Diplomacia e esporte, nos últimos meses, evidenciaram diferentes momentos das relações entre Israel e Egito. No tatame olímpico do Rio de Janeiro, o judoca egípcio Islam El Shehaby protagonizou cena lamentável, ao se recusar a cumprimentar, no final da luta, o atleta israelense Or Sasson. A hostilidade desportiva, no entanto, contrastou com o reaquecimento do diálogo entre Jerusalém e Cairo, colocando os vínculos bilaterais em nova fase, marcada pela intensificação.

Após derrota para um lutador israelense que depois conquistaria a medalha de bronze (uma das duas obtidas por Israel nas Olimpíadas, ambas no judô), Islam El Shehaby quebrou uma tradição do tatame ao dar as costas a Or Sasson. O público irrompeu em vaias. A própria delegação egípcia despachou o seu atleta de volta ao Cairo, que carregou na bagagem uma dura reprimenda do Comitê Olímpico Internacional (COI) por sua atitude antidesportiva.

“O presidente do Comitê Olímpico Nacional emitiu uma declaração afirmando respeitar todos os atletas e todas nações presentes ao Jogos Olímpicos”, afirmou o COI, em nota oficial. “O Comitê Disciplinar (DC) considerou que o comportamento (do atleta) ao final da competição foi contrário à regras do fair play e contrário ao espírito de amizade integrante dos  valores olímpicos”.

O COI anunciou ainda medidas de prevenção: “Assim como a severa repreensão, o DC solicitou ao Comitê Olímpico Egípcio que garanta no futuro que todos os seus atletas recebam educação adequada em relação aos valores olímpicos antes de virem às Olimpíadas”.

Apesar da preocupação das autoridades olímpicas, há uma lista extensa de manifestações antidesportivas em relação a atletas israelenses. Ainda no Rio de Janeiro, eles foram impedidos de entrar em um ônibus por integrantes da delegação libanesa. Em 2004, nos Jogos de Atenas, o judoca iraniano Arash Mirasmaeili, então campeão mundial, se recusou a enfrentar Ehud Vaks.

Mirasmaeili foi recebido com honras em Teerã. Já o caso de Islam El Shehaby foi diferente. Sua atitude foi elogiada por grupos fundamentalistas, enquanto as autoridades no Cairo insistiram nas críticas. O episódio demonstra ainda o fosso existente entre a política oficial do Egito, com quem Israel assinou um acordo de paz em 1979, e o sentimento anti-israelense disseminado na opinião pública egípcia.

Com apoio dos EUA, o presidente Anuar El Sadat e o premiê Menachem Begin costuraram o acordo de Camp David, o primeiro a trazer a paz entre Israel e um país árabe. Dois anos antes, em 1977, Sadat havia feito uma visita histórica a Jerusalém, incluindo um discurso na Knesset (Parlamento). Em 1981, foi assassinado em ataque terrorista no Cairo, arquitetado como resposta à sua aproximação com o Estado judeu.

O sucessor de Sadat, Hosni Mubarak, manteve o entendimento com Israel, mas promoveu uma “paz fria”. No plano bélico, a guerra estava descartada e, em vários momentos, registrava-se cooperação entre serviços de inteligência, por exemplo, no combate ao terrorismo. Mas o governo egípcio de então evitava o aprofundamento de laços políticos e culturais, permitindo ainda na mídia estatal a sobrevivência de discursos fortemente anti-israelense e até mesmo antissemitas.

O regime de Mubarak mantinha a linha implementada há décadas pela liderança do mundo árabe de usar a questão palestina como elemento diversionista, a fim de desviar a atenção das suas sociedades dos problemas domésticos. O sucessor de Sadat visitou Israel apenas uma vez, no funeral de Yitzhak Rabin, em 1995.

