E formou o Eterno D’us, o homem do pó do solo, e soprou em suas narinas um sopro de vida. O homem tornou-se assim uma criatura viva”. (Gênese 2:7-8)

Foi no sexto dia da Criação, no primeiro dia do mês de Tishrei, no dia que celebramos Rosh Hashaná, que D’us criou Adão, o primeiro ser humano, a partir do "pó da terra". Adão, o centro da Criação, era um ser diferente dos até então criados. Obra das próprias Mãos Divinas, o Eterno o criara "à Sua imagem e semelhança", insuflando nele uma centelha da Essência Divina. É esta faísca Divina, a alma humana a neshamá que dá ao ser humano uma posição central em relação às esferas celestiais e terrenas e o que o torna superior a todas as outras criaturas que existem nos mundos materiais e espirituais. Foi em Adão que o material e o espiritual se uniram. Desde a criação do primeiro homem, duas forças opostas convivem nele e em seus descendentes: o material e o espiritual; o mortal e o imortal; o corpo formado pelo pó da terra e a alma, uma faísca Divina. 

É esta capacidade de conter contradições, aliada ao poder interior de sua alma, que faz do homem um ser diferente de todos os outros. Enquanto as leis da natureza, decretadas por D’us, automaticamente obrigam toda a Criação a cumprir Sua Vontade, só a Adão e a seus descendentes foi concedido o livre arbítrio. D’us deu ao homem uma dádiva inusitada: a liberdade de escolha. É esta capacidade que lhe permite subir até as maiores alturas espirituais, mas é também o que possibilita o fracasso individual e o retrocesso coletivo da humanidade.

Ensinam nossos Sábios que o propósito Divino da Criação foi o de criar um ser que, por livre e espontânea vontade, proclamasse que D’us é o Senhor do Universo. A este ser seria dada a escolha de se aproximar de D’us ao reconhecer Sua existência e obedecer Sua vontade ou de se afastar Dele. A este ser seria dada até a liberdade de negar a existência de seu Criador. A grandeza do homem não reside em sua força física muitos animais são mais fortes do que ele nem em sua percepção espiritual, que não pode ser comparada a dos anjos, mas em sua liberdade de escolha. Esta liberdade faz com que todo ato humano tenha um valor incomensurável. A harmonia do universo depende exclusivamente dele.

Apesar de ter sido o primeiro ser humano e ter vivido 930 anos, a Torá limita os relatos sobre a vida de Adão a apenas 40 versos, relatados no livro de Gênese. A Torá revela os acontecimentos de sua vida em apenas um capítulo e meio: alguns fatos, algumas de suas interações com o Criador, a criação de Eva e, finalmente, sua queda e subseqüente exílio. Ninguém jamais recebeu tanto quanto Adão e perdeu tanto e de forma tão rápida. Transcorreu apenas um dia desde sua criação, por D’us, até sua queda. No mesmo dia em que foi criado, Adão desobedeceu a Vontade Divina; no mesmo dia, foi punido. Mas D’us lhe permitiu permanecer no Jardim de Éden até o término do primeiro Shabat. Só então Adão e Eva foram expulsos. 

A história de Adão é a história da humanidade, de todos nós: sua glória, suas dádivas divinas e seu potencial imensurável. Uma única tentação à qual ele não soube resistir e sua queda que, apesar de aparentar um fracasso, foi, de fato, uma bênção oculta. Apesar de todo homem sonhar com o paraíso perdido, a história da humanidade e todo o propósito da Criação só se iniciaram, de fato, quando Adão e Eva deixaram o Jardim do Éden. 

Um ser único

Foi apenas no sexto e último dia da Criação, quando tudo já fora criado e estava em seu devido lugar, que o Todo-Poderoso criou o homem. O Midrash faz uso de uma parábola para explicar uma das razões pela qual o homem foi a última das criações Divinas. Um rei decidiu oferecer um grande banquete a um convidado de honra. Antes de trazer seu convidado para o palácio, o rei ordenou que todas as iguarias e bebidas fossem servidas e que todos os seus servos estivessem prontos para atender o convidado. Revelam nossos sábios que quando Adão foi criado, todas os outros seres haviam sido designados por D’us para servi-lo e para lhe proporcionar deleite eterno. 

