Há 80 anos, em julho de 1942, a polícia francesa prendeu 13.512 judeus – homens, mulheres e crianças, levando quase todos para o Vélodrome d’Hiver, em Paris. Essa foi a maior operação de detenção de judeus na França, durante o Terceiro Reich, e foi executada exclusivamente por policiais franceses, sem o envolvimento de um alemão sequer. A maioria desses judeus foram assassinados em Auschwitz.

O brutal evento de 17 e 18 de julho em Paris, tornou-se conhecido como La Rafle de Vél d’Hiv, o Cerco Policial do Velódromo de Inverno. Foi nessa mesma Paris que, em 1791, de acordo com a Assembleia Nacional Constituinte, os judeus tornaram-se cidadãos plenos pela primeira vez, na Europa. Com a eclosão da 2ª Guerra Mundial, em setembro de 1939, na França da “igualdade, liberdade e fraternidade”, seus cidadãos judeus acreditavam erroneamente estar seguros, sem correr o risco de serem perseguidos. Os anos seguintes foram de muita perseguição, sofrimento e tragédia.

A França na 2ª Guerra Mundial

No dia 3 setembro de 1939, França e Grã-Bretanha declararam guerra à Alemanha nazista que invadira a Polônia dois dias antes. Em maio de 1940, exércitos alemães invadem a França e, no dia 14 de junho, tomam Paris. A Itália de Mussolini, que no dia 10 de junho entrara na guerra ao lado do Terceiro Reich, invade o território francês.

A França se rende oficialmente em 22 de junho, e assina um armistício com Alemanha e Itália. O país é, então, dividido: 3/5 do território – o Norte e a costa do Atlântico, inclusive Paris – ficam sob ocupação nazista, enquanto o Sul e o Sudeste, a chamada Zona Livre, passam a ter um governo leal à Alemanha, o Regime de Vichy, com sede na cidade deste nome. Uma área da região Sudeste fica nas mãos da Itália fascista. Cerca de 150 mil judeus refugiam-se na Zona Livre, na esperança de que ali estariam a salvo dos nazistas, porém, encontram uma realidade idêntica à dos judeus que haviam permanecido na Zona Ocupada.

A França de Vichy desfrutava de certo grau de autonomia em sua colaboração com a ocupação alemã. Sob a liderança de marechal Philippe Pétain, o governo de Vichy seguia sua própria política antissemita. Em 4 outubro de 1940, voluntariamente, promulga as primeiras leis contra os judeus. O “Statut des Juifs”, que se baseava nas “diretrizes” nazistas já postas em prática na zona de ocupação alemã, impunha segregação racial e a obrigatoriedade aos judeus de se identificar como tal junto às autoridades e usar a estrela amarela em suas roupas. Foram excluídos da vida pública e militar, da indústria e do comércio, das profissões liberais e das artes. O governo da Zona Livre concedeu, também, à Gestapo permissão para agir dentro das fronteiras do território que tinha Vichy como capital.

O futuro seria até mais sombrio. O assunto foi abordado na Conferência de Wannsee, um elegante castelo nos arredores de Berlim, na qual, em 20 de janeiro de 1942, os líderes do Terceiro Reich optaram pela Solução Final, ou seja, o extermínio em massa dos judeus europeus. Todos os países sob ocupação nazista, incluindo a França, eram obrigados a aderir a essa política.

Em colaboração com o regime nazista, o governo de Vichy trabalhou na deportação de judeus não apenas da Zona Norte, ocupada pelas forças alemãs, mas também da Zona Livre. Na primavera e no verão de 1942, ocorre em toda a França uma série de operações para prender e deportar judeus, que levaram o codinome “Opération Vent Printanier” (Operação Vento da Primavera). Vél d’Hiv foi uma delas.

Em 11 de novembro de 1942, alemães e italianos invadem o território francês, ocupando a Zona Livre e quebrando o Armistício.

Preparação para o cerco policial surpresa

O Vélodrome d’Hiver era uma pista de ciclismo coberta, localizada no 15º Distrito de Paris, construído em 1901 próximo à Torre Eiffel. O teto do complexo era de vidro. Orgulhosos do local, os parisienses referiam-se a ele apenas como Vél d’Hiv. Ali eram, também, realizados disputas de boxe, luta livre, jogos de hockey e shows.

