“E tomou Míriam, a profetisa, irmã de Aarão, um tamborim na sua mão e saíram todas as mulheres atrás dela, com tamborins e dançando; e respondeu-lhes Míriam:Cantemos ao Eterno porque gloriosamente Se enaltece, o cavalo e seu cavaleiro que Ele lançou ao mar” (Êxodo, 15:20).

A milagrosa travessia do Mar Vermelho é um momento de exultação para todo o povo de Israel. Assim relata a Torá:

“Naquele dia, D’us salvou os filhos de Israel dos egípcios. Israel viu Seu grande poder; reconheceu e acreditou n’Ele e em Moisés, seu fiel servo” (Êxodo 15, 1-18) Segundo o Midrash Meckhilta, neste momento, todos os hebreus atingiram um grau de profecia maior do que o do profeta Ezequiel.

Para Míriam é uma hora de profunda exaltação e de agradecimento. Sua profecia finalmente se realizara: Moisés libertara os hebreus da escravidão do Egito. Em todos aqueles anos ela se sentira responsável tanto pelo bem-estar do irmão como por ter sido ela o arauto da redenção. Ainda criança havia profetizado que sua mãe teria um filho que libertaria os hebreus do Egito. Mesmo nas horas mais difíceis, Míriam nunca havia perdido a esperança da redenção iminente do seu povo.

Após terem sido salvos, às margens do Mar Vermelho, Moisés lidera os homens de Israel em um cântico de louvor a D’us. Assim que as últimas palavras desaparecem na distância, Míriam, com um tamborim nas mãos, entoa também o hino de louvor: “Cantemos ao Senhor, pois Ele é gloriosamente enaltecido...”. E uma multidão de donzelas e mulheres hebréias a segue cantando e dançando. É justamente durante este ator de louvor a D’us liderado por Míriam que a Torá se refere a ela como a ha-Naviá - a profetisa. É a primeira vez que a Torá concede o título de profetisa a uma mulher. Apesar de Sara, matriarca do povo judeu e esposa de Avraham ter sido uma profetisa, a Torá nunca se refere a ela como tal.

Míriam é, sem dúvida, uma das figuras centrais na saga do nascimento da nação judaica. O Talmud a coloca ao lado de Moisés e Aarão. Em um outro livro da Torá, o profeta Miquéias diz: “Pois Te fiz sair da terra do Egito e Te redimi da casa da escravidão; enviei diante de ti Moisés, Aarão e Míriam “ (Miquéias, 6:4). Esses três filhos de Amram, neto de Levi, eram diferentes em caráter e personalidade e, portanto, marcaram de formas únicas a história do povo judeu.

Moisés, o maior dentre os profetas, levou a Palavra Divina a Israel. Foi sob sua liderança que os hebreus se libertaram da escravidão física e espiritual. Foi por seu intermédio que D’us outorgou a Torá. Dizem os sábios que, por causa dos méritos de Moisés, durante os 40 anos no deserto, os judeus se alimentaram do maná que caía dos céus.

Aarão também foi um profeta e um líder. Junto com seu irmão Moisés enfrentou o faraó do Egito e liderou o povo de Israel na sua jornada à Terra Prometida. Amante da paz, tornou-se o primeiro Cohen Gadol. Por seu mérito, as Nuvens de Glória protegeram Israel durante os 40 anos no deserto.

E Míriam, o que fez? O que D’us concedeu aos hebreus por seus méritos? O profeta Miquéias afirma que “Míriam ensinou às mulheres“ (Miquéias 6:4). Corajosa, persuasiva e bondosa, foi a líder das mulheres judias que tiveram um papel fundamental em manter a sobrevivência do povo de Israel no Egito. Pois nos ensinam os sábios: “Foi por mérito das mulheres que nossos pais foram redimidos do Egito“ (Sotá 11B). Foram elas que com coragem, sabedoria e fé em D’us ajudaram a manter alta a moral de seus maridos, mesmo nos momentos mais difíceis.

Afinal, foram as mulheres que solaparam os planos do faraó de destruir os hebreus. A compaixão e o temor a D’us das parteiras, a vigilância de uma irmã em momentos de extremo perigo e a ternura da filha do faraó permitiram que o povo de Israel sobrevivesse. Segundo Rashi, Míriam tem um papel essencial pois foi uma das parteiras que desafiou o faraó e foi também a irmã que, vigilante e atenta, assegurou a sobrevivência física e espiritual não só de Moisés, mas de todo o seu povo.

Vagar no deserto sem água é uma provação terrível e foi por seu mérito que Be’er Miriam, a Fonte de Míriam, uma milagrosa fonte da qual fluía água em abundância, acompanhou o povo hebreu em sua longa caminhada pelo deserto.

