Quase não se ouve falar sobre deles. Não ocupam muito espaço nas manchetes de jornais nacionais e internacionais, nem nos fóruns de debates sobre direitos de minorias perseguidas ao longo da história.

São os judeus refugiados de países árabes, obrigados a abandonar sua terra natal principalmente após a criação do Estado de Israel, em 1948, pressionados apenas por um fato: o de terem nascido judeus.

Perseguidos pelos governos que se opuseram ao surgimento do Estado Judeu no Oriente Médio, viram seus direitos - que já não eram tantos em países como Líbia, Síria, Iraque e Iêmen, em particular - serem gradativamente cassados e seus bens, confiscados, além de sofrerem sistemáticas humilhações e, muitas vezes, também serem presos e ameaçados de morte.

Dos cerca de 850 mil judeus que viviam no mundo árabe, há atualmente apenas cerca de oito mil. Desse total, dois terços foram para Israel e seus descendentes formam aproximadamente 50% da população israelense judaica. O restante buscou abrigo nos Estados Unidos, Canadá, México, França e América do Sul. As maiores comunidades judaicas atualmente estão no Marrocos e na Síria. Enquanto a primeira está gradativamente diminuindo, a segunda permanece estável em função da política adotada pelo governo de Damasco, que não permite a emigração dos judeus. Para visitar parentes no exterior, os membros da comunidade devem oferecer garantias financeiras e deixar familiares próximos como reféns, como prova de que retornarão ao país.

O tema dos refugiados judeus obrigados a abandonar seus países de origem está na pauta de discussão do mundo judaico nas últimas quatro décadas. Em 1975 foi criada a Organização Mundial dos Judeus dos Países Árabes (World Organization of Jews from Arab World - Wojac) Desde então, o seu objetivo vem sendo o reconhecimento dos seus direitos e a busca de uma solução justa para esta população. A Wojac é, em essência, a contra-partida ao reconhecimento mundial do chamado status dos refugiados palestinos. Em 1967, uma resolução das Nações Unidas determinou o reconhecimento dos direitos legais de todas as populações deslocadas.

A batalha das entidades judaicas neste sentido, no entanto, tem sido dura - das 681 resoluções aprovadas pelas Nações Unidas em relação ao Oriente Médico, 101 referem-se aos direitos palestinos e nenhuma faz sequer menção aos refugiados judeus. Para Stanley Urman, diretor executivo da entidade Justiça para Judeus dos Países Árabes (Justice for Jews from Arab Coutries -JJAC), a ONU deve deixar bem claro que quando se fala em refugiados deve-se reconhecer que no Oriente Médio há duas populações, que ambos os assuntos devem ser abordados da mesma maneira".

Para isso, o Congresso Mundial Judaico (World Jewish Congress-WJC), a JJAC e outras instituições estão trabalhando em contato direto com o governo de Israel, levando o tema não apenas ao fórum da ONU, mas também às lideranças políticas nos Estados Unidos, no Canadá e na Inglaterra. Os resultados começam a aparecer, ainda que de maneira escassa. Nos EUA, por exemplo, o democrata Frank Pallone Jr. promoveu um debate em um sub-comitê do Congresso, afirmando que a questão dos refugiados judeus do mundo árabe está-se tornando, cada vez mais, uma prioridade para a comunidade judaica norte-americana e também para Israel. Assim, ele vai apresentar uma resolução abordando a necessidade de incluir o tema em todas as negociações e acordos de paz no Oriente Médio.

O destino dos judeus dos países árabes ganhou destaque também através de dois filmes de Carole Basri, uma professora da Faculdade de Direito da Universidade da Pensilvânia. Bisneta do rabino-chefe de Bagdá, além das películas The Life of Frank Iny e Searching for Bagdhad, ela publicou um artigo na Fordham International Law Journal sobre a história dos judeus no mundo árabe. Basri costuma afirmar: "Minha família estava no Oriente Médio há aproximadamente três mil anos. Quantas pessoas são capazes de traçar suas origens em um passado tão distante?"