O planejamento da operação envolveu René Bousquet, chefe da polícia francesa, Louis Darquier de Pellepoix, comissário de Vichy para “Assuntos Judaicos”, e os membros das SS, Theodor Dannecker e Helmut Knochen.

Para garantir a participação da polícia francesa, os oficiais nazistas concordaram em ter como alvo apenas judeus estrangeiros e apátridas, poupando, assim, inicialmente, a população judaica francesa da deportação. Havia também os “casos sensíveis”, como eram denominados os judeus britânicos ou americanos que, em um primeiro momento, foram deixados de lado. Entre os detidos havia judeus da Alemanha, Áustria, Polônia, Checoslováquia e Rússia.

A data inicial marcada para a ação foi de 13 a 15 de julho, o que incluiria a comemoração nacional do Dia da Bastilha. Este feriado não era celebrado nas zonas ocupadas da França, mas para evitar a eclosão de distúrbios locais, os oficiais nazistas permitiram que a operação fosse adiada para os dias 16 e 17 de julho.

O diretor da polícia municipal local, Émile Hennequin, informou de forma precisa aos distritos policiais quais as expectativas em relação à operação três dias antes de sua execução. A meta era recolher 28 mil judeus estrangeiros e apátridas em Paris e seus arredores.

Embora inicialmente as autoridades alemãs tivessem concordado em isentar crianças menores de 16 anos, o primeiro-ministro francês, Pierre Laval, sugeriu que, “por razões humanitárias”, as crianças fossem detidas com seus pais, a menos que um membro da família ficasse para tomar conta deles. Entre os detidos em Paris havia 4.115 crianças.

Num excesso de zelo, para manter registros detalhados da operação, os policiais foram obrigados a informar aos seus distritos o número exato de detidos por hora.

16 e 17 de julho

Nas primeiras horas da manhã de 16 de julho de 1942, mais de quatro mil policiais franceses saíram pelas ruas da Paris ocupada, levando consigo ordens de prisão para milhares de pessoas inocentes.

Foi a própria polícia francesa quem compilou a lista de “alvos” judeus. Até a ocupação alemã, em 1940, a elaboração de tais listas não teria sido possível, pois a França não realizara, desde 1874, nenhum censo com identificação de religião. Com a chegada dos nazistas, os judeus foram forçados a se registrar como tal. Cerca de 150 mil pessoas em Paris e seus subúrbios se identificaram como judeus.

A cena se repetia de apartamento em apartamento: fortes batidas nas portas, seguidas pela entrada de dois ou três policiais dando ordens bruscas aos moradores, sem nenhuma explicação; e mães suplicando que as levassem, mas deixassem seus filhos. Os idosos também eram levados, ainda que doentes, assim como as grávidas e os recém-nascidos. Cinquenta ônibus foram mobilizados para levar os detidos até os campos de internação. Os judeus, assustados, obedeciam e entravam nos ônibus. A operação estendeu-se no dia seguinte, com um número menor de prisões.

Embora muitos tivessem sido avisados sobre o perigo, presumiram que o alvo da deportação seria apenas homens, como ocorrera no passado. Portanto, mulheres e crianças não se esconderam. Muitos não acreditavam no “boato” de que o “país dos direitos humanos” prenderia mulheres, crianças e idosos.

No dia 16 de julho, a polícia arrancou de seus lares 2.573 homens, 5.165 mulheres e 3.625 crianças. No total, ao final de dois dias, 13.152 judeus (3,118 homens, 5,919 mulheres e 4,115 crianças) foram presos e, em um segundo momento, enviados para os campos de morte. Destes, nem 100 sobreviveriam aos campos. Entre os sobreviventes, nem uma criança.

Nenhum soldado alemão participou em quaisquer das fases da operação. Vél d’Hiv foi uma operação 100% francesa, organizada pelas autoridades francesas e executada por policiais franceses.

Cerca de seis mil dos presos foram imediatamente transferidos para Drancy, nos subúrbios, ao norte de Paris. Drancy era, então, um campo de trânsito para os judeus deportados da França. Casais sem filhos e pessoas solteiras eram internadas em Drancy, enquanto os outros eram levados a Vél d’Hiv.

