Rosh Hashaná é definido no Talmud como “Zê HaYom Techilat Ma’asecha, Zikaron LeYom Rishon”. A tradução literal dessas palavras é: “Este dia, que foi o início da Tua obra, é a recordação do primeiro dia”.

No entanto, de acordo com os ensinamentos da Cabalá, o significado de “Yom Techilat Ma’asecha”, “o início da Tua obra” não é simplesmente que neste dia,  há milênios, o mundo foi criado,  mas que este é o dia em que o  mundo é criado, a cada ano.  Em outras palavras, Rosh Hashaná não é o início do ano porque se  segue ao último dia do ano anterior, mas porque o ano se inicia como  um novo fenômeno, completamente à parte do ano que recém termina. Isto significa que em Rosh Hashaná, o mundo é criado de novo.

Essa concepção de Rosh Hashaná  se origina da noção cabalística de que a criação do mundo não foi um evento que ocorreu uma única vez, mas um processo constante que se repete em intervalos regulares. D’us não criou o mundo e o deixou abandonado. Muito ao contrário,  Ele está constantemente criando-o de novo.

Muitos questionam acerca da  idade do Universo – acerca de quando teria sido criado. A Torá e a Ciência estão de acordo que houve uma Criação, e que o Universo, grande como é, é finito. O que a Ciência procura responder é como foi criado e quando. Estas perguntas podem ter grande importância científica, mas não são tão relevantes para a Cabalá, porque segundo  seus ensinamentos, a Criação não  foi um evento ocorrido de uma só vez. E, assim sendo, aos olhos da Cabalá, não tem tanta importância quando o mundo foi criado pela primeira vez. O que realmente importa é saber que o mundo está sendo criado de novo em cada momento. Mas, por que toda a existência precisa ser recriada  de novo? Porque o mundo foi  criado ex-nihilo – algo que foi  criado do nada.

Para entender esse conceito, consideremos o seguinte: quando um ser humano cria algo físico, ele necessariamente trabalha com uma matéria pré-existente; isto é, usa algo que existe e o transforma em algo diferente. Por exemplo, tijolos e cimento para construir uma casa.  A casa continuará existindo quando o construtor terminar a obra, porque o material da construção – os tijolos e o cimento – existiam antes da casa existir. 

A criação ex-nihilo ocorreria se  um ser humano conseguisse construir a casa do nada.  Um exemplo de algo que um ser humano pode criar do nada é algo que ele imagina em sua mente. Suponhamos que alguém deseje construir a casa de seus sonhos.  O passo inicial para a realização desse sonho é construir a casa em sua mente. Contudo, essa casa,  que, a essa altura, existe  apenas em sua imaginação, não  pode existir se a pessoa se desvincular da imagem. Se ela parar de pensar no assunto,  a “casa” deixará de existir e se nunca mais pensar nisso, é como se nunca tivesse existido – pois não há traços dela. Diferentemente da casa construída com tijolos e cimento, a que foi construída na mente da pessoa foi criada ex-nihilo: como foi criada do nada, necessita ser constantemente recriada na mente  de quem a criou.

Antes que o Universo fosse criado, não havia nada além de D’us. Como Ele não possuía matérias primas com as quais criar o mundo, toda a Criação, tudo o que existe, foi criado ex-nihilo. Isso significa que todas as criaturas vivas, tudo o que existe, de um grão de areia à criatura mais celestial – é um produto, por assim dizer, da mente Divina. D’us pensa na Criação e esta continua a existir. Se Ele decidisse parar de pensar na Criação, tudo simplesmente cessaria de existir. Se D’us decidisse que Sua Criação não merecesse Sua atenção, o Universo reverteria ao que era antes da Criação: a total inexistência.

A Criação é, como vimos, um processo constante que se repete em intervalos regulares. Possui pontos recorrentes: há uma renovação diária com o ciclo do nascer e do pôr-do-sol, a renovação mensal com a aparição da lua nova a cada Rosh Chodesh, e a renovação anual em Rosh Hashaná. Entretanto, há uma diferença significativa entre a renovação de unidades menores de tempo e a que ocorre em Rosh Hashaná. As renovações constantes – dias, semanas e, mesmo, meses – elas se parecem com batimentos cardíacos: apesar de separados e independentes entre si, eles parecem ser contínuos, porque são a continuidade de um movimento. Em Rosh Hashaná, porém, há uma renovação em um nível mais elevado, por não ser um processo semiautomático. Apesar de não percebermos, em Rosh Hashaná, o tempo não volta a seu ponto de partida. Ele simplesmente desaparece. Esse é o significado de: “Este dia, que foi o início da Tua obra, é a recordação do primeiro dia”.

