O presidente francês, François Hollande, inicia seu governo cercado por desafios históricos nas frentes econômica, política e social, e envolto por uma dúvida que persegue parcela significativa da maior comunidade judaica da Europa: irão os grupos anti-Israel e antissemitas, alojados na esquerda, se beneficiar da mudança no Palácio do Eliseu?

O sucessor de Nicolas Sarkozy se apressou a emitir sinais de que não tolerará o antissemitismo e que não promoverá mudanças significativas na diplomacia francesa para o Oriente Médio.

A comunidade judaica francesa, com cerca de 600 mil pessoas, enfrentou em março o trauma do ataque à escola Ozer Hatorah, em Toulouse, quando um terrorista francês, de origem argelina, assassinou a tiros o rabino Jonathan Sandler e três crianças. Nicolas Sarkozy, então presidente, deslocou-se rapidamente para a cena da tragédia. O candidato socialista François Hollande suspendeu, naquele momento, sua campanha eleitoral.

Dias antes, o atirador, que se dizia ligado à Al Qaeda, havia matado três soldados franceses. Uma onda de comoção se espalhou pelo país. Houve numerosas homenagens às vítimas em locais como Toulouse e Paris, com a participação de líderes de diversas religiões e nas quais as principais palavras de ordem eram a defesa da coexistência e harmonia entre diferentes comunidades. A França, país de maioria católica, tem cerca de 6 milhões de muçulmanos (10% da população).

As turbulências atuais e as incertezas quanto ao futuro da economia francesa contribuem para o acirramento de diversas tensões. Com promessas de mudar o curso de uma das maiores potências econômicas do Velho Continente, François Hollande conseguiu vencer Sarkozy no segundo turno, em maio passado, por um placar mais apertado do que se esperava: 51,7% contra 48,3%. E levou de volta os socialistas à Presidência, pela primeira vez desde o fim da era François Mitterrand, em 1995.

O retorno ao poder de grupos à esquerda fez soar um alarme em diversos grupos da comunidade judaica francesa, receosos de que posições dogmáticas anti-israelenses e até mesmo antissemitas passassem a ecoar no Palácio do Eliseu. Abordagens esquerdistas, ainda moldadas pelo esquematismo ideológico dos tempos da Guerra Fria, ignoram Israel como iniciativa democrática num Oriente Médio dominado pelo autoritarismo e se aliam a fundamentalistas islâmicos, em aliança embebida na rejeição a liberdades individuais e à visão conspiratória do papel, no mundo, dos EUA e do Estado judeu.

François Hollande buscou descolar-se da visão maniqueísta que sobrevive em grupos esquerdistas e se esforçou para mostrar que, em seu campo político, não há preconceitos ou dogmas anti-Israel. Durante a campanha, consolidou pontes de diálogo com a comunidade judaica francesa e com a diplomacia israelense.

O líder socialista enfrenta a difícil tarefa de conquistar a confiança de uma fatia da comunidade judaica abertamente pró-Sarkozy, considerado um presidente pró-Israel, apesar de vários percalços no relacionamento, e uma liderança empenhada em buscar a segurança de seus cidadãos judeus. Durante a segunda intifada, Sarkozy ocupou o cargo de ministro do Interior e se notabilizou pelos esforços em coibir a hostilidade contra alvos judaicos ou israelenses.

Em entrevista à correspondente parisiense da Jewish Telegraphic Agency, Jerome Fourquet, da companhia de pesquisa de opinião Ifop, avaliou em fevereiro que 40% dos eleitores judeus “se sentiam próximos” ao UMP, partido de Sarkozy, enquanto esse índice, junto ao eleitorado total, alcançava 26%. “Uma parte da comunidade judaica está bastante preocupada com a sua segurança, e essa é uma plataforma bastante favorável à direita”, opinou Fourquet.

Nicolas Sarkozy também soube cultivar laços com a comunidade judaica. Na manhã de 8 de fevereiro, recebeu no Palácio do Eliseu o soldado israelense Gilad Schalit, libertado em 2011 após mais de cinco anos de cativeiro nas mãos do Hamas. O militar carrega também a cidadania francesa.

No mesmo dia, Sarkozy compareceu ao jantar anual do CRIF, a principal entidade de representação da comunidade judaica francesa. O evento reunia cerca de mil pessoas e o candidato-presidente defendeu seus pontos de vista tradicionais sobre o Oriente Médio: a enfática defesa da segurança de Israel e uma pressão crescente, por meio de sanções, contra o Irã e suas ambições nucleares.

Mas houve momentos de maior tensão no jantar. Sarkozy tentou explicar o motivo pelo qual a França votou no ano passado a favor do reconhecimento do Estado palestino como integrante da Unesco, braço da ONU para cultura e ciência, sediado em Paris. “Nós também queríamos dizer aos palestinos que há uma luz no fim do túnel, que eles também poderiam ser levados em consideração”, discursou ele. “Sei que ao assumir essa posição eu posso ter incomodado alguns de vocês, mas se um amigo de Israel não o faz, quem o fará?”