Nossos Sábios revelam que Adão foi criado por D’us no Monte Moriá o lugar no qual, no futuro, seria construído o altar do Templo Sagrado de Jerusalém. D’us juntou o pó da terra, dos quatro cantos do mundo, para formar o corpo de Adão. Só mais tarde o primeiro homem foi levado por D’us ao Jardim do Éden. 

Criado como um homem já com uns 20 a 30 anos de idade, Adão tinha inúmeros talentos e virtudes. Era dotado de um altíssimo grau de sabedoria, compreensão e conhecimento. Apesar de sua alma divina estar dentro de um corpo físico, não era um homem como nós. Era um ser primariamente espiritual e mantinha uma ligação direta com D’us. Comunicava-se diretamente com o Criador, que lhe dava instruções e lhe passava ensinamentos, inclusive os segredos místicos do alfabeto hebraico e as mais profundas e ocultas revelações sobre a Criação e o universo. 

A Cabalá ensina que o homem foi criado "à imagem de D’us" pois ele é um microcosmo dos Poderes Divinos; as faculdades mentais do ser humano refletem o Intelecto que D’us utilizou para criar o mundo. É por isso que o homem pode compreender as leis e a lógica da Criação. A Adão foi dada a habilidade de pensar e expressar seus sentimentos através da palavra. O Midrash conta que o primeiro homem, utilizando-se do alfabeto hebraico, deu nomes aos animais a ele mesmo e, finalmente, ao Todo-Poderoso. Um feito que os anjos não conseguiram realizar.

Todas as criações de D’us só passaram a ter significado após Adão ter aberto seus olhos pela primeira vez. Sua mente e coração o fizeram admirar a grandeza e a beleza da Obra Divina. Ele pôde apreciar o esplendor do Sol, a imensidão do espaço, o perfume das flores. Fisicamente, Adão refletia a perfeição das obras de D’us: sua beleza era tamanha que seu calcanhar ofuscava o esplendor do Sol. Conta o Midrash que devido à sua perfeição física e espiritual, quando os anjos olharam para Adão, desejaram saudá-lo com a mesma palavra que usavam para louvar a D’us: Kadosh, o sagrado. 

Quando foi criado, Adão não carregava dúvidas nem conflitos em sua mente e coração. Adão percebia a Presença reconfortante de D’us em todo lugar. Aos olhos de Adão, o mundo inteiro era o Reino do Criador, tudo era dotado de perfeição, beleza e conforto. O Midrash nos revela que sua primeira ação foi abençoar a D’us. Na língua hebraica, vários termos são utilizados para denominar um homem: ish, guéver, adam. Ensinam nossos sábios que o termo adam é superior a todos, indicando uma pessoa completa cuja vida reflete sua Essência Divina. 

Jardim do Éden

A Torá relata que Eva foi criada a partir de uma costela de Adão. Ensina o Midrash que D’us não encontrou em toda a sua Criação uma companheira ideal para o primeiro homem. Portanto, fez com que Adão adormecesse e criou a primeira mulher a partir de seu corpo. Isso explica o amor e a paixão entre o homem e a mulher: quando foram criados, constituíam um corpo só. Desde então, nascendo em corpos separados, homem e mulher buscam a reunificação física e espiritual com sua outra parte. 

Foi muito curta a permanência de Adão e Eva no Jardim do Éden. A tarefa de ambos era a de cultivar e desfrutar do Jardim. Havia uma única restrição que D’us impusera a Adão: "Poderás comer livremente de todas as árvores do jardim, mas da Árvore da Sabedoria do Bem e do Mal não comerás, pois no dia em que dela comeres, com certeza morrerás".