Em Rosh Hashaná, voltamos ao estágio inicial: a existência retorna ao ponto anterior à criação do mundo. Cada ano, em Rosh Hashaná, D’us toma a decisão: criar o mundo de novo, como O fez quando criou o Universo? Continuará Ele a pensar em Sua Criação e todas as suas criaturas? Ou Ele decidirá que seria melhor que tudo voltasse a ser como era antes que o Universo fosse criado? Rosh Hashaná é, portanto, não o dia em que nasce um novo ano, mas o dia em que nasce um novo mundo.

Malchuyot – O Divino  Atributo da Majestade

O mundo que é criado em  Rosh Hashaná não é continuação direta e corolário óbvio do mundo no ano que o precedeu. Antes de ser recriado em Rosh Hashaná, há um retorno ao nada, ao estado onde nada existia, a não ser o Ein Sof – o Eterno, Infinito. A partir desse estado de total inexistência, é necessário reconstruir o relacionamento entre D’us e o mundo. Em Rosh Hashaná,  temos que convencer D’us de  que Seu mundo é digno de Sua atenção – e que merece ser novamente criado.

Antes da pergunta se D’us deve ou não criar o mundo de novo, surge a questão do por que Ele o teria criado, em primeiro lugar. Grandes pensadores, filósofos e teólogos já se debateram com esta pergunta.  Por que, de fato, um Ser Infinito, criaria um mundo finito e criaturas falíveis? Uma das respostas fornecidas pela Cabalá é que o mundo foi criado devido ao atributo de Malchut – a Majestade Divina. D’us é Infinito e perfeito, mas nem mesmo Ele pode ser Rei se não tiver súditos. Uma coroa, posses ou territórios – nada disso faz de uma pessoa rei se não tiver súditos. Por sua própria natureza, a majestade depende da existência de um relacionamento e da comunicação entre o rei e aqueles que vivem em seu reino, sujeitos à sua pessoa e mando. Há uma mútua dependência entre o rei e seus súditos – e esta é tão definitiva que “não pode haver um rei sem sua nação”.

Não fosse o Divino Atributo de Majestade, não haveria relacionamento mútuo entre o homem e D’us – Ele é Infinito e nós somos finitos. Somos totalmente dependentes d’Ele, ao passo que Ele em nada depende de nós. Se o mundo revertesse a seu estado pré-gênese, D’us em nada ficaria diminuído, mas deixaria de ser Rei. Nesse sentido, existe, sim, uma dependência mútua entre D’us e Seu mundo. Comentando acerca do versículo em Isaías, que diz: “Vocês são Minhas testemunhas… e Eu sou D’us”, o Midrash revela: “Quando vocês não são Minhas testemunhas, então, Eu, de certa forma, não sou D’us”. Em outras palavras, se o povo não aceita a Majestade Divina – se as testemunhas não continuam a testemunhar que o mundo tem um Soberano – elas anulam o Rei do mundo.

Podemos entender agora por que o tema de Rosh Hashaná é a proclamação de D’us como Rei do Universo. Sem maior análise, parece haver pouca conexão entre o novo ano e o tema subjacente das orações desse dia acerca da Majestade de D’us. A razão para em Rosh Hashaná proclamarmos a Majestade Divina é porque nesse dia estamos tentando convencê-Lo a renovar a obra de Suas mãos.O fato óbvio de que não há rei sem súditos tem um corolário crucial: se os súditos não reconhecem seu rei, este se torna irrelevante como seu soberano. 
D’us criou o mundo para o propósito do Atributo de Majestade, e isso significa que se não reconhecermos e afirmarmos esse fato, Ele não terá nenhum motivo para criar o mundo de novo.

Em Rosh Hashaná, o Povo Judeu não é um mero espectador da recriação do Universo, mas um ativo participante. Nossa tarefa é estabelecer a Majestade Divina,  sendo um povo que O reconhece como Rei do Universo. Por essa razão, o principal mandamento de Rosh Hashaná é o toque do Shofar. Na pátria ancestral judaica, isso marcava a proclamação do domínio de um rei, como se lê no Livro dos Profetas, nas narrativas sobre a coroação dos Reis Salomão e Jehu, entre outros. Como Rosh Hashaná, dia da Criação, é o dia em que somos forçados a reconhecer a majestade  de D’us sobre todo o mundo, temos que ouvir o toque do Shofar, pois é o som que proclama a Sua sagrada coroação.

