Ele telefona diariamente para sua mãe. Aos 58 anos, consulta ainda o rabino que fez o seu bar-mitzvá. E quando participa de votações no Senado norte-americano aos sábados, conta com um privilégio especial: é o único que pode votar erguendo o braço, em vez de fazê-lo eletronicamente. Assim, ele respeita regras do Shabat.


Essas características embebidas por alto teor de judaísmo formam um dos mais destacados personagens da política norte-americana nesta virada de século: o senador Joseph Lieberman, companheiro de chapa do candidato presidencial Al Gore. Ao tornar-se o primeiro judeu a compor uma dobradinha para a Casa Branca, Lieberman atingiu objetivos que transcendem as fronteiras do universo político e partidário. Conseguiu, por exemplo, destruir um mito que rondava a vida judaica há muito tempo, ao mostrar como se compatibiliza, com surpreendente naturalidade, a vida de um religioso ortodoxo com as exigências e necessidades de uma sociedade moderna.

O companheiro de chapa do protestante Al Gore jogou um balde de água fria na argumentação de que a dedicação à vida religiosa judaica inviabilizaria uma participação maior e mais ativa no universo da Diáspora, onde, obviamente, o cotidiano não se organiza para acompanhar preceitos do judaísmo.

Esse descompasso nunca barrou Lieberman, um judeu que reza diariamente, em sua carreira política. Em 1988, na sua primeira sexta-feira no Senado, o representante do Estado de Connecticut já enfrentava uma sessão que adentrava a noite e, a fim de não ter de pegar um carro para voltar para casa e violar uma das tradições do Shabat, Lieberman colocou uma cama dobrável em seu gabinete. O senador Al Gore, quando soube dos planos de seu colega judeu, convidou-o para dormir no apartamento de seus pais, que ficava perto do Senado.

Joseph Lieberman aceitou o convite. E quando chegou ao apartamento da família Gore, notou que as luzes do banheiro já estavam acesas e as do quarto, apagadas. O hóspede não precisaria quebrar suas tradições de Shabat.
O rabino Barry Freundel, da congregação freqüentada por Lieberman em Washington, aconselhou o senador a não evitar as votações que ocorressem aos sábados, apoiado na tradição judaica do "pikuach nefesh", ou seja, colocar como prioritário a necessidade de salvar vidas humanas. Lieberman declarou que seu trabalho no Shabat se justifica na medida em que "promove o respeito e a proteção da vida humana e do bem-estar".

Tais declarações e explicações evidenciam, além da compatibilidade entre religião e ativismo na chamada sociedade civil, outro aspecto importante do fenômeno Lieberman: ele ajuda a desmistificar o judaísmo, em especial na sua versão ortodoxa ou mais conservadora. A vida do companheiro de chapa de Al Gore é esquadrinhada pela imprensa, vira tema de reportagens e assunto para debates na TV. Ajuda, assim, a mostrar a milhões de norte-americanos - e, porque não dizer, leva a diversos cantos do planeta como o Brasil - uma imagem de judeus praticantes livre de estigmas e estereótipos.

E, last but not least, vale a pena ressaltar o raciocínio que levou Al Gore a oferecer um lugar na chapa a Lieberman. O senador de Connecticut, apesar de democrata, não economizou críticas a Bill Clinton por seu envolvimento no escândalo sexual com Mônica Lewinsky. Mais: foi o primeiro líder do partido a criticar publicamente o presidente norte-americano por sua aventura com a ex-estagiária da Casa Branca. Esse comportamento reforçou em Lieberman sua imagem de uma reserva moral no Senado dos Estados Unidos, e Gore trouxe-o a sua chapa, entre outros motivos, na tentativa de anular ataques republicanos à conduta de Bill Clinton.

É profundamente inspirador ver um integrante da comunidade judaica norte-americana entrar nas arenas mais exclusivas da política dos EUA para funcionar como um bombeiro treinado para apagar incêndios utilizando seu prestígio moral. Dessa forma, Joe Lieberman apenas reforça o peso milenar da ética judaica.

O jornalista Jaime Spitzcovsky é diretor do site www.primapagina.com.br e articulista da Folha de S. Paulo. Foi editor internacional e correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.