Era aparentemente um mandamento simples uma única demonstração de obediência. No Jardim de Éden, uma transgressão não poderia resultar de um mero erro ou descuido. D’us se comunicava diretamente com Adão e Eva. Era uma relação íntima e aberta através da qual Ele lhes comunicava as diretrizes para que vivessem conforme Sua Vontade. A opção que tinham era abster-se de comer o fruto da árvore e viver para sempre no Paraíso; ou comê-lo e serem banidos para o mundo da mortalidade. 

Mas no Jardim havia uma Serpente o mais astuto dos animais que, segundo o Midrash, falava com o homem e andava sobre duas pernas. Alguns comentaristas da Torá explicam que a Serpente era uma encarnação do próprio Satã o Anjo do Mal, da tentação, da morte. Seu objetivo era fazer Adão e Eva desobedecerem à ordem Divina, comendo da Árvore, para que o mal e a morte pudessem atuar no mundo. 

Conta a Torá que a Serpente se aproxima de Eva e passa a manipular seus pensamentos e sentimentos. Utiliza-se de trama e intriga para que Eva passe a duvidar dos verdadeiros intuitos de D’us ao proibir o consumo do fruto da Árvore. Um Midrash relata que a Serpente pega e come um pedaço da fruta da Árvore, sorri e diz à mulher: "Comi da fruta e D’us não me fulminou com a morte! Com certeza, tu também não morrerás". A Serpente insiste, tentando seduzir Eva a cometer o pecado, e diz: "No dia em que comeres o fruto desta árvore, teus olhos se abrirão. Serás como D’us".
O Anjo do Mal, incorporado na Serpente, apela para a vaidade e a curiosidade de Eva algo que continua fazendo até hoje com os seres humanos. Consegue que a mulher ceda à tentação, mediante sua astúcia. Eva come do fruto proibido, oferecendo-o também a seu companheiro. Apenas três horas antes do shabat começar, Adão e sua mulher comeram da Árvore proibida, transgredindo assim a única proibição Divina. 

Qual era o fruto proibido da Árvore? Certamente não era uma maçã! Nossos Sábios oferecem várias opiniões. De acordo com alguns, foi a uva. É por isso que fazemos o Kidush a santificação do Shabat e das festas judaicas com o vinho, tentando assim, elevar espiritualmente o fruto que teria resultado na queda do primeiro homem. De acordo com outros, o fruto proibido foi o trigo e é por isso que também santificamos o Shabat e as festas com o pão a chalá. Outros comentaristas opinam que o fruto foi o etrog, a única fruta que tem o mesmo sabor que sua árvore. Outros dizem que foi o figo. Após comerem o fruto da Árvore, Adão e Eva se conscientizam que estão nus: a vergonha veio ao mundo através do pecado. Eles produzem roupas a partir das folhas da figueira. Alguns sábios explicam que essas roupas foram feitas com as folhas da Árvore do fruto proibido, no caso, então, o figo.

Após o pecado, Adão e Eva tentam esconder-se de D’us. O Criador Infinito e Onipotente vai até eles e pergunta onde estão. Um grande sábio explicou que esse verso da Torá, como todos os outros, se aplica a qualquer judeu. A Torá é eterna e universal. Portanto, quando D’us pergunta a Adão "Onde estás?" (Gênese), Ele está fazendo a mesma pergunta a cada um de nós: "Como está tua vida espiritual? O que tens feito com os dias e oportunidades de vida que te concedi?"

Adão mais uma vez falha. Era só confessar sua culpa, arrepender-se e pedir perdão que D’us, em Sua Misericórdia e Bondade Infinita, o teria perdoado. Mas ele responde que foi "a mulher que me destes que me fez pecar". Em outras palavras, Adão sugere que a culpa pelo pecado era de D’us, por ter criado Eva. A mulher a maior dádiva do Criador ao homem passa a ser motivo de queixa e culpa por suas falhas. Mas apesar dessa justificação, Adão estava consciente de seu erro. Ele sente que não é mais o mesmo. Antes de desobedecer a ordem Divina, Adão conhecia a Verdade, estava acima das paixões terrestres e dos impulsos que não tinham o poder de perturbar a clareza de sua mente. O Zohar afirma que existia até então um equilíbrio perfeito entre as forças do bem e do mal. Ao transgredir, Adão fez as forças do mal se levantarem e destruiu esse equilíbrio.

