A Meguilat Esther, um dos 24 livros da Torá Escrita, narra a história de Purim. Ouvir a leitura desta narrativa duas vezes, em hebraico, antes da quebra do Jejum de Esther e, novamente, no dia seguinte, é um dos mandamentos da festividade. É obrigatório a todos os judeus ouvir atentamente cada palavra da Meguilá, pois o texto sagrado é muito mais do que um relato de um momento decisivo em nossa história. De fato, trata-se de uma impressionante lição para cada um de nós, judeus.

Mark Twain, famoso escritor americano e admirador do povo judeu, disse certa vez que a história não se repete, mas rima. Se aplicada à história judaica, sua observação é muito verdadeira no tocante à Purim. "Quem acredita que a Meguilá apenas narra um evento passado", segundo ensinava o Baal Shem Tov, "não se desincumbiu da obrigação de ouvi-la". Pois que a história de Purim se repete, ainda que de forma ligeiramente diferente, em todas as gerações. Nestes dias em que vivemos, vemos nações e pessoas que, sem que se compreenda o motivo ou o que lucrarão, levantam-se contra o povo judeu. Por vezes, o inimigo, como o vilão do Purim original, é, ao menos, honesto a ponto de declarar abertamente a guerra. Mas por outras, age de forma insidiosa, silenciosa, mostrando um rosto amigo, ao passo que por trás ataca nosso povo em seu espírito. No entanto, por mais que assuma diferentes facetas, seu objetivo permanece inalterado: extirpar o povo judeu da face da Terra. Esta nêmesis é antiga, astuta e poderosa - mas há como vencê-la. A Meguilat Esther e as lições que nossos Sábios depreenderam desse texto sagrado nos mostram como o conseguir.

A ascensão do inimigo

A história de Purim ocorreu no período que se seguiu à destruição do primeiro Templo Sagrado de Jerusalém. Vivia o povo judeu no exílio, sob domínio persa, mas, ainda assim, detinha grande influência política. Havia representantes judeus na entourage real, na própria Corte. Ademais, uma judia, Esther, era Rainha, e seu tio, Mordechai, era consultado pelo Rei Achashverosh em busca de aconselhamento. Mas, à medida que se acostumavam os judeus à vida no exílio, mais enfraqueciam espiritualmente, distanciando-se do judaísmo. Muitos participavam dos banquetes reais, bebendo e comendo dos ricos cálices e travessas, roubados de nosso Templo Sagrado, nos quais se serviam iguarias e vinhos alheios às leis alimentares judaicas.

Na Pérsia, acreditavam os judeus que sua influência política os protegeria. E foi então que, de uma hora para outra, seu mundo virou de pernas para o ar. O rei Achashverosh nomeou um homem, de nome Haman, como primeiro ministro. Já gozando do poder do cargo, Haman arquiteta um plano diabólico contra o povo judeu: não sua expulsão, mas o genocídio. Não se daria por satisfeito com nada menos do que o assassinato coletivo dos judeus daquelas terras - fossem homens, mulheres ou crianças. É digno de nota o fato de que Haman, à semelhança da maioria dos que nutrem ódio pelos judeus, não levaria vantagem alguma nas maléficas campanhas contra o nosso povo. Bem ao contrário, esse espírito maligno estava disposto a sofrer apreciável prejuízo financeiro em sua campanha antijudaica. Oferecera 10 mil moedas de prata em troca da permissão real para aniquilar os Filhos de Israel - e a concessão lhe foi outorgada.

Haman: filho de Amalek

Quem seria esse personagem, Haman, que aparece na história de Purim como que surgido do nada? Era descendente e a personificação, exacerbada, naquela geração, de Amalek, o arquiinimigo histórico do povo judeu. Seu nome é sinônimo de escuridão e toda a sua luta foi travada contra o povo escolhido por D'us para ser "um luzeiro entre as nações". Por vezes, Amalek assume forma humana, como no caso de Haman, e, milênios mais tarde, no do líder da Alemanha nazista, Hitler. Em outras, manifesta-se espiritualmente, estimulando a assimilação entre judeus e o abandono da Torá e de suas leis. Sua forma de agir funciona não apenas contra nosso povo, como um todo, mas contra cada judeu, individualmente.

Mas, atenção: não devemos confundir Amalek com o Yetzer HaRá - o impulso pelo mal. Este se manifesta ao homem em forma de paixões e desejos inadequados. Seu intento é tentar o homem, atribuindo-lhe, para tanto, o livre arbítrio. O Yetzer HaRá é um adversário, mas também um aliado, pois em decorrência do impulso pelo mal somos recompensados por D'us pelo empenho em resistir às tentações que o Mal coloca em nossa estrada. Mas, enquanto o Yetzer HaRá é quente como a picada de uma cobra, Amalek tem o frio da picada do escorpião - ainda mais letal. O propósito de Amalek não é contestar o Povo Judeu, mas derrotá-lo gota a gota, instilando no judeu a indiferença, a dúvida e a descrença. Tenta, por todos os meios, separar o homem de D'us, em guerra declarada contra o corpo e também a alma judaica. Amalek sabe que o judeu tem entrelaçadas, de forma inseparável, a sua vida material e a espiritual.