No jantar também estava seu adversário na corrida eleitoral. Hollande, durante a campanha, evitou criticar Israel e buscou mostrar uma linha de equilíbrio nas abordagens sobre o Oriente Médio, preferindo, nos debates sobre a região, enfocar a questão iraniana. Também se reuniu com instituições judaicas europeias e representantes da mídia comunitária francesa. Procurou, nas entrevistas, enfatizar o compromisso no combate ao antissemitismo e a rejeição, por exemplo, a boicotes a Israel.

Hollande, no discurso de posse, voltou a atacar o antissemitismo e o racismo. E, ao montar seu gabinete, convocou integrantes da comunidade judaica, como o novo ministro das Finanças, Pierre Moscovici, que comentou sobre Hollande e sua posição frente à ameaça antissemita: “Ele sempre foi claro sobre esse tema e também um amigo do Estado de Israel. Ele será firme e vigilante. Estou cansado dessas caricaturas que veem perigo a Israel e aos judeus no Partido Socialista”.

“Tudo o que queremos é contribuir para uma solução pacífica entre israelenses e palestinos”, acrescentou o ministro, que é filiado ao PS desde 1984. Antes mesmo da formação do novo governo, Corine Mellul, comentarista baseada na França, escreveu no diário “Haaretz”: “Hollande também tem simpatia pelo Estado judeu (e muito mais judeus no seu estafe do que Sarkozy jamais teve)”.

A nomeação do novo ministro das Relações Exteriores gerou angústias. As bolsas de apostas apontavam para Hubert Védrine, que havia ocupado o cargo entre 1997 e 2002, e para o ex-premiê Laurent Fabius. À frente da chancelaria francesa, Védrine ganhou o rótulo de um crítico ácido de Israel. Já Fabius, que acabou sendo indicado por Hollande, sugeria uma linha mais moderada nas relações com Jerusalém.

No início deste ano, Laurent Fabius desembarcou em Israel como emissário do candidato socialista e se reuniu com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e diversas autoridades israelenses. O roteiro incluiu Ramallah e um encontro com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina. Segundo analistas israelenses, Fabius buscou transmitir a seus interlocutores a ideia de que as posições francesas para a região não sofreriam mudanças de curso drásticas, na hipótese de os socialistas vencerem o pleito de maio.

A agenda do novo chanceler deve listar a organização de uma viagem de Hollande a Israel, que nunca visitou o país. Em sua trajetória política, o novo presidente sempre guardou distância prudente de assuntos internacionais, dedicando-se, sobretudo, à arquitetura e dia-a-dia do Partido Socialista. Será, portanto, um estreante em diversos palcos globais. Assombrada pela maior crise econômica de sua história recente,
a França, assim como vários parceiros europeus, certamente perdem apetite de se envolver em temas globais, preferindo gastar tempo e energias com desafios domésticos e continentais. Mas a influência da França no Oriente Médio também se apoia em laços históricos e culturais com a região.

Após o triunfo socialista, Netanyahu e o presidente Shimon Peres enviaram mensagens de congratulações ao novo morador do Palácio do Eliseu. “Estou ansioso para me reunir com Hollande, a fim de continuar essa importante relação, tanto no plano bilateral e também no âmbito internacional”, afirmou o premiê israelense.

A mensagem de Shimon Peres mirou em desafios dos próximos anos. “Em nome da nação israelense, é um prazer enviar minhas sinceras congratulações à sua eleição ao posto de presidente da França. Tenho confiança que, sob sua liderança, o povo francês olhará para o futuro com esperança, segurança e um espírito de unidade”, sustentou Peres.

Na eleição francesa, chamou também atenção o expressivo apoio amealhado pela candidata Marine Le Pen, da extrema direita. Foram 17,9% dos votos. A terceira colocada no primeiro turno é filha de Jean-Marie Le Pen, notório antissemita e defensor da intolerância. Empenhada em emprestar um verniz de modernidade ao polo extremista, Marine buscou se afastar de algumas posições de seu pai e mentor político, a fim de obter votos em setores da sociedade francesa tradicionalmente avessos à pregação da Frente Nacional.

A ameaça do racismo à la Le Pen é preocupante, sobretudo num cenário em que as incertezas econômicas podem alimentar projetos populistas, que busquem oferecer bodes expiatórios e soluções fáceis para crises complexas, como a que engolfa parte dos países europeus. Caberá aos líderes responsáveis e comprometidos com a democracia levar a França pelo árduo caminho necessário para superar a crise e, assim, evitar que o extremismo volte a rondar o Velho Continente.

O Jornalista Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.