Existe o mito de que as comunidades judaicas da América Latina são muito ricas. A realidade é que boa parte destas pertencia às faixas média e baixa da classe média. Este é o caso da Argentina.


Um panorama dramático

Estima-se que 50.000 judeus argentinos estejam abaixo da linha de pobreza. Inúmeros judeus que pertenciam à classe média não têm o necessário para a sua alimentação. Vão buscar comida todos os dias nas sinagogas e instituições comunitárias que abriram refeitórios populares para atendê-los. O Chabad Lubavitch da Argentina procura atender 300 crianças judias que não têm família, muitos dos quais lhes são enviados pelo Juizado de Menores. A Fundação Tzedaká construiu 12 moradias para famílias judias que não tinham onde morar. Uma delas vivia com seus dois filhos num trailer emprestado. Aumenta mês a mês o número de pessoas que procuram trabalho no Centro Ocupacional da AMIA. A maioria são jovens profissionais judeus desocupados.

Este é, hoje, o panorama da comunidade judaica da Argentina, que está em real perigo. Como o apontou o Presidente da Comissão de Absorção e Imigração do Knesset, Tzvi Hendel, após retornar do país: “A comunidade judaica da Argentina corre perigo de desmoronar”. Esta comunidade, que desenvolveu uma magnífica rede educativa cultural e nacional e combateu o anti-semitismo, agora se vê confrontada por um rápido processo de pauperização que a colocou contra a parede em muitos aspectos.

A nova pobreza judaica

Existe o mito de que as comunidades judaicas da América Latina são muito ricas. A realidade é que boa parte destas pertencia às faixas média e baixa da classe média. Este é o caso da Argentina. Chegar até essas posições significou, para os judeus, um penoso caminho por terem começado do zero, sem absolutamente nada. Hoje o mito está ainda mais distante da realidade. Vastos setores da comunidade já não são sequer da classe média baixa, são os novos pobres. Estimou-se que na Argentina, na década de 90, sete milhões de pessoas – ou seja, 20% da população do país – passou da classe média para a pobre, dentre os quais grandes contingentes de judeus. A classe média que, nos anos 60 representava 50% da população, não chega, agora, a 25%. Estima-se que uma quarta parte dos membros da comunidade judaica do país é hoje pobre ou está no limite da linha de pobreza; e o número cresce a cada dia, como ocorre com o número de novos pobres, em geral.

Este processo não tem nada a ver com anti-semitismo ou discriminação. O problema é de outra índole. A comunidade judaica argentina, em sua maioria, estava engajada em ocupações que foram as mais prejudicadas pela política econômica que vigorou no país, nesta década, e que em geral polarizou a pirâmide social e favoreceu a concentração econômica, criando sérias dificuldades de sobrevivência aos estratos médios da população. Assim, muitas famílias judias que se dedicavam ao pequeno comércio – que foi alijado da economia pela irrupção das redes de supermercados e magazines de grande porte – viram-se também sem meios de subsistência. Outras tinham erguido com muito trabalho pequenas e médias indústrias, que não resistiram à livre importação e à dificuldade de obtenção de crédito. Muitos judeus que tinham cargos públicos, perderam o emprego nos sucessivos cortes no funcionalismo estatal. Muitas famílias não mediram esforços para que seus filhos completassem uma carreira universitária, o que, na Argentina do século passado, era considerado uma garantia de poder pertencer à classe média. A situação mudou drasticamente. Muitas carreiras ficaram virtualmente sem mercado de trabalho. Até aquelas mais cobiçadas numa típica família judia, como a medicina, enfrentam, hoje, muitos problemas. E não é só a questão dos desempregados. Também muitos dos que têm trabalho recebem, atualmente, um salário que os coloca na faixa da quase pobreza. Este é o caso dos professores, dos paramédicos e dos muitos funcionários públicos. Por outro lado, o vasto setor dos aposentados, após uma longa vida de trabalho, depara-se com pensões mínimas cujo valor real diminui constantemente.

Tudo isto fez surgir um dramático quadro social. Em Buenos Aires, o número de casos para assistência social atendidos pela Aliança Solidária e pela Fundação Tzedaká passou, em poucos anos, de 4.000 a 20.000. Estima-se que 10% das 20.000 crianças que estudam nas escolas judaicas conseguem comer diariamente graças à alimentação fornecida na escola. Mais de 500 pessoas se somam mensalmente aos que procuram trabalho no Centro de Ocupação da Mão-de-Obra da AMIA. Existem jovens profissionais judeus que não conseguem trabalho nem como zeladores; 1.700 famílias judias perderam sua moradia, em Buenos Aires, e muitas moram juntas num quarto de hotel humilde, pagando o aluguel para a Prefeitura ou para a comunidade. Temos encontrado famílias judias morando embaixo de pontes, nas praças públicas e em favelas. Chega a 300 o número de famílias que recebem ajuda total, desde medicamentos até alimentação, no Templo Emanuel. Mais de 50% dos alunos das escolas judaicas estão nelas porque têm bolsa da comunidade, senão não poderiam fazê-lo. A assistência social mudou de perfil. Antigamente chegavam para pedir ajuda da AMIA principalmente pessoas em idade avançada, sem família; agora quem procura ajuda são famílias jovens, próximas do desespero diante da situação de desemprego e do total desamparo econômico em que se encontram. Um caso extremo foi o de um pai, desesperado, que foi procurar o Rabino-Chefe do Chabad Lubavitch para que este protegesse seus três filhos pequenos porque ele pensava suicidar-se. Queria ter a segurança de que a comunidade judaica se encarregaria das crianças. A solidariedade solucionou este problema.