Mediante o ataque físico aos judeus - como o fez durante o Holocausto - procura desarvorar a fé de nosso povo, destarte enfraquecendo-nos espiritualmente e nos afastando de D'us. Já quando nos ataca espiritualmente, tenta provocar a assimilação judaica, que nos leva, devagar e sempre, à paulatina redução de nosso contingente, ou seja, ao abismo sepulcral enquanto povo. O resultado final de ambas as formas de guerra é o mesmo: um número cada vez menor de judeus no mundo, grande desejo de Amalek.

Se alguém se perguntar por que os maiores vilões da história da humanidade odiaram particularmente os judeus, a resposta é: porque perceberam que a escuridão e a luz não podem viver em coexistência, lado a lado. Hitler, o Haman do século 20, arrebatou seis milhões de almas judaicas deste mundo pelo simples motivo, como ele mesmo declarou, de que "os judeus estavam no meio de seus planos". Como afirmou acerca de sua pessoa e de todos os seus seguidores, ... "somos bárbaros, de fato. Trata-se de um título que muito nos honra. Deixo a humanidade liberta dos grilhões da alma, do sofrimento humilhante causado pela falsa visão a que os homens chamam de consciência e ética. Os judeus infligiram duas mazelas na raça humana - a circuncisão em seu corpo e a consciência em sua alma. Ambas são meras invenções judias. A guerra pela dominação do mundo está sendo travada apenas entre nós dois, somente entre nossos dois lados do campo de batalha - os alemães e os judeus. Tudo o mais é ilusão e fachada".

Amalek sabe, assim como o sabemos nós, que a chamada batalha pelo "domínio mundial" não é política, sequer econômica; mas espiritual. Nesta perpétua luta, Amalek e o povo judeu estão nas extremidades opostas do espectro. Enquanto um quer dominar o mundo mediante a disseminação da escuridão - violência e maldade, racismo e injustiça - e empenha-se em convencer a humanidade de que o mundo é uma selva, e que não há um Juiz Celestial, o povo judeu, como proclamamos em nossas orações diárias, anseia pela Mão Divina a nos guiar pelo mundo, aberta e declaradamente. A missão judaica é ensinar a todos os homens que há um D'us Supremo a quem devemos responder e que a santidade, a justiça, a caridade e a bondade hão de prevalecer. Porém, se os judeus não se desincumbirem de sua missão - se não se apegarem a D'us e não disseminarem a Luz - estarão deixando um vazio que Amalek se apressará a preencher e ocupar. E quando isso acontece, sofre o mundo e sofrem todos os homens, pois Haman, a despeito da nacionalidade e do disfarce que assumir, começa primeiro pelos judeus, para então se virar contra toda a humanidade.

Conta a Meguilá que quando Haman acercou-se ao Rei Achashverosh, pedindo-lhe permissão para exterminar os judeus, disse: "Há uma nação dispersa entre as demais nações que compõem seu reino". Nossos Sábios indicam-nos que a palavra "Yeshno" - "há" (uma nação) pode também ser lida como a palavra Yashnu" - dormia (a nação); ou seja, "adormecido" estava o povo judeu. Revela, assim, a Meguilá, que Haman teve condições de atingir os judeus - para vender ao Rei seu plano de genocídio - apenas porque detectara que o povo judeu estava espiritualmente adormecido. Quando uma pessoa está nesse estado de torpor, torna-se vulnerável. Haman viu que os judeus estavam com o espírito entorpecido - distanciavam-se de D'us e abandonavam a Sua Torá, fio espiritual que nos liga diretamente ao Criador. E como a vida física judaica é inteiramente dependente de sua espiritualidade, Haman percebeu que podia avançar sobre eles.

A derrubada de Haman

Somos instruídos a ouvir com atenção a leitura da Meguilá, já que o texto partilha conosco o seu segredo: a única maneira de vencer o Haman de cada geração é despertando a espiritualidade do judaísmo que há dentro de nós e dentro de todos os integrantes de nosso povo. Foi o que fizeram os protagonistas da história. Mordechai e a Rainha Esther sabiam que a luta contra Haman era de cunho espiritual. A influência política que ambos tinham não conseguiu conter a ascensão de Haman e, por si só, de nada serviria para derrubar o genocídio já decretado. Para reverter a situação e se salvar, primeiro os judeus teriam que se aproximar de D'us. Assim sendo, Mordechai e Esther os instruíram a se redimir, arrepender-se mediante jejum de três dias e, sobretudo, a orar ao Eterno. Para tanto, reuniram-se crianças judias para o estudo público e aberto da Torá. E, somente então, após terem os judeus se fortalecido espiritualmente, Mordechai e a Rainha Esther valeram-se dos meios naturais para derrubar os planos de Haman.

