, Aharon procurava uma delas e lhe dizia: você não imagina quanto seu colega esta arrependido desta discussão que teve com você; ele espera ansiosamente uma hora propícia para se desculpar e fazer a paz. Logo em seguida, quando se encontrava com a outra pessoa envolvida no conflito, Aharon repetia as mesmas palavras. Deste modo, cada um dos lados refletia sobre o conflito e se arrependia da forma em que havia se comportado. A partir de então, na primeira oportunidade em que se viam, cada um encontrava a coragem para se aproximar, pedir desculpas e fazer as pazes. Assim, este homem virou o símbolo da paz e da concórdia dentro do povo de Israel.

Moshé Rabenu, por sua vez, foi o Mestre, o maior entre todos os profetas, o homem da justiça. Foi ele quem trouxe a Torá ao mundo e que ensinou as suas leis. Ele era, por assim dizer, o homem da verdade.

Quando se trata de respeitar a lei, nem todos ficam contentes e satisfeitos. A lei pode favorecer alguns e prejudicar outros. Seguir as regras pode não ser tão agradável e, muitas vezes, pode causar transtornos. Contudo, em nenhum momento o povo deixou de seguir os ensinamentos de Moshé, nosso Mestre . Todo o povo tinha em relação a ele um grande respeito e muita consideração, mas não se pode afirmar que ele era amado e querido por todos como era seu irmão Aharon.

Ao nos relatar como os dois líderes eram vistos aos olhos do povo de Israel, a Torá objetiva nos ensinar uma grande regra na vida. Ensina a Torá: quando, no futuro, dois líderes surgirem, cada um deles defendendo suas idéias - o primeiro em nome da verdade e o outro em nome da paz - saibam qual dos dois seguir. Não há dúvida de que a verdade, a integridade e a autenticidade são imprescindíveis no judaísmo. Porém, há algo ainda mais importante e muito mais necessário para o bem estar da vida social e religiosa: a paz. Em nome da verdade, pode-se fomentar a destruição e a devastação, que são as antíteses da paz. Mas, quando o objetivo é verdadeiramente a paz, não há lugar para atitudes e atos que levem ao sofrimento e ao aposto da vida. Bem ao contrário: através da paz é muito provável alcançar também a verdade.

Estamos adentrando o ano de 5770 - em hebraico forma o acróstico das palavras Hashaná Tehê Shalom Alenu - Que neste ano haja paz sobre nós. Este é nosso profundo desejo para toda a humanidade e, particularmente, para todo o povo de Israel.

Rabino Avraham Cohen é Rabino da Sinagoga Beit Yaacov