No momento em que estas linhas são escritas encerra-se um longo período da história do Estado de Israel.

Não é a primeira vez que Israel se retira de uma área ocupada durante um conflito violento; após os acordos de paz com o Egito, a península do Sinai foi devolvida e a cidade de Yamit, destruída pelos israelenses; alguns de seus moradores estabeleceram-se em Gaza, acreditando que lá ficariam para sempre, parte da política israelense de garantir as fronteiras através de postos avançados no caminho do inimigo potencial. Após assinatura da paz com a Jordânia também foram feitas pequenas correções de fronteira e, mais recentemente, o exército israelense se retirou do Líbano depois de décadas de uma ocupação que durava desde a incursão em direção ao rio Litani, em 1978.

Os territórios conquistados por Israel, ao longo dos últimos 50 anos, fizeram parte do sonho de criar uma grande Israel, através da ocupação do território nas duas margens do Jordão. A oportunidade foi oferecida, ironicamente, pelos próprios árabes que atacaram o estado recém-constituído em 1948, somente para serem derrotados repetidamente ao longo dos anos seguintes. As frágeis fronteiras adquiridas durante a guerra de independência, pouco defensáveis, seriam ampliadas após a guerra de 1967, quando a margem ocidental do rio Jordão, a Faixa de Gaza e a Península do Sinai foram conquistadas, permitindo pela primeira vez, em mais de dois mil anos, o controle judaico dos seus mais sagrados símbolos. Para consolidar essa nova realidade, entretanto, teria sido necessário uma população muito mais numerosa, resultante de uma imigração em massa da diáspora judaica. Sem população suficiente mesmo para o limitado objetivo de fronteiras que se estendessem do Mediterrâneo ao Jordão, Ariel Sharon e seu governo (mas não seu partido) finalmente se renderam à evidência de que Israel perderia a corrida demográfica e deixaria de ser um estado democrático, ou um estado judeu, se optasse por incorporar os milhões de árabes que governou, desde a guerra de 1967.

A Faixa de Gaza representa o melhor exemplo desta aberração: com uma população árabe de quase 1,5 milhões de habitantes, grande parte vivendo em condições miseráveis, abrigava em seu seio em torno de 8.000 judeus israelenses, que demandavam mais de 15.000 soldados para sua proteção. A idéia que levou a seu assentamento estava ligada a uma outra era: uma era de conflito com o Egito, em que a Faixa de Gaza constituía uma barreira ao avanço de um possível ataque egípcio, em direção ao centro do país. A ameaça egípcia desapareceu com a assinatura dos acordos de paz de Camp David e a desmilitarização do Sinai; e o tipo de ameaça mudou radicalmente com o advento da era balística, inaugurada pelos foguetes Scud, de Sadam Hussein, durante a Guerra do Golfo, e incorporada pelos palestinos através dos foguetes Qassam e, pelo Hizbollah, com suas Katyushas.

A retirada de Gaza terá significativo impacto sobre ambas as sociedades, israelense e palestina. Conforme o ditado árabe citado pelo renomado escritor israelense Amos Oz, é impossível bater palmas com uma só mão. Mas, neste caso, as duas mãos não representam apenas israelenses e palestinos, mas também as diferentes facções em cada uma das sociedades. Por um lado, a Autoridade Palestina tem agora de garantir o controle nas áreas abandonadas por Israel, ao mesmo tempo em que demonstra à população palestina que fazem parte do passado a miséria e o sofrimento vividos pelos habitantes da Faixa de Gaza. É pouco provável que a liderança palestina, envolvida na corrupção e na disputa pelo poder que já a contaminava ainda no tempo de Arafat, possa satisfazer os anseios da população por habitação, trabalho e progresso. Os palestinos terão de se dar conta de que a ocupação israelense não era a razão de todo seu sofrimento, e talvez voltem a lembrar dos bons tempos em que conviviam com os israelenses e tinham acesso a um pujante mercado de trabalho.

Os israelenses também terão de se adaptar a uma nova realidade. A surpreendente tranqüilidade com que se deu a retirada (ainda que as imagens do sofrimento dos colonos tenha emocionado a todos que as viram) elimina qualquer possibilidade de a liderança israelense utilizar-se do argumento da "guerra de irmãos" para evitar uma segunda etapa deste processo. É verdade que o "Mapa da Estrada", patrocinado pelos EUA e pela União Européia, permite a Sharon exigir que os palestinos façam agora sua lição de casa, consolidem suas forças de segurança e garantam a suspensão de atentados terroristas por parte de grupos dissidentes. Mas o mesmo documento também prevê a paralisação das obras nos assentamentos da Margem Ocidental, alguns dos quais estão-se preparando para receber parte dos colonos que abandonaram suas casas na Faixa de Gaza. E esta trégua não eliminará a lógica demográfica que resultou na retirada unilateral de Gaza; na Margem Ocidental será necessário encontrar a fórmula para evitar que qualquer território incorporado ao estado israelense, seja no âmbito de um acordo de paz ou através do desenho arbitrário de uma fronteira, incorpore uma população palestina hostil a um estado democrático judaico.