A professora da Universidade da Pensilvânia é apenas mais uma entre os milhares de descendentes dos refugiados judeus de países muçulmanos que ainda buscam o reconhecimento de seus direitos. Segundo dados do Wojac, as perdas materiais dos judeus nas décadas de 1940 e 1950 nessa região chegam a mais de US$ 10 bilhões. A JJAC também fez um estudo semelhante, envolvendo cerca de dez países, e obteve números aproximados. As lembranças daqueles que foram obrigados a deixar seus lares estão recheadas de sensações como medo, insegurança e incertezas. Se a partir de 1945 a sua vida já não era muito fácil, a situação tornou-se ainda mais complicada após 1948, piorando sensivelmente após a descoberta do fato de que seus vizinhos e, muitas vezes até aqueles considerados próximos, desejavam a sua morte.

Joseph Abdel-Wahed, por exemplo, que vivia no Cairo (Egito), não consegue esquecer o dia em que o seu melhor amigo de escola lhe disse com um sorriso no rosto: "Um dia nós cortaremos a garganta de todos os judeus". Abdel-Wahed vive há mais de 40 anos em São Francisco. Sobre os anos passados no Egito, ele conta: "Se você faz parte de uma minoria que vive em um país muçulmano e deseja sobreviver, deve ser sempre subserviente. E mesmo assim, jamais deixará de ser considerado um cidadão de segunda classe. No Egito, mesmo que enfrentando dificuldades, podíamos nos considerar afortunados, pois a situação era muito mais delicada no Iêmen, na Síria, na Líbia e no Iraque". Segundo ele, foi somente a partir de 1945, quando o Egito se uniu aos demais países árabes na perseguição aos judeus, que os problemas começaram de fato. A população judaica perdeu a cidadania, muitos de seus membros foram presos ou demitidos de seus empregos. A joalheria de sua família, por exemplo, foi confiscada em 1952 e havia até uma recompensa para quem prendesse o seu pai. Diante destas circunstâncias, a família fugiu para a França.

Nascida na Líbia, Gina Malaka Waldman relembra com terror a fuga de sua família do país, quando o motorista do ônibus que os levava ao aeroporto tentou incendiar o veículo deixando-os presos. "Ele pretendia nos queimar vivos". Ela falou deste triste episódio de sua vida durante uma palestra na Universidade Brandeis, em Boston, para uma platéia de estudantes. Compartilhando lembranças de sua infância, Gina falou também sobre seus jamais esquecidos vizinhos judeus, que foram levados e assassinados por milícias quando acreditavam estar sendo encaminhados para campos de refugiados. A comunidade contava então com 33 mil membros. Não há mais nenhum. Ela é atualmente presidente da Jimena, uma das inúmeras organizações que reúne os judeus oriundos do mundo árabe.

À medida que o tema ganha espaço, surgem novos projetos que têm como objetivo garantir não apenas o reconhecimento dos direitos desses refugiados, mas também obter indenizações. O Ministério de Justiça de Israel, por exemplo, está organizando um banco de dados em parceria com outras entidades. Inicialmente estão sendo recolhidas informações sobre aqueles que foram para Israel e, no futuro, incluirá os que se abrigaram em outros países. A Federação Mundial Sefaradita (World Sephardic Federation), por exemplo, já entrou com uma ação contra a Liga Árabe pedindo indenização por perda de propriedades. O Congresso Mundial Judaico, por sua vez, deu início a um trabalho de recolhimento de depoimentos de refugiados.A JJCA foi fundada em 2002 e atua sob os auspícios da Conferência dos Presidentes das Principais Organizações Judaicas Americanas, do Comitê Judaico Americano, do Congresso Judaico Americano, da Liga Anti-Difamação (Anti-Defamation League), da Federação Sefaradita Americana e da Wojac, além das Comunidades Judaicas Americanas Unificadas e da Organização Hadassah.

Ainda que vivendo e perfeitamente adaptados em vários países, os refugiados lembram com carinho de sua terra natal. Reading Dallal, que viu seu tio ser enforcado em Bagdá, afirma que, apesar de tudo, gostaria de levar sua família para conhecer os lugares nos quais passou a sua infância. Radicado nos EUA, diz: "Eu sou capaz de traçar as raízes da minha família até oito gerações que me antecederam e, cada vez que sou chamado à Torá, procuro ter certeza de que pronunciei todos os oito nomes. É a maneira que encontrei para lembrar a mim mesmo, a meus filhos e netos a longa tradição à qual pertencem".

