Entre as pessoas com as quais comentei que iria passar uma semana na Polônia, recebi a resposta quase unânime:

A História do judaísmo polonês tem início no século XIV com o rei Kazimiersz, o grande. Durante séculos, os judeus viveram em harmonia, fincando raízes e preservando suas tradições. Mas, seis anos de guerra e quase tudo foi destruído. Hoje, mais de meio século depois do final da II Guerra Mundial e com a abertura do Leste europeu, pode-se redescobrir aquela que foi a maior comunidade judaica da Europa.

Sempre que perguntava a meu pai sobre a Polônia, a resposta era a mesma: "Não quero falar sobre este assunto". Já meu avô materno dizia: "Um dia conto". E nunca contou. Anos depois descobri que ele tinha perdido uma irmã durante o Holocausto. Ela ficara na Europa, pois os pais não permitiram que ela viajasse sozinha para o Brasil. Ela não conseguiu se salvar, transformando-se em mais uma das vítimas do nazismo.

O primeiro contato que tive com a Polônia fora do ambiente familiar, aconteceu no início dos anos 70. Fiquei muito satisfeito ao saber que iriam passar um filme no auditório do Colégio Renascença seguido de uma palestra. Aquele não foi um dia qualquer, marcou a minha vida e de todos os amigos de minha classe. O filme era sobre as atrocidades em Auschwitz e a palestra foi proferida por um sobrevivente dos campos de concentração. Ele iria lançar um livro de testemunho sobre os fatos que presenciara e aos quais conseguira sobreviver. Seu nome é Ben Abraham. Acredito que, naquele dia, parte de minha fé e espiritualidade se perdeu.

Quando participei da reunião de preparação para a viagem à Polônia, com mais vinte brasileiros, perguntaram-me qual era meu objetivo. Respondi que, talvez na Polônia, eu pudesse resgatar a espiritualidade e a fé que ficaram perdidas há tantos anos naquele auditório do Renascença.

Chegamos a Varsóvia e fomos direto para o cemitério judeu. Uma maneira bem triste de começar uma viagem. Conforme andávamos pelas alamedas e passávamos pelos túmulos, a cada parada, Rachel Orenstajn do Yad Vashem, nos conta a vida de cada uma daquelas pessoas que ali fora enterrada. I. L. Peretz, Bialik, uma grande atriz de teatro, o inventor do esperanto, um grande rabino, nomes bem familiares, que com certeza, estão gravados nas matzeivot em São Paulo. A visita foi terminando e descobrimos o quão rica e viva fora a comunidade judaica de Varsóvia.

Todos os participantes da Marcha da Vida - cerca de sete mil pessoas - encontraram-se em Auschwitz para uma caminhada de quatro quilômetros em direção ao campo de Birkenau, onde aconteceria a cerimônia principal, com a presença do presidente de Israel, Ezer Weizman.

Os discursos seguem o cerimonial. Primeiro falou o presidente polônes, depois o israelense e, por fim, o representante do comitê organizador da Marcha da Vida Mundial. No palanque, muitas pessoas e um rosto familiar de um homem religioso.

Ele é o ultimo a se pronunciar. Conta que é um sobrevivente de Buchenwald e, emocionado, narra as palavras de seu irmão: "Você agora não tem mais pai, nem mãe. Daqui a pouco, você não vai ter seu irmão mais velho, que esta partindo neste trem. Se um dia, por milagre, você sobreviver a esta tragédia, saiba que você só tem Eretz Israel."

E continua: "Sabem, concordo com estes revisionistas - Irwing e seus colegas. O Holocausto não matou seis milhões de judeus. Acredito que o Holocausto matou seis milhões de judeus fisicamente, mas matou também outros milhares espiritualmente".

Naquele momento eu ainda não tinha a resposta para a pergunta que me fora feita na reunião antes da viagem, mas sim uma pista, e não era uma pista qualquer. Quem estava dando o depoimento era o rabino-chefe ashquenazita de Israel, Meir Lau.

No decorrer da viagem fui descobrindo que a resposta não estava nos campos de concentração e de extermínio que visitamos exaustiva e penosamente, mas fora deles. A resposta não estava nos livros e reportagens sobre o Holocausto, que me causavam tanto medo e descrença.

Na manhã seguinte fomos em direção a Tchikotin, um pequeno lugarejo. Descemos do ônibus e pensei que tínhamos sido transportados para o set de filmagem de "O Violinista no Telhado", o clássico literário de Scholem Aleichem, um verdadeiro shtetel. Penetramos por ruas estreitas e logo avistamos uma pequena casa que descobrimos ser aquela na qual vivia o melamed. Esta casa ficava bem próxima da do Rabino, que morava na sinagoga. Logo em seguida encontramos outra sinagoga, a chamada Alta Sinagoga, que era realmente grande proporcionalmente ao tamanho das demais construções da cidade. Ao entrar, descobrimos que por dentro era mais alta ainda, pois seu piso era bem rebaixado.

Partimos em direção a Cracóvia, localizada a cerca de sete horas de viagem de ônibus de Varsóvia. No meio do caminho, iríamos fazer uma parada em uma cidade muito importante para o judaísmo polonês: Lublin.

Estacionamos em frente a um edifício bem grande, talvez do tamanho do Teatro Municipal de São Paulo, que possuía um amplo jardim. Na fachada, os dizeres Collegium Maius que é, atualmente, uma escola de enfermagem. Mas nem sempre foi assim. Entramos, subimos pelas escadarias e encontramos alguns funcionários. Mas está tudo meio vazio.

Continuando a visita, entramos em uma sala enorme que talvez comportasse cerca de trezentos alunos. Estamos na sala principal do que foi um dia a Ieshivá de Lublin, fundada pelo rabino Meir Shapira, em 1930, e fechada prematuramente nove anos depois. Olhamos em volta e quase pudemos ouvir as vozes dos bachurei ieshivá nos seus pilpulim.

Nossa última parada, a grande cidade de Cracóvia, foi poupada pelos bombardeios. Suas construções estão intactas. É uma cidade medieval. O antigo bairro judeu pode ser visitado e lá encontramos restaurantes casher, com direito a musica klemerz.

As sinagogas, que durante o regime socialista se transformaram em armazéns ou estábulos, estão, pouco a pouco, sendo compradas e restauradas por judeus originários da cidade, especialmente pela conhecida família Lauder, dos Estados Unidos.

Passamos por uma pequena sinagoga que foi tombada na sua parte externa e, internamente, serve como residência. Enquanto estamos olhando, curiosamente sai na janela uma freira que nos cumprimenta de forma simpática.

Olhando para trás, percebo que apesar de termos visitado lugares que nem todos suportariam conhecer, esta viagem fez com meu medo se dissipasse. E que minha fé perdida nas cadeiras do auditório há trinta anos poderá ser encontrada no casa do melamed em Tchikotin ou nos bancos da Ieshivá de Lublin. Lembrar nossa tragédia na Polônia é, sem dúvida, essencial. Conhecer melhor a riqueza do judaísmo polonês e preservar sua memória é uma questão de sobrevivência.

Joel Rechtman

Marchando pela Vida é um programa realizado pela Federação Israelita do Estado de São Paulo em parceria com o CEPI.