Muitos judeus inconscientemente sentem essa obrigação, e é por isso que tantos de nós acorremos às sinagogas em Rosh Hashaná, participamos dos serviços religiosos e fazemos questão de ouvir os toques do Shofar. O Talmud ensina que há coisas que a pessoa não percebe com nenhum de seus cinco sentidos, mas que seu Mazal – a raiz de sua alma, que vive fora de seu corpo – consegue ver. Na véspera de Rosh Hashaná, as almas subconscientemente sentem que o mundo chegou a uma encruzilhada crucial – que não é um ano que simplesmente atinge seu final, mas que o próprio mundo chega ao fim, e que cabe ao Povo Judeu assegurar-se de que seja novamente recriado.

Muitas pessoas que vão à sinagoga não entendem a gravidade desse dia, mas suas almas têm consciência de que elas, também, devem participar da proclamação de que D’us é o Rei do Universo. As almas também sentem que é sua responsabilidade participar no nascimento de um novo mundo.

Uma nova perspectiva

Em Rosh Hashaná, a missão crucial do Povo Judeu é persuadir o Santo, Bendito é Seu Nome, a criar o mundo de novo. Esse é o propósito de todas as extraordinárias orações, temas e mandamentos desse dia solene.

Muitas pessoas se perguntam por que somos julgados em Rosh Hashaná e perdoados por nossos pecados em Yom Kipur. Não faria sentido primeiro perdoar-nos e depois julgar-nos? A resposta é que apesar de serem os primeiros dois dias dos Dez Dias de Teshuvá, Rosh Hashaná não é o momento adequado para mencionar erros e transgressões. Seria contraproducente mencionar nossos erros e pecados se todo o propósito desse dia é tentar convencer D’us que o mundo é um lugar digno de Sua atenção.

Os problemas tratados em Rosh Hashaná não são o quão bem a pessoa cumpriu os mandamentos Divinos – uma avaliação de atos positivos e negativos – mas sim, sua postura diante do Rei do Universo. Em Rosh Hashaná, o homem deve considerar não os atos que cometeu no ano findo, mas seus princípios, seus valores, e como ele vê a vida e o mundo. Como em Rosh Hashaná um novo mundo é criado, este é o dia mais auspicioso para a pessoa começar de novo seu relacionamento com D’us. No entanto, uma renovação verdadeira, um novo capítulo na vida da pessoa, só pode nascer de uma reavaliação dos valores e dos padrões morais dessa pessoa. Rosh Hashaná, portanto, não é um dia para se decidir sobre as pequenas mudanças que queremos fazer no futuro ou lamentar sobre os pequenos erros passados. Pelo contrário, devemos ver tudo de uma perspectiva bem mais ampla. Em Rosh Hashaná, cada um de nós deve-se fazer as perguntas fundamentais da vida. Ninguém tem tempo de fazer sua contabilidade moral diária ou mesmo semanalmente. Mas podemos, com certeza, fazê-lo ao menos uma vez ao ano, no dia em que o mundo, e, por conseguinte, a vida de todos nós, é criada de novo.

Esta indagação, este exame de consciência pessoal, é mais bem conduzido quando a pessoa confronta a si mesma com o atributo da Majestade Divina. Em Rosh Hashaná, muitas pessoas se perguntam: “O que este ano reserva para mim?” Mas o que deveriam se perguntar, é: “Quão bom sou para a totalidade da existência?” Em outras palavras, ao invés de se preocupar tanto com o que lhe toca, e com o que o Rei fará para ele, a pessoa deveria se perguntar o que o Rei espera dele e como ele pode melhor contribuir para o reinado d’Ele.

Uma tal mudança de perspectiva é certamente mais eficaz do que simplesmente expressar remorso por erros passados e bater no peito. Assumir a responsabilidade pelo passado é realmente importante – é por isso que o fazemos no dia mais sagrado do ano, Yom Kipur – mas o mais importante mesmo é mudar o futuro. Mas a capacidade de definir metas e objetivos – verdadeiramente significativos e elevados – e de empreender mudanças genuínas na própria vida, isso depende de vermos se Rosh Hashaná é verdadeiramente Rosh, a “cabeça” do ano, ou se é uma festividade marcada apenas pelas refeições festivas e os votos de um ano bom e doce. Quando o Ano Novo Judaico é transformado em mais um dia do calendário, uma grande oportunidade é desperdiçada – a oportunidade de sermos parceiros de D’us na recriação de Seu reino. Quando Rosh Hashaná não é apreciado como deveria ser, perdemos a oportunidade de romper com o passado e iniciar algo verdadeiramente novo.

Majestade e Paternidade

Nas preces que recitamos em Rosh Hashaná e nos demais “Dias Temíveis”, que atingem seu clímax em Yom Kipur, nos referimos a D’us como Avinu Malkenu, Nosso Pai, Nosso Rei.