Segundo os estudos, cerca de 90% dos judeus do mundo viveram até a Idade Média no que é atualmente chamado de "terras árabes", tendo chegado à Europa a partir dos séculos XIV e XV. Para Yitzhak Santis, diretor de Assuntos para o Oriente Médio do Conselho de Relações da Comunidade Judaica em São Francisco, não se pode esquecer que não apenas a rainha Esther e Maimônides são judeus de origem oriental, mas o Talmud ainda usado na atualidade foi escrito na Babilônia. Assim, esquecidos durante décadas, os judeus refugiados dos países árabes começam a tornar-se um assunto cada vez mais debatido com tendência a ser incluído na discussão geral sobre a paz no Oriente Médio.

Bibliografia:

The Other Refugees, artigo publicado por Deborah Fineblum Raub, em novembro de 2003 na Current Issue, volume 85, número 3

The Other Refugees: Jews of the Arab World, artigo publicado por George E.Gruen no site do Jerusalem Center for Public Affairs

 

CENTRO MORASHÁ DA MEMÓRIA

 

Várias comunidades sefaraditas do Brasil são atualmente compostas por judeus que foram obrigados a fugir de países como Síria, Iraque e Egito. Alguns foram obrigados a deixar o mundo árabe por volta de 1948, outros saíram nos anos 50, 60 e 70.

 

As histórias que contam são parecidas. A vida agradável que haviam levado por gerações no meio da população muçulmana havia chegado ao fim. Sinagogas e escolas foram incendiadas, o medo se instalara entre as comunidades judaicas. Na memória de muitos permaneceu o eco de gritos dos árabes que à saída das mesquitas manifestavam-se agressivamente contra os judeus.

 

Eles tiveram que fugir de seus países de origem, repentina e disfarçadamente, sem levar nada que pudesse trair suas intenções de partir para sempre. Ao fugir de Alepo, Damasco e Cairo tiveram que deixar suas propriedades e negócios para trás e recomeçar suas vidas do zero. Poucos tinham algum dinheiro ou bens fora do mundo árabe. Seus passaportes foram cancelados e se tornaram apátridas.

 

Um grande número de judeus saiu de Alepo em 1948, após graves distúrbios na cidade. Algumas famílias foram de trem, outras de carro, pois por algum tempo motoristas cristãos ainda aceitavam levar judeus para a fronteira com o Líbano. Algumas mulheres fugiram usando trajes muçulmanos e cobrindo o rosto.

 

Os homens que trabalhavam com importação alegavam ter negócios para fechar em outro país. Muitos nem chegaram a trancar suas portas, simplesmente saíram para nunca mais voltar. Houve casos de judeus presos na fronteira, mas graças à influência ou a uma boa soma de dinheiro, foram libertados e puderam, então, viajar. Houve alguns episódios de verdadeira coragem e determinação.

 

Os que não saíram da Síria em 1948 viram suas casas e negócios ser confiscados. A família Tache, de Damasco, é um exemplo: após o confisco sumário de todos seus bens foi obrigada a viver em um quarto de sua antiga casa enquanto árabes ocupavam os outros. Só em 1970, aos 75 anos de idade, a senhora Tache deixou Damasco para sempre. Um dia um jovem apareceu trazendo a seguinte mensagem de sua família que vivia em Beirute: "Deixe Damasco". Sem titubear e nem olhar para trás, ela se vestiu como se fosse uma muçulmana e saiu para sempre da Síria, onde passara grande parte de sua vida.

 

Todos estes judeus deixaram para trás algo de suas vidas: seus negócios, seus bens, suas casas, assim como seus objetos pessoais. Poucos conseguiram levar consigo fotos ou lembranças. Tinham medo de demonstrar aos vizinhos suas intenções de nunca mais voltar. Há quase um ano o Centro de Memória Morashá iniciou um projeto para recolher e preservar essas lembranças e depoimentos, assim como fotos e objetos. Em junho próximo uma exposição mostrará parte da história desses judeus.