Dias de horror em Vél d’Hiv

O Velódromo de Inverno não tinha capacidade para abrigar uma população tão grande. As condições locais eram deploráveis e subumanas. Cerca de sete mil judeus, dentre os quais mais de quatro mil crianças, lá foram largados, uns sobre os outros. Não havia espaço para se deitarem, nem alimentos ou água suficientes para tantos. O pouco que havia era fornecido pela Cruz Vermelha e pelos Quakers. Famintas e sedentas, as pessoas desmaiavam de fraqueza. Poucos médicos e enfermeiras tinham autorização para tratar os internados. As condições se deterioraram rapidamente.

O teto de Vél d’Hiv era de vidro e foi pintado de azul escuro para que o local não fosse detectado pelos aviões aliados. Todos os pontos de ventilação e janelas foram vedados para evitar fugas, elevando a temperatura interna durante o dia. Por causa do reflexo do teto as pessoas pareciam esverdeadas.

As luzes eram mantidas acesas dia e noite para facilitar a vigilância dos presos, e as ordens eram transmitidas por alto-falantes. Não havia condições sanitárias. Os banheiros com janelas foram trancados para evitar fugas e os poucos banheiros sem janelas que havia no velódromo rapidamente ficaram entupidos e as pessoas se viram obrigadas a fazer suas necessidades no chão. O cheiro era atroz e elas viviam literalmente em meio a excrementos.

Crianças corriam diante de seus pais, silenciosos. Alguns se suicidaram e os que foram pegos tentando fugir foram assassinados a tiros pelos guardas. “Quando perguntávamos aos policiais o que aconteceria conosco, diziam que seríamos enviados à Alemanha para trabalhar”, lembra Sarah Lichtsztejn-Montard, uma das poucas pessoas que conseguiu fugir de Vél d’Hiv. A presença dos idosos e doentes evidenciava o fato de que os policiais mentiam.

Após cinco dias, os prisioneiros foram transferidos para os campos de concentração de Pithiviers e Beaune-la-Rolande, na região de Loiret, ao sul de Paris, e para Drancy, perto da capital francesa, para depois serem enviados a Auschwitz, onde a grande maioria deles foi morta.

A administração de Vichy dera orientações bem claras sobre o transporte dos judeus: “As crianças não devem partir nos mesmos comboios que seus pais”. No final de julho, os adultos que ainda se encontravam no velódromo foram brutalmente separados de seus filhos e enviados para Auschwitz. Milhares de bebês e crianças continuavam detidos. Os guardas franceses disseram-lhes que em breve se reuniriam a seus pais. No final de agosto e durante o mês de setembro foram todos deportados em vagões totalmente lacrados para Auschwitz, onde foram assassinados. Morreram sozinhos, por serem judeus.

Nos dois meses seguintes a Vél d’Hiv cerca de mil judeus foram deportados da França para Auschwitz a cada dois ou três dias. No final de setembro de 1942, aproximadamente 38 mil judeus já haviam sido enviados para esse campo de extermínio. Os judeus continuaram a ser deportados da França até agosto de 1944.

Quando a Alemanha invadiu a França em 1940, aproximadamente 350 mil judeus viviam no país, muitos refugiados da perseguição nazista. Durante a 2ª Guerra Mundial, 77 mil judeus foram deportados da França para os campos de extermínio — a maioria para Auschwitz. Um terço deste total eram cidadãos franceses, dos quais apenas 2.500 retornaram.

Confrontando o Holocausto

Durante décadas, a participação sombria da França durante os anos de Guerra foi negada e deliberadamente ignorada. A 2ª Guerra Mundial não fazia parte do currículo escolar até 1962. Os livros didáticos raramente mencionavam o Holocausto. Até 1995, nenhum líder francês reconhecera a participação do Estado na deportação dos judeus para os campos de morte nazistas.

No dia 16 de julho de 1995, durante o 53º aniversário de Vél d’Hiv, o ex-presidente Jacques Chirac foi o primeiro presidente francês a se desculpar pelo papel que as autoridades do país tiveram na operação do Vélodrome d’Hiver. “A França, naquele dia, cometeu um ato irreparável. Falhou em cumprir sua promessa e entregou aqueles sob sua proteção a seus executores”, disse Chirac.