Na Torá, Míriam é muitas vezes associada à água, como por exemplo, no rio Nilo quando está olhando o pequeno Moisés; ou quando entoa o hino de louvor após a travessia do Mar Vermelho. Mesmo seu nome nos sugere esta associação com o mariam, em hebraico.

A parteira

Míriam era a filha mais velha de Amram, neto de Levi, e de Iocheved, também da tribo de Levi. Segundo os sábios, ela recebeu o nome Míriam (Mar em hebraico significa amargo) por ter nascido no início do período mais penoso da escravidão no Egito: “Os egípcios amargaram a vida dos filhos de Israel” (Êxodo, 1:14). Mas foi também o início do processo de redenção que ela mesmo anunciou. Ainda criança, já dotada de dons proféticos, dissera: “Minha mãe terá um filho que será o libertador de Israel” (Sotá,12B). Disse também que na hora de seu nascimento a criança preencheria a casa de luz.

Rashi cita o Midrash ao afirmar que as duas parteiras Shifrá e Puá convocadas à presença do faraó e que receberam a ordem de matar os meninos judeus poucos instantes antes do nascimento, são Iocheved, esposa de Amram, e sua filha Míriam, que com apenas cinco anos ajudava a mãe em seu trabalho.
Disse o faraó às parteiras: “Se for filho, matá-lo-ei; e se for filha, viverá” (Êxodo 1,16). Conta o Midrash que ao ouvir esta ordem Míriam se revolta e diz: “Que rei mais malvado! Pobre de ti quando D’us for te punir”. Só a insistência de Iocheved em afirmar que Míriam era apenas uma criança que salvara sua vida da fúria do rei do Egito. Mas a Torá nos relata que por “temer a D’us“ as parteiras não só desobedecem as ordens do faraó como passam a acudir os recém-nascidos, alimentando e escondendo-os.

Quando a Torá se refere a uma pessoa usando um determinado nome é porque este representa sua essência interior. Segundo nossos sábios, Iocheved é chamada de Shifrá (da raiz hebraica L’shahper, que significa tornar melhor) porque cuidava e embelezava todo recém-nascido. Míriam é chamada de Puá porque, para facilitar o parto, acalmava suavemente as mães e as crianças murmurando em seus ouvidos sons reconfortantes. (Êxodo 1,15 e 21). Para não chamar a atenção dos vizinhos egípcios, assim colocando as crianças em perigo ela fazia com que nascessem da forma mais silenciosa possível. Para Iocheved e Míriam, ajudar física e emocionalmente as crianças era parte integral de sua natureza.

Ao identificar Puá como Míriam, o Midrash a torna uma figura ainda maior, pois tanto ela como Iocheved passam a ter o mérito de ter salvo Israel da extinção. E como recompensa por sua coragem e compaixão, D’us decreta que de Iocheved iriam descender os Cohanim e os Levitas; de Miriam, a realeza de Israel. Diferentemente de outras personagens bíblicas femininas, a Torá não menciona o fato de Míriam ser esposa e mãe. Mas o Midrash nos dá sua genealogia: se casa com Caleb, da tribo de Judá, e tem Hur como filho. Bezalel, o gênio criador, o arquiteto que construiu o Mishkan, Santuário Portátil, e o rei David foram seus descendentes.

Míriam, Ha-navia

Quando o faraó decreta que todo menino hebreu recém-nascido devia ser jogado no rio Nilo, o povo de Israel enfrenta momentos de profundo desespero. Amram, líder de sua geração, divorcia-se de sua esposa Iocheved para não ter mais filhos. Seu ato é seguido por todos.

Mais uma vez Míriam intervém, dizendo: “Pai, seu decreto é mais severo do que o do faraó! Ele só decretou contra os meninos, seu decreto estende-se a todas as crianças, meninos e meninas”. E então ela o avisa: “Minha mãe procriará um filho que libertará Israel do Egito” (Mechiltá, Ex. 15:20).

Apesar do perigo envolvido, as palavras da filha convencem Amram a se casar novamente com Iocheved e mais uma vez seu exemplo é seguido por todos os hebreus. Iocheved engravida e da à luz um menino que, ao nascer, enche a casa de luz, justo como Míriam havia dito. Mas, após três meses, ao saber que os egípcios estavam procurando a criança, os pais, desesperados, colocam o filho em uma cestinha de junco no Nilo e perguntam: “Onde está agora sua profecia, minha filha? “.

Mas Míriam não perde as esperanças. Vigia, entre os arbustos, até vê-lo a salvo. Parecia obedecer a uma voz interna que lhe dizia que a criança não morreria. Míriam espera pacientemente, pois sentia-se responsável não somente como uma irmã, mas também por ter anunciado a sua vinda.