Além disso, se o ritmo das negociações for utilizado pelos dissidentes palestinos para continuar a realizar atentados suicidas ou lançar foguetes, a partir de Gaza, contra os centros populacionais israelenses dentro da Linha Verde, voltará a imperar a violência. Assim como o Processo de Oslo foi revertido, com a re-ocupação das cidades palestinas das quais o exército israelense se havia retirado, a volta a Gaza (não pelos colonos, mas por tropas do exército) não poderá ser descartada. E, talvez mais preocupante: uma vez que o Egito passe a ser responsável pela fronteira entre Gaza e o Sinai, por onde têm sido contrabandeadas as armas utilizadas pelo Hamas e pela Jihad Islâmica, poderá estar em perigo também a paz morna, estabelecida pelos acordos de Camp David, em 1979, e que garantiu a Israel o domínio militar no Oriente Médio, desde então. Pela primeira vez desde 1967, tropas egípcias estarão estacionadas na fronteira israelense, ainda que, desta vez, para protegê-la de uma possível ameaça palestina.

A retirada de Gaza traz promessas, esperanças. O final das mortes de civis inocentes de ambos os lados; a recuperação econômica, o tão esperado dividendo da paz. Mas traz, também, a ameaça de expectativas frustradas, para ambos os lados. A liderança palestina herdou os problemas enfrentados por Arafat, a necessidade de manobrar entre a solução viável para o problema palestino e as promessas feitas a seu povo no calor da propaganda. Seu conflito interno mais importante está entre a defesa daquelas demandas, que são consideradas como a "linha vermelha" pela opinião pública palestina, e a necessidade de uma negociação pragmática com Israel, em que está claro que tais demandas não serão atendidas. Ou seja: Israel não se retirará de todos os territórios ocupados; Israel não desmantelará todas as colônias lá estabelecidas; Israel não permitirá o retorno dos refugiados a seus antigos lares; Israel não abrirá mão de seu controle de Jerusalém oriental.

Uma postura pragmática por parte de Abbas aponta, portanto, para uma solução que contemple o estabelecimento de uma unidade nacional autônoma, que possa oferecer aos refugiados palestinos da diáspora o equivalente a uma "lei de retorno" e desarmando, portanto, as demandas para a destruição do estado judeu. Importantes perguntas ainda pairam no ar: após a retirada, como evoluirão as relações entre palestinos e israelenses? Quanto tempo levará para que os palestinos demandem o início da próxima fase do processo e a retirada de grande parte da população judaica da Margem Ocidental? Que atitude terão os Estados Unidos frente à continuidade das obras nos assentamentos, ao redor de Jerusalém? A cerca/muro que está sendo construída, determinará a futura fronteira demográfica entre Israel e uma entidade palestina (eventualmente, um estado)? Que tipo de relações se desenvolverão entre o governo de Sharon (se este conseguir se manter e, eventualmente, for re-eleito no próximo ano) e um governo de Mahmoud Abbas? Sharon, apoiado pelos trabalhistas, reconhece que o sistema internacional não tolerará um vácuo na região, o que o obrigará a manter a iniciativa, provavelmente sugerindo modificações adicionais nas fronteiras. Caso contrário, a comunidade internacional tenderá a impor opções muito mais penosas. A retirada de Gaza, um processo longo e penoso, demonstrou a capacidade israelense de controlar o ritmo dos acontecimentos, após derrotar militarmente a segunda Intifada. Agora, a redução do confronto permitida pela retirada de Gaza (pela ausência de um alvo fácil representado pelos vulneráveis assentamentos), pode levar a uma diminuição do nível geral de tensão entre as partes. Se tal não ocorrer, os israelenses certamente terão melhores condições táticas de enfrentar a ameaça terrorista, já que a minoria judaica em Gaza não tem de ser protegida e os recursos materiais e humanos liberados podem concentrar-se nas áreas que continuam sob a responsabilidade de Israel.

Os palestinos não terão de enfrentar poucas dificuldades. Primeiramente, a manutenção de um cessar-fogo entre os radicais palestinos e Israel já foi uma vitória, permitindo a retirada de Gaza com relativa tranqüilidade. Esvaziou-se, assim, o risco de uma provocação, da geração de uma percepção de que os israelenses estavam-se retirando sob fogo, derrotados por uma revolta armada. Mas, uma vez tomada a posse do território, a Autoridade Palestina (AP) terá de demonstrar sua capacidade administrativa; Israel exigirá da AP o final dos atentados terroristas, do contrabando de armas através da fronteira egípcia e da corrupção que até hoje impediu o avanço da sociedade palestina. E as eleições legislativas palestinas, já adiadas para permitir que o controle da AP se consolide, reduzindo a influência do Hamas, ditarão a capacidade de Abbas e seu grupo de dar seguimento aos entendimentos com Israel. Se os israelenses, por seu lado, exigirem a obtenção de segurança absoluta para retomarem as negociações, reagindo a provocações de ambos os lados, estas estarão, desde já, abortadas.

Para Israel, os próximos meses serão extremamente difíceis; haverá pressão externa por parte dos EUA para que a dinâmica do processo iniciado em Gaza seja mantida (a estagnação no Iraque e recentes reveses no Afeganistão certamente influenciarão para que o presidente Bush deseje obter resultados positivos pelo menos no conflito israelo-palestino) e pressão interna, por parte dos partidos membros da coalizão, que exigem a continuidade do processo de paz. Esta combinação terá de ser suficiente para se opor à força daqueles que acreditam que, uma vez livres de Gaza, os israelenses poderão concentrar-se na consolidação de seu controle sobre a totalidade dos territórios da Margem Ocidental.

1. O "Mapa da Estrada" estabelece o marco patrocinado pelas grandes potências, dentro do qual israelenses e palestinos tentarão chegar a um entendimento, eliminando o terror palestino e criando uma entidade palestina provisória para finalmente estabelecer um estado palestino independente ao lado de Israel.