Em uma operação clandestina que durou cinco anos, cinquenta e quatro rolos de Torá do Iraque para Israel, sendo salvos da destruição. Oficiais de exército, ministros de governo, homens comuns e de diferentes nacionalidades, rabinos, especialistas em pergaminhos, contrabando, disfarces e, principalmente, muito segredo.

Estes são, com certeza, componentes que qualquer escritor criativo transformaria em enredo de uma boa história de ficção. Mas, desta vez, juntos compuseram a trajetória de uma trama verídica que começou no Iraque e terminou em Israel, com a chegada de 54 rolos de Torá resgatados sob o regime de Saddam Hussein com a participação de um comerciante jordaniano, dois rabinos israelenses e outros personagens.

Mantida durante cinco anos em segredo, a epopéia dos Sifrei Torá iraquianos tornou-se pública em meados de 2002, quando a pressão da imprensa israelense levou o governo a quebrar o sigilo e expor os pontos principais da operação secreta, encabeçada pelos rabinos Itzhak Steiner e seu cunhado, Itzhak Goldstein. Mais tarde os dois deram detalhes da missão, que foi mantida em segredo justamente para que não fosse prejudicada e nem colocasse em risco a vida dos envolvidos.

Os dois rabinos são dirigentes de uma organização, em Jerusalém, chamada Ot (em hebraico, “letra”) que tem como objetivo resgatar e restaurar rolos de Torá de comunidades judaicas extintas ou em fase de desaparecimento. Durante os governos comunistas, a Ot conseguiu resgatar centenas de pergaminhos da Europa Oriental, principalmente da Checoslováquia e da Hungria, levando-os a Israel. Os que podem ser restaurados são posteriormente distribuídos pelas sinagogas de Israel; os demais são enterrados, de acordo com as tradições judaicas.

Segundo as palavras do rabino Steiner, tudo começou com um telefonema recebido de Hebron e com uma pergunta de seu interlocutor: “Quer comprar rolos de Torá? Meu parente, um jordaniano, tem um para vender”. “Como costumamos receber inúmeros telefonemas como este, justamente em função do trabalho que fazemos, não o levamos muito a sério e dissemos que, se realmente o pergaminho existia, gostaríamos de vê-lo”, conta o religioso.

Alguns dias depois, um homem contrabandeou dois rolos da Jordânia. Imediatamente os dois rabinos confirmaram a autenticidade do valioso pergaminho iraquiano, escrito sobre pele de veado e não de carneiro, como geralmente ocorre. Steiner explicou que os judeus iraquianos criavam veados e após abater os animais, seguindo as leis da Halachá, comiam sua carne e usavam a pele para fazer os pergaminhos. Sem demonstrar sua excitação e contentamento, os dois resolveram ir à Jordânia em busca de outros rolos. Assim, em 1995, Steiner e Goldstein foram a uma modesta casa em Amã, onde morava um indivíduo que eles passaram a identificar apenas como Abed. Ele não lia hebraico, mas era perito em relação à mercadoria que desejava vender. Sabia onde faltava uma linha ou uma página. E dizia que seu objetivo não era apenas comercial, pois acreditava que se os rabinos um dia encontrassem uma cópia antiga do Alcorão também a devolveriam a um muçulmano.

Abed então lhes contou que a história dos pergaminhos começara em 1991, durante a Guerra do Golfo. Os judeus fugiram abandonando tudo nas sinagogas e Saddam Hussein resolveu recolher os rolos, ameaçando destruí-los. Para comprovar sua teoria, Abed mostrou aos rabinos a foto de uma sala, em um subúrbio de Bagdá, com dezenas de rolos, dizendo que um oficial das forças armadas iraquianas logo percebeu que poderia ganhar muito dinheiro com essa coleção de objetos religiosos e forjou uma assinatura, determinando a transferência dos pergaminhos para outro local.

Teria sido através deste contato que Abed envolvera-se no caso, chegando então aos rabinos Steiner e Goldstein. Foi o início de uma longa batalha até se chegar a um acordo comercialmente aceito por ambos os lados. Inicialmente Abed pediu US$ 1 milhão por cada rolo, mas após muita negociação concordou em vender os seis rolos, por US$ 15 mil cada um. E este acabou sendo o preço estipulado para os outros rolos. Os dois rabinos receberam, em sigilo, do Ministério de Assuntos Religiosos e de alguns doadores, o apoio financeiro necessário para concluir a transação.

Segundo os especialistas, estes pergaminhos têm um valor inestimável, pois não se fazem mais rolos assim. Uma Torá nova custa cerca de US$ 30 mil; uma antiga, bem conservada, custa US$ 100 mil. Abed levou os primeiros seis rolos através da Ponte Allenby e quando questionado pelos guardas de fronteira, afirmou que estava importando couro para sapatos. Ele conseguiu fazer a primeira entrega na Ot, recebeu o seu dinheiro e voltou para casa, em Amã.

Uma descoberta tão importante como esta não poderia passar desapercebida das autoridades e, em pouco tempo, um representante do Gabinete do Primeiro-Ministro de Israel ofereceu ajuda para o resgate do restante dos pergaminhos iraquianos, desde que a operação fosse mantida em sigilo absoluto. Apesar do perigo, era importante para Israel resgatar os rolos da Torá. 

Para dar continuidade à missão, Steiner e Goldstein foram à Jordânia para determinar como continuar com o projeto. O esquema elaborado exigiu a contratação de mais pessoas, incluindo um indivíduo do Iraque que arrendava caminhões, com pneus enormes. Tais pneus tiveram um papel preponderante para o êxito da operação, pois foram nestes que os pergaminhos foram escondidos depois de serem enrolados em plástico. Os pneus eram esvaziados, o material escondido, e novamente preparados para seguir viagem, sem chamar a atenção de ninguém.