“E ficou de longe sua irmã para ver o que acontecera“ (Êxodo 2:5). Viu quando a filha do faraó, Baysa, retirou Moisés das águas. Ao perceber que esta estava tentando encontrar uma ama de leite para amamentá-lo, Míriam intervém rapidamente, perguntando: “Queres que eu vá chamar para ti uma mulher, ama hebréia, e que amamente o menino para ti?” (Êxodo 2:7-9). E a filha do faraó concordou. Míriam, então, chamou sua mãe Iocheved, que amamentou e cuidou do pequeno Moisés transmitindo-lhe os ensinamentos sobre um Único D’us, que havia jurado aos seus patriarcas libertar os hebreus do Egito e levá-los à Terra Prometida.

A relação entre profecia e destino é muito complexa. A profecia revela o “resultado final”, mas não explica os passos que devem ser tomados para fazer com que este resultado se realize. Se nada for feito, a profecia será adiada até o momento em que as ações necessárias para a sua concretização sejam realizadas.

No caso da profecia de Míriam, mesmo depois que Amram e Iocheved voltaram a se casar e do nascimento de Moisés, a vida do futuro libertador de Israel ainda estava em sério perigo.

Somente quando ela e seu povo são libertados do Egito é que Míriam então, com 86 anos, viu sua profecia se realizar. Após a milagrosa travessia, ela exulta em um canto de gratidão, um hino de louvor a D’us e naquele momento é chamada de profetisa.

A Torá não registra qualquer outra profecia de Míriam. Apenas em uma passagem ates-ta que D’us se comunicou tanto com Míriam como com Aarão: “Porventura somente com Moisés falou o Eterno? Certamente também conosco falou!“. (Números 12,2).

Esperando Miriam

Míriam, assim como qualquer ser humano, não era perfeita. Ousada nas palavras e nos atos é humana tanto em suas virtudes como em suas fraquezas. Míriam amava o irmão. Além de ter dons proféticos, era uma mulher bondosa, generosa, devotada a seus irmãos e a seu povo.E ela via Moisés muito só, isolado de seu povo. Ao saber que havia se separado fisicamente de sua esposa, Miriam procura Aarão preocupada. Diz-lhe que os patriarcas e outros profetas não se separavam das mulheres, por que então o faria Moisés?

Apesar de suas palavras não conterem malícia, mas apenas preocupação, o próprio Eterno repreende Aarão e Míriam duramente, afirmando que o nível de profecia de Moisés era diferente de todos os outros que o antecederam. Depois de receber a Torá no Monte Sinai, Moisés não poderia voltar a viver uma existência física e material.

Ramban observa que Míriam só murmurou discretamente para seu outro irmão e mesmo assim foi severamente punida por ter falado de Moisés: “E a nuvem retirou-se de sobre a tenda, e eis que Míriam estava leprosa, branca como a neve; e olhou Aarão a Míriam, e eis que estava leprosa” (Números 12,10).

Apesar de estar passando um dos momentos mais difíceis de sua vida, Moisés intercede pela irmã e pede a D’us que a cure. D’us concorda e ordena que Míriam permaneça sete dias fora do acampamento, isolada, mas afirma que Ele mesmo vai cuidar dela ”D’us a puniu, Ele a fez adoecer e Ele a sarou”.

“E Míriam foi deixada fora do acampamento, durante sete dias e o povo não partiu até ela ser recolhida” (Números 12:15). O povo, em lealdade profunda por sua líder, esperou por ela, assim como ela havia esperado na margem do rio Nilo para ver o que iria acontecer com o pequeno Moises.

No quadragésimo ano da saída, no mês de Nissan, no deserto em Cadesh, Míriam estava com 125 anos: “... e morreu ali Míriam, e foi sepultada ali” (Números 20,1). Uma morte sem dor concedida por D´us pelos seus grandes méritos. Logo após sua morte a Torá diz:

“... e a congregação já não tinha mais água” (Números 20:2). A fonte milagrosa que providenciara água sem interrupção durante 40 anos desaparece após sua morte. Os hebreus, sedentos, voltam a se queixar.

Rashi analisa o impacto da morte de Míriam sobre o irmão para tentar explicar os eventos que levam Moisés a não obedecer as Ordens Divinas. Segundo Rashi, a conexão entre Moisés e a irmã era muito forte, pois ela havia moldado sua vida. Ela sempre estivera a seu ao lado - vigiando-o enquanto criança e exultando e cantando com ele após a travessia do Mar Vermelho.

Mesmo nas horas mais difíceis, Míriam nunca perdeu as esperanças de que um dia Moisés libertaria Israel da escravidão. Foi ela quem tornou a redenção possível por nunca ter desistido de sua visão. Quando Míriam morre, Moisés sente-se perdido, exausto, incapaz de suportar pacientemente as queixas e lamú- rias de seu povo e não consegue controlar sua ira. E, então, comete o erro que faz com que não lhe seja permitido entrar na Terra de Israel.

Bibliografia:
Munk, Rabbi Elie, The Call of the Torah
Weissman, Rabbi Moshe,
The Midrash Says