Impactos sobre a vida comunitária

O afundamento socio-econômico do judaísmo argentino tem grandes implicações, entre as quais:

a-Problemas de sobrevivência: Muitas famílias judias não tem meios de cobrir suas necessidades mínimas. Não sabem que resposta dar a seus filhos, nem como fornecer-lhes um nível mínimo de proteção. Em seu desespero, têm o olhar fixo em escapar desta situação. Várias publicações têm noticiado uma prática constante não só entre os judeus, senão entre os novos pobres, em geral. Tentam regressar aos países de onde seus avos ou bisavós vieram, há muitas décadas, valendo-se de sua ascendência para obter a devida documentação.

Um novo tipo de assimilação

Os judeus lutaram durante o século XX contra diversas formas de assimilação, com êxitos significativos. Enfrentaram a assimilação ideológica, que, no início do século, proclamava que o sionismo era uma visão ilegítima e exigia uma integração do judeu nas ideologias anti-sionistas. Encararam a assimilação religiosa, que pregava a conversão ao cristianismo para, em muitos casos, obter uma identidade não exposta a perigos históricos tão sérios. Tiveram que brigar e o estão fazendo, contra uma grande variedade de possibilidades numa sociedade aberta, como a americana, e contra o crescimento dos casamentos mistos que se excluem do judaísmo. Para isto, a vida judaica desenvolveu novas abordagens e políticas. Na América Latina cresce um tipo novo de assimilação, diferente, que provém da nova pobreza judaica.

As pesquisas sociológicas sobre os novos pobres indicam, em geral, que quando uma pessoa perde seu emprego e fica desempregada por um longo tempo, tende a se retrair socialmente. Tem “vergonha” de participar em grupos sociais onde a primeira pergunta que lhe farão será logicamente sobre o que faz. Sente que sua auto-estima está vulnerável, pelo mesmo motivo, e seria ainda mais danificada se participasse de reuniões sociais. Por isso se exclui das mesmas. Isto é extremamente grave para a vida judaica, alicerçada no contato ativo de cada judeu com múltiplas estruturas comunitárias.

Efetivamente, vemos os novos pobres judeus afastarem-se as instituições. Eles abandonam as kehilot (as congregações organizadas), as escolas, os centros comunitários e passam a ser ausentes. Não é somente o problema de não poder custear o mínimo necessário. Ainda que sejam isentados de pagamento, eles não freqüentam tais locais porque a sua situação os faz sentirem-se inferiorizados e optam pelo isolamento. Isto está criando uma periferia judaica que deseja participar na comunidade mas rompe sua ligação com a mesma por causa da pobreza. Há judeus em Buenos Aires que preferem pedir comida no refeitório de uma Igreja para não “passarem a vergonha” de buscar alimento em instituições comunitárias onde os podem reconhecer. Silenciosamente, estes judeus da pobreza vão limitando sua vida judaica e a de seus filhos.

O enfraquecimento institucional

A comunidade judaica da Argentina se apoiava nas contribuições da massa judaica. A elas agregava-se o interesse pelo judaico em grupos econômicos, empresariais e em famílias com sólida posição econômica. Hoje estas bases estão muito enfraquecidas. Boa parte dos contribuintes das grandes instituições de base popular não estão em condições de manter suas contribuições; pelo contrário, muitos deles precisam de ajuda. Por outro lado, a evolução econômica tem causado o declínio de empresas judaicas que faziam contribuições significativas. A repercussão sobre as finanças comunitárias foi muito dura. Fecharam-se muitas escolas, há sinagogas vazias sem ter sequer quem cubra a sua manutenção, as instituições judaicas de bairro desapareceram.

Os professores judeus que deveriam ser protegidos ao máximo pelo seu papel fundamental na continuidade judaica têm sido severamente atingidos. O número dos mesmos reduziu-se, os salários caíram e os direitos adquiridos por anos de trabalho já não contam mais. Muitos abandonaram a carreira e é muito difícil achar outros. Quase simbolizando este perfil, um jornal comunitário anuncia que a escola judaica mais antiga da comunidade, de 100 anos de existência, está por fechar as portas.

Comprar a briga

O judaísmo argentino reagiu, nesta hora tão difícil, com todo seu vigor, fundamentado em seus arraigados valores judaicos e sionistas. As instituições e seus askanim têm redobrado seus esforços.

Mas tudo o que conseguem fazer perante a pobreza judaica é pouco face à magnitude do problema. Calcula-se que apenas 40% dos judeus pobres recebem ajuda, 60% não; e esta brecha continua aumentando, diariamente. Cinqüenta mil judeus pobres ou indigentes judeus; famílias judias inteiras que se perdem para a comunidade; instituições que se fecham quando, mais do que nunca, é necessário que existam e sejam fortes; muitas escolas desaparecem, perdem-se professores; tudo isto significa que este judaísmo está, hoje, em sério perigo.

Urge que surja uma resposta do coletivo do povo judeu. A solidariedade da pujante comunidade judaica do Brasil pode ser muito valiosa.

O tempo urge. Cada dia que passa sem solução significa mais famílias judias sofrendo privações básicas e correndo o risco de se desintegrar como família. Pais desesperados, crianças que não podem ir à escola judaica, jovens judeus desesperançados, colégios e sinagogas fechados. Vamos permitir isto ou vamos mostrar, uma vez mais, que somos um só povo, que aprendeu para sempre o princípio ético central da mensagem que nos deu a divindade: ‘Nós, judeus somos responsáveis uns pelos outros!"


Bernardo Kliksberg
Assessor das Nações Unidas, BID, UNESCO, UNICEF e outros orgãos internacionais.
Presidente da Comissão do Desenvolvimento Humano do Congresso Judaico Latino-Americano.
Recentemente foi lançado no Brasil seu novo livro "A Justiça social. Uma visão judaica" (UNESCO, Maayanot).