Em 2011, a chamada Primavera Árabe levou à queda de Mubarak. Em seguida, após um período de governo interino, chegou ao poder, por meio de eleição, Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, grupo fundamentalista fundado  no Egito na década de 1920.  O Cairo passava a testemunhar a implementação paulatina de um regime religioso.

A Irmandade Muçulmana egípcia se transformou, ao longo do século 20, numa organização com tentáculos em outros países. Sua ideologia influenciou, por exemplo, o Hamas, que atualmente controla a Faixa de Gaza. O saudita Osama Bin Laden construiu visão de mundo a partir da leitura, entre outros documentos, de textos da Irmandade Muçulmana.

Em 2013, depois de uma onda de protestos contra Morsi, os militares liderados pelo general Abdel Al-Sisi afastaram o presidente. No ano seguinte, Al-Sisi foi eleito para presidir o país por um mandato de sete anos. Enquanto o Egito mergulhava na queda de braço entre militares e Irmandade Muçulmana, a Síria testemunhava o início de sua trágica guerra civil, que teve como uma de suas consequências o surgimento do Estado Islâmico. O grupo fundamentalista, ao se fortalecer, passou a contar com a adesão de organização de outros países. Foi o caso de terroristas baseados na península do Sinai.

A presença do Estado Islâmico e aliados em solo egípcio e perto da fronteira com Israel levou o Cairo e Jerusalém a registar um ponto na construção de uma agenda de reaproximação. Outros dois fatores para intensificar o diálogo: Hamas e Irã.

Em função dos laços históricos e ideológicos entre Hamas e Irmandade Muçulmana, o governo egípcio percebe o grupo terrorista palestino como ameaça estratégica. Portanto, autoridades israelenses e egípcias compartilham a preocupação de lidar com um inimigo comum baseado na Faixa de Gaza.

O cenário ampliado do Oriente Médio demonstra, nos últimos anos, um agravamento da disputa entre o Irã, país de maioria xiita, e as nações sunitas, como Egito e Arábia Saudita, num embate por áreas de influência. Conflitos como da Síria e do Iêmen são alimentados também pelos interesses de potências regionais, que apoiam diferentes lados nessas guerras civis.

A percepção da ameaça iraniana contribui fortemente, nos últimos anos, para uma aproximação entre Israel e os países sunitas, como Egito. O Cairo também tem procurado investir nos laços com Jerusalém depois que o governo israelense, em junho, protagonizou uma reaproximação com a Turquia, pois autoridades egípcias temem a concorrência de Ancara em projetos políticos e, sobretudo, econômicos.

O chanceler egípcio, Sameh Shoukry, no começo de julho realizou a primeira visita de um chefe da diplomacia egípcia a Israel, em nove anos. Mais uma sinalização dos novos tempos: o visitante se reuniu com o premiê Binyamin Netanyahu em Jerusalém, contrariando orientação anterior de evitar reuniões na capital israelense, para realizá-las em Tel Aviv.

A agenda de Shoukry foi noticiada pela página no Facebook, em árabe, do Ministério das Relações Exteriores do Egito, numa demonstração de transparência, para a sociedade egípcia, da nova atmosfera nas relações entre os dois países do Oriente Médio. Importante ressaltar que após o encontro formal, o chanceler foi ainda recebido na residência do primeiro-ministro.

No final de julho, foi a vez do premiê israelense evidenciar os novos ares das relações bilaterais. Acompanhado de sua mulher, compareceu à celebração, na embaixada egípcia em Israel, do Dia da Revolução, que marca a derrubada, em 1952, do rei Farouk por uma revolta militar. Em discurso, Netanyahu agradeceu as iniciativas do presidente Al-Sisi, de buscar intermediar um diálogo com lideranças palestinas. O presidente Reuven Rivlin também compareceu à recepção. Iniciou seu discurso em árabe, em mais um sinal diplomático de reaproximação, e em contraste com a hostilidade demonstrada por um judoca egípcio em tatames do Rio de Janeiro.

Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da folha de s. paulo em moscou e em pequim.