Em 2012, no 70º aniversário da operação Vél d’Hiv, o presidente François Hollande declarou que “um crime foi cometido na França, pela França”. Na mesma data, pela primeira vez, a Polícia Nacional francesa exibiu documentos que registraram de forma clara os detalhes administrativos dos acontecimentos. Durante décadas após a guerra, o acesso a esses arquivos foi restrito para evitar que viesse a público o papel da polícia durante o Holocausto. Pouco restou desse material, pois, numa tentativa de apagar o passado, o governo do pós-guerra determinou que fossem destruídos todos os documentos relacionados ao tratamento dado aos judeus durante a ocupação alemã.

A exposição “The Vél d’Hiv Roundup: The Police Archives” (O Cerco Policial de Vél d’Hiv: Arquivos da Polícia) incluiu listas de prisioneiros judeus, levantamento dos bens apreendidos, entre outros. Expôs, também, documentos com as diretrizes de 1946 para todos os prefeitos do país, que determinavam: “Não deve restar nenhum traço da lei de exceção instituída durante a ocupação e todos os documentos referentes à situação judaica devem ser destruídos”.

Desses documentos constou uma circular policial, amarelada, de nove páginas, classificada como secreta, que especificava que judeus não franceses eram o alvo da operação, homens entre 16 e 60 anos e mulheres de 16 a 55. “Crianças menores de 16 anos serão levadas ao mesmo tempo que seus pais”, informava o documento. E continuava: “As equipes encarregadas das prisões deverão agir o mais rápido possível, sem palavras desnecessárias e sem nenhum comentário... Além disso, no momento da prisão, os fundamentos ou a falta de fundamentos desta detenção não serão discutidos”.

A circular enfatizava, ainda, que “as janelas dos ônibus deveriam permanecer fechadas” ao transportar os prisioneiros. Um documento datado de 16 de julho de 1942 ressalta: “A operação contra os judeus está sendo desacelerada por uma série de casos excepcionais. Muitos homens deixaram suas casas ontem; mulheres ficaram com crianças muito pequenas; outros estão se recusando a abrir as portas – teremos que chamar um chaveiro”. Uma nota exposta na mostra informa que no dia 17 de julho uma enfermeira em Vél d’Hiv telefonou para a polícia pedindo “cobertores, bacias e tigelas, os quais eram muito necessários para os prisioneiros”. Este pedido prova que era sabido que as condições no local eram de extrema pobreza.

Também em exposição está uma nota datada de 21 de julho de 1942, cinco dias depois do início da operação, anunciando uma sinistra contabilidade: Homens: 3.118. Mulheres, 5.919. Crianças, 4.115. Total, 13.152 prisões”.

Em 2017, o presidente Emmanuel Macron foi mais longe que seus pares, reconhecendo a responsabilidade do Estado francês em relação àqueles eventos e ao Holocausto. E reafirmou condenar “todos os truques e subterfúgios daqueles que alegam que Vichy não era França…, mas era, de fato, governo e administração da França. Os crimes de 16 e 17 de julho de 1942 foram trabalho da polícia francesa, obedecendo ordens do governo… Nem um único alemão tomou parte”.

O velódromo Vel’ d’Hiv foi demolido em 1959. Em 1994, um memorial foi erguido para homenagear os judeus transportados de Paris para os campos de concentração durante a 2ª Guerra Mundial.

A operação Vél’ d’Hiv permanece como símbolo da culpa e da vergonha nacional francesa. Está gravada na memória nacional dessa nação como um símbolo de sua responsabilidade pelo Holocausto dos judeus na França.

BIBLIOGRAFIA

France Reflects on Its Role in Wartime Fate of Jews, artigo publicado pelo The New York Times por Scott Sayare em 28 de julho de 2012

Speech by the President of the Republic Emmanuel Macron at the Vel d’Hiv commemoration, artigo publicado pelo site https://www.elysee.fr/en/ em 18 de julho de 2017

Vél dhiv roundup, artigo publicado no site https://www.yadvashem.org/holocaust/france

The velodrome dhiver roundup, artigo publicado no site https://encyclopedia.ushmm.org/content