Após terem comido o fruto proibido, Adão e Eva são punidos e expulsos do Jardim do Éden. D´us permitiu que ambos permanecessem no Jardim até o término do primeiro Shabat. Ao término do dia sagrado, o primeiro homem e mulher emergem para um novo mundo: uma esfera de existência onde, devido à sua transgressão, o bem e o mal estão entrelaçados. E assim começa a história da humanidade. 

Apesar de terem sido expulsos do Paraíso, a memória da utopia que durou dois dias nunca foi apagada da consciência dos descendentes de Adão e Eva. O propósito da humanidade e do povo judeu, em especial é elevar o mundo para que volte a ser o Éden que era antes da transgressão de Adão e Eva. O dia do Shabat, a maior dádiva de D’us aos judeus, é uma amostra do que era o Jardim do Éden e do que o mundo, um dia, ainda voltará a ser.

Além do Éden

A história de Adão e Eva é intrigante e sempre provocou várias perguntas. D’us criou dois seres humanos perfeitos, de espiritualidade ímpar, que mantinham uma ligação direta e constante com Ele. A Adão e Eva foi imposta apenas uma proibição: não comer do fruto proibido da Árvore. Mas poucas horas após terem sido criados, o primeiro homem e mulher sucumbiram à tentação. O que teria provocado isto?

Muitas são as explicações dadas por nossos Sábios. Alguns afirmam que o pecado foi fruto de um momento de loucura, que tomou conta deles. Mas, conscientes ou não, Adão e Eva transgrediram a única proibição Divina que lhes fora imposta e introduziram o mal e a morte no mundo. 

Os livros místicos revelam que a proibição não duraria mais de um dia: após o primeiro Shabat, D’us permitiria que Adão e Eva comessem da Árvore proibida. Se eles tivessem obedecido a D’us por mais algumas horas, teriam alcançado a perfeição e a grandeza eterna. O poder de suas almas teria prevalecido sobre suas limitações físicas. A alma Divina e o corpo terrestre teriam permanecido em equilíbrio perpétuo. Porém, tendo falhado, essa missão foi passada para seus descendentes.

O Midrash conta que após o término do Shabat, Adão deixou o Jardim do Éden cabisbaixo, envergonhado de seu pecado. De repente, virou-se para os Céus e exclamou: "Isto foi tudo uma armadilha. Prova disso é que Tua Torá, que foi escrita antes da Criação do mundo, fala da morte de homens. D’us, Todo-Poderoso, já tinha planejado que a morte viria ao mundo eu fui apenas o escolhido para que isso ocorresse". D’us permaneceu em silêncio diante do choro de Adão.

Um grande sábio da nossa geração explicou o silêncio do Criador. D’us olhou na alma do homem e viu que ela é extraordinária. No plano do universo, Adão e Eva tinham que ser expulsos do Jardim do Éden para que o ser humano, diante do mal introduzido pelo pecado, pudesse escolher o bem e, assim, elevar sua alma e o mundo. A lição vale para todos os descendentes do primeiro homem: quanto maior a queda no trampolim da vida, maior é a conseqüente subida. Ensinam nossos sábios: todo homem que erra e se arrepende pode alcançar as maiores alturas espirituais. Até além do Jardim do Éden.

Bibliografia:
• Munk, Rabbi Elie, The Call of the Torah, An Anthology of Interpretations on the Five Books of Moses, Bereishis, ArtScroll Mesorah Series 
• Chasidah, Yishai, The Encyclopedia of Biblical Personalities, Shaar Press
• The ArtScroll Mesorah Series, Rosh Hashana, its significance, laws and prayers, Mesorah Publications Ltd.
• The Torah Anthology, Genesis 1, MeAm Loez by Rabbi Yaacov Culi (1689-1732) traduzido pelo Rabino Aryeh Kaplan.