Foi em um hotel de Amã, no qual um dia funcionara a Embaixada de Israel, que Steiner e Goldstein efetuaram o minucioso trabalho de examinar cada parte dos pergaminhos para comprovar sua autenticidade, antes de efetuar a compra. Marcações e códigos foram utilizados para separar os que estavam perfeitos, os que poderiam ser restaurados e os que deveriam ser enterrados. Apesar de inicialmente estarem dispostos a apenas comprar os que poderiam ser restaurados, os dois religiosos acabaram levando todos, mas pagaram apenas pelos que seriam novamente usados.

Para proteger a missão, Steiner e Goldstein foram obrigados a recorrer a vários disfarces, envolvendo inclusive os seus familiares nas constantes viagens à Jordânia. Uma vez viajaram como turistas curdos, por causa de suas barbas. Outra vez Steiner levou seu filho, fazendo-se passar por um empresário. Também não foram poucas as vezes nas quais levou a esposa Riki, pois, como afirmou, “todos sabem que mulheres costumam carregar muitas malas quando viajam e assim ninguém estranharia o tamanho da nossa bagagem, no meio da qual estavam os pergaminhos”.

As viagens foram consideradas pela esposa de Riki como experiências marcantes, pela maneira hospitaleira como foram recebidos por Abed e sua família e também por serem na Jordânia. Ela disse que, para ela, era muito difícil acreditar que estava na Jordânia, pois cresceu em Abu Tor, região fronteiriça da Jordânia com Israel, e se acostumou a ver os soldados do outro lado da cerca e a considerá-los inimigos. E, agora, ela estava na Jordânia sendo recebida em um lar jordaniano!

A missão de resgate dos 54 rolos da Torá do Iraque recebeu também a bênção do Grão-Rabino sefaradita Mordechai Eliyahu, de descendência iraquiana, que se mostrou entusiasmado com o que eles estavam fazendo pois era uma grande mitzvá salvar rolos da Torá. Segundo o Grão-Rabino, suas ações correspondiam à mitzvá de salvar os cativos, os prisioneiros, pois podia-se dizer que os pergaminhos estavam presos no Iraque.

No total, foram feitas cerca de sete viagens à Jordânia. Não se pode dizer, no entanto, que esta tenha sido uma operação tranqüila, pois quando começaram a circular os primeiros boatos sobre o caso, um membro do governo de Israel – cujo nome foi mantido em sigilo pelos rabinos – resolveu transformar a missão em um evento da mídia. Entrou em contato direto com Abed, combinou uma entrega de pergaminhos na Ponte Allenby e, no dia marcado, levou a imprensa e a televisão ao local. Ao saber do fato, o rabino Steiner, temeroso das conseqüências tanto para Abed como para o projeto, tentou convencer, sem sucesso, o representante do governo e a televisão a não irem adiante com o plano.

No dia marcado, estavam na Ponte Allenby, à espera de Abed: o membro do governo, seu staff, e as câmaras de televisão, mas o jordaniano não apareceu. O evento acabou sendo um grande fiasco. Abed não aparecera para o encontro porque havia sido preso e acabara numa prisão israelense. Só após fazer contato com o rabino, foi libertado graças à intervenção direta de Steiner.
A missão foi, então, retomada e o último dos 54 rolos chegou a Israel, há dois anos. Steiner e Goldstein dizem que teriam mantido o segredo para sempre, pois acreditavam que ainda havia pergaminhos no Iraque.

A operação chegou ao fim quando Abed foi preso, há cerca de dois anos, no Iraque. Ultraconfiante de seu esquema, começou a desrespeitar normas de segurança básica e a fazer as viagens para Bagdá em seu próprio carro. Já não alugava caminhões nem usava pneus grandes para esconder sua mercadoria, guardando-a em suas botas sem sequer envolver os pergaminhos em plástico. Ao ser preso, foi acusado de contrabando, as autoridades iraquianas confiscaram quatro rolos de Torá que estavam com ele e ameaçaram enforcá-lo como colaborador do Mossad.

O Rabino Steiner contou que perdeu o contato com Abed, sendo informado apenas que ele desaparecera. Surgiram histórias posteriormente de que ele teria pago US$ 100 mil para sair da prisão, sendo expulso do Iraque para sempre. Certo dia, Steiner recebeu um telefonema de Abed que, dizendo estar em Bethlehem, prometeu-lhe mais rolos. Apesar de se terem encontrado e conversado bastante, nada de concreto ficou definido. Steiner acredita que Saddam Hussein mandou destruir o que havia restado das Torot, pois do contrário, Abed teria encontrado uma maneira para contrabandeá-las para o exterior.

Todos os pergaminhos resgatados foram examinados e recuperados, sendo distribuídos a sinagogas. Todos, exceto um, que ficou com o rabino Steiner. Recentemente, durante uma viagem aos Estados Unidos para examinar uma Torá, encontrou um pergaminho de pele de veado com uma de suas anotações. Provavelmente, este rolo que fazia parte do primeiro lote de rolos resgatados foi comprado por algum colecionador que o vendeu e, de alguma forma, chegou até a América do Norte.

Quando perguntados sobre seus sentimentos sobre este episódio, os dois rabinos falam de sua satisfação por saber que fizeram o melhor que podiam para salvar os pergaminhos, impedindo que fossem destruídos. Espalhados pelas sinagogas de Israel, são lidos pelos fiéis nos dias da semana e nas comemorações festivas.


Baseado em artigo publicado no
Jerusalém Post, 29 de maio de 2002