Cada ano, em Rosh Hashaná, somos levados perante o Rei do Universo. Enfrentar um Rei Infinito é uma experiência problemática, pois não importa quão assiduamente a pessoa tenha ido à sinagoga no ano, ou quão respeitosamente tenha cumprido os mandamentos Divinos, nunca saberá se realmente atendeu às expectativas de D’us. O desafio de enfrentar a Majestade Divina em Rosh Hashaná deve ser assustador para qualquer pessoa espiritualmente conscienciosa, independentemente de quão justa ela se considere.

No entanto, apesar de Rosh Hashaná ser o Dia do Julgamento, apesar de ser a coroação do Rei, há também um íntimo relacionamento que paira nesse dia entre D’us e nós. Ele é Malkenu, nosso Rei, mas Ele é também Avinu, nosso Pai. Há pessoas, judeus bem intencionados, que cometem o erro de se relacionar com D’us apenas como Rei e não como Pai. Para tais pessoas, D’us é um Rei severo e, portanto, o homem deve ser punido por suas imperfeições. Para outros, D’us é um Pai bondoso, e, portanto, o homem pode fazer o que quiser na vida sem ter que se preocupar com a retribuição Divina. A realidade é que nosso relacionamento com D’us não é nem do tipo senhor-servo, nem pai-filho – mas os dois aspectos estão sempre juntos. Em Rosh Hashaná, nos relacionamos com a Majestade Divina, mas somos também filhos do Rei.

Se um rei é exigente, a maioria de seus servos não atenderá às suas expectativas. Mas os filhos do rei sempre serão seus filhos. Como diz o Talmud, quando nós, judeus, não nos comportamos, somos chamados de “filhos perversos”, “filhos rebeldes”, mas, ainda assim, “filhos do D’us Vivo”. Há filhos que se portam mal e se afastam de seus pais, mas isso não muda o vínculo que existe entre ambos. De modo semelhante, é possível cometer muitas ofensas terríveis contra D’us, mesmo se distanciar d’Ele e se rebelar contra Sua Majestade e Seu reino, mas isso não muda o fato d’Ele ser nosso Pai. É precisamente por causa do vínculo pai-filho entre D’us e o homem que um novo relacionamento pode ser formado em Rosh Hashaná, e que irá influenciar o novo ano e o novo mundo que está sendo criado.

Rosh Hashaná e Teshuvá

Um dos temas que permeia o período entre Rosh Hashaná e Yom Kipur é o da Teshuvá. Essa palavra é, em geral, traduzida como remorso pelos pecados que a pessoa cometeu, mas o que realmente significa é “retorno”. A essência da Teshuvá – não no sentido de contrição pelos erros cometidos pela pessoa, mas um retorno ao caminho correto  – é um dos temas principais de Rosh Hashaná.

No mundo natural, que funciona de uma maneira causa-efeito, em que cada ação tem uma reação, as consequências de um comportamento que transgrida as leis espirituais do Universo são inevitavelmente prejudiciais. Se o mundo fosse julgado unicamente pelo atributo Divino da Justiça, já teria há muito deixado de existir. A única maneira de continuar existindo e progredindo é voltando, momentaneamente, à Fonte original que precedeu o início de tudo. Em Rosh Hashaná, a Teshuvá é feita de forma muito abrangente: há um retorno à Fonte da alma, da vida e do mundo. Nesse dia, recebemos a oportunidade de elevar-nos acima do mundo como ele é, a um lugar onde não há causa e efeito, um lugar de onde é possível criar-se um novo mundo.

Em Rosh Hashaná, coroamos D’us como nosso Rei, porque sem um rei não pode haver um reino. Mas devemos recordar que por mais intimidador que seja esse dia e  apesar da tremenda responsabilidade que o Povo Judeu leva sobre seus ombros, estamos, em última  análise, nos dirigindo a  Nosso Pai Celestial. E, assim como um rei sem súditos não é um rei, também um pai sem filhos tampouco é um pai.

Há uma história, no Talmud, que resume tudo o que nós dissemos acima. O filho de um rei tinha ido pelo mau caminho. Seu pai lhe mandou uma mensagem, rogando-lhe: “Volta, filho”. O filho, responde: “Como posso voltar? Estou envergonhado de voltar à tua presença”. Então o pai manda-lhe outra mensagem, dizendo: “Volta até onde conseguires, e eu irei encontrar-te no restante do caminho”.

Bibliografia:
Rabi Steinsaltz ,Adin (Even Israel), Change and Renewal, Maggid Books - Koren Publishers Jerusalem Ltd.
Rabi Shneur Zalman m'Liadi, Shaar HaYichud V'HaEmunah