A Meguilá ensina uma lição a nosso povo e a cada um de nós de per si: quando um judeu se defronta com dificuldades, é preciso que primeiro fortaleça a sua espiritualidade, buscando corrigir erros passados e orando, estudando a Torá e praticando caridade e boas ações. Uma vez assim tendo agido, poderá então confrontar-se com o mundo que nos cerca, seguro de que D'us o abençoará em sua empreitada. Mas, se agir de forma oposta - confiando no poder da influência ou na força e ignorar sua própria ligação a D'us - estará cometendo o mesmo erro que nossos irmãos da Pérsia. Em uma analogia muito terrena, é como alguém que emite um cheque sem ter cobertura bancária para o honrar. Após terem os judeus da Pérsia reparado suas falhas espirituais e se aproximado de D'us, o sucesso lhes veio com relativa facilidade.

A Rainha Esther revelou ao Rei Achashverosh sua origem judaica, intercedendo por seu povo. O Rei não podia anular um decreto seu, mas dá aos judeus o direito de autodefesa. E assim eles o fazem, e derrotam aqueles que os atacam com o objetivo de executar a Solução Final de Haman. No que respeita a este vilão do relato de Purim, o próprio Rei que o colocara no centro do poder ordena a sua execução em praça pública. Assim sendo, a história de Purim termina como começara: uma reviravolta na situação do povo judeu; dessa vez para o bem.

O despertar de todos os judeus

A Meguilat Esther é um texto sagrado e seus mínimos detalhes servem como profunda lição para todos nós, judeus. Conta-nos que Haman, que sempre buscava as falhas de nosso povo, só consegue constatar que os judeus estavam espiritualmente adormecidos. A lealdade dos judeus da Pérsia a D'us sempre permaneceu intacta, mas estava dormente. Se esta foi a maior falha que Haman conseguiu detectar, isto mais do que comprova que o estado espiritual dos judeus atingira seu ponto mais baixo. Portanto, aprendemos com a Meguilá que o nosso povo, em sua essência, é composto integralmente por homens de fé. Quando nos deparamos com algum judeu que parece estar afastado dos Mandamentos de D'us, é necessário apenas acordá-lo espiritualmente para que ele se aproxime do judaísmo.

Em nossa geração, a história de Purim se desenrola diante de nossos olhos. Amalek trava uma batalha física e espiritual contra o povo judeu. De um lado, ameaça Israel e ataca seus filhos, dentro e fora de nossa Pátria ancestral. De outro, tenta por meio da assimilação o que não conseguiu concluir durante o Holocausto. E espreita, especialmente, àqueles judeus que estão entorpecidos - muitos dos quais sequer foram expostos ao judaísmo, pelo simples fato de serem filhos de pais que tiveram sua espiritualidade traumatizada, ao sobreviver às perversidades perpetradas durante a Shoá por Amalek, há apenas uma geração passada.

Para derrubar Amalek para sempre, é preciso fortalecer espiritualmente o nosso povo. Para que isto ocorra, é necessário que cada judeu consciente se empenhe em despertar outros judeus. E isto precisa ser feito com humildade, pois, via de regra, quem é despertado se torna ainda maior do que quem o despertou. Vários são os nossos Sábios - inclusive Rabi Akiva, o maior dentre os mestres do Talmud - que eram totalmente ignorantes em Torá e, uma vez despertos, atingiram o mais alto nível de espiritualidade possível à alma humana.

A Torá é nosso vínculo com D'us. É a sabedoria e o alimento Divino para a alma humana e, se adequadamente estudada e aplicada, conduz à perfeição individual e à coletiva. Não surpreende, pois, que tantos judeus e alguns não-judeus sintam desejo de estudá-la, especialmente de desvendar seus aspectos místicos.

Acerca de nossa época, assim se expressou o profeta Amós: "Atentai, que dias virão, disse D'us. Enviarei fome à terra..Não fome pelo alimento, nem sede de água; mas fome e sede de ouvir a Palavra Divina. Errareis, de norte a sul, de leste a oeste, em busca da Palavra Divina. Mas não as haveis de encontrar".

Se há um judeu sequer que ainda não tenha encontrado a Palavra Divina, é nossa responsabilidade compartilhar aquilo que sabemos, por mais limitado que seja o nosso saber. Vivemos uma época de grandes desafios, em que a assimilação ameaça consumir grande parte de nosso povo. Assim sendo, a mais importante missão de todo judeu é a de acordar aqueles que estão espiritualmente dormentes.

Bibliografia:

Rabbi Aryeh Kaplan, Reaching Out

Awakening - Farbrengen, Purim , 1972

Likkutei Sichot, Vol. VI pp. 189-195