Julho de 1941, em um único dia, 1.600 judeus foram massacrados pela população da cidade polonesa de Jedwabne. Durante décadas, a autoria da tragédia fora atribuída às tropas nazistas que haviam invadido o país, mas a verdade surgiu após o lançamento de um livro, no ano passado.

Polônia, dia 10 de julho de 1941. Poucas semanas após a invasão do norte do país pelas tropas alemãs, os judeus da pequena cidade de Jedwabne foram massacrados. No entanto, ao contrário do que se acreditava até quase dois anos atrás, não foram exterminados pelos nazistas. Seus carrascos e executores foram seus vizinhos poloneses. Ao final do dia, o saldo era de 1600 mortes – ou seja, quase toda a população do vilarejo, com exceção de sete pessoas que conseguiram escapar da turba ensandecida.

Segundo uma das testemunhas, o calor estava sufocante naquele dia fatídico. A primeira vítima do massacre foi Joseph Lewin, de 16 anos, que morreu linchado. Em seguida, mais dois judeus foram jogados no rio; outros foram mortos a golpes de bastão ou punhal; outros torturados, tendo a língua cortada e os olhos furados. Bebês foram arrancados dos braços de suas mães e pisoteados até a morte enquanto elas também eram assassinadas. O rabino da cidade, de 90 anos, todo ensangüentado, foi obrigado a marchar pelas ruas do povoado, com outros judeus, carregando uma bandeira vermelha e cantando o refrão “Nós, judeus, somos responsáveis pela guerra”.

No final da tarde, aqueles que haviam sobrevivido, ainda que feridos, foram trancados em uma granja a poucos quilômetros do cemitério judaico. Em seguida, o local foi incendiado enquanto parte dos habitantes vigiava o portão para que ninguém escapasse. Para abafar os gritos aterradores das vítimas, os músicos do vilarejo foram chamados para tocar marchas alegres enquanto os judeus morriam. Durante vários dias, o cheiro de carne queimada impregnou o ar da região.

Apesar destes fatos terem sido narrados detalha-damente, em 1945, por Shmuel Wasserstein, um dos sobreviventes da tragédia, seu depoimento foi esquecido nos arquivos do Instituto Histórico Judaico de Varsóvia. Em 1949 e, posteriormente, em 1953, as autoridades comunistas condenaram cerca de 20 pessoas. Os réus foram libertados logo em seguida, pois o tribunal considerou que o massacre fora responsabilidade dos nazistas, apesar dos testemunhos de judeus e não judeus que afirmaram que os autores da chacina haviam sido os poloneses. Os alemães, segundo os depoimentos, limitaram-se a assistir e filmar o pogrom. Para ressaltar a culpa nazista, foi erguido um monumento em Jedwabne, perpetuando essa mentira.

Maiores detalhes sobre este que está sendo chamado de “O pogrom esquecido” estão na obra de Jan Tomasz Gross, Vizinhos: aniquilação da comunidade judaica de Jedwabne, lançada no ano passado na Polônia e nos Estados Unidos e, este ano, no resto da Europa. Historiador e sociólogo de origem polonesa, além de especialista em Segunda Guerra Mundial, o autor vive nos EUA desde 1968 e leciona na Universidade de Nova York.

A pergunta inevitável que surge, ao se ler a obra de Gross, é como a verdade pôde permanecer oculta por tantas décadas? Segundo o autor, ele próprio tinha dificuldade de acreditar que os fatos tivessem acontecido como haviam sido contados por Wasserstein, em seu depoimento em 1945. Gross teria despertado para o assunto há três anos, ao assistir um documentário da TV polonesa sobre a Segunda Guerra Mundial. Neste, uma mulher afirmava que as chaves da granja de seu pai, em Jedwabne, haviam sido roubadas e ela não imaginava o que lá teria acontecido. Este detalhe chamou a atenção de Gross, que decidiu visitar o local e pesquisar os fatos para descobrir a verdade. E assim fez.

A obra de Gross é a primeira sobre o fato ocorrido em Jedwabne, no dia 10 de julho de 1941; não é, no entanto, a primeira sobre o possível anti-semitismo do povoado. Em dezembro de 1966, um pesquisador do Instituto Histórico Judaico publicou um estudo sobre as inúmeras teorias acerca da atitude anti-judaica na região, no período de 1941 a 1942. Na obra, ele faz alusão à colaboração entre a população local e os alemães. Em 1980, um livro publicado nos Estados Unidos reunindo as lembranças dos judeus do povoado, menciona a tragédia daquele dia fatídico.


O debate está aberto

O lançamento do livro de Gross na Polônia desencadeou um debate sobre um tema bastante sensível. Para os poloneses, admitir a responsabilidade da população do vilarejo seria reconhecer a existência de sentimentos anti-judaicos na Polônia. Este é um tema não muito fácil de debater ainda hoje, mais de 50 anos após o final da Segunda Guerra Mundial, considerando-se que o país, durante o domínio nazista, foi palco das maiores perseguições aos judeus. A obra Vizinho: aniquilação da comunidade judaica de Jedwabne está levando o país a se confrontar com o seu passado, um passado doloroso, mas que se torna cada vez mais impossível de negar. Cerca de 3 milhões de judeus poloneses morreram durante o Holocausto e número similar de não judeus foi morto pelos nazistas.

“Nós temos a obrigação de honrar a memória das vítimas e estabelecer a verdade. Devemos confrontar os fatos obscuros de nossa história”, afirmou o primeiro-ministro polonês, Jerzy Buzek. Ao tomar conhecimento dos fatos, seu governo determinou que o monumento de Jedwabne fosse demolido. Um outro, reconhecendo a verdade sobre a participação da população do povoado, está sendo construído e deverá ser inaugurado provavelmente no próximo dia 10 de julho. As autoridades determinaram também o início de uma investigação sobre os fatos.

Segundo Buzek, não há dúvida sobre a participação da população local no massacre, mas o crime não foi cometido em nome da nação ou do estado polonês. “Nós rejeitamos o uso do caso de Jedwabne para divulgar uma falsa imagem sobre a co-responsabilidade polonesa em relação ao Holocausto. Não aceitamos também que todos os atuais habitantes do povoado sejam condenados por um crime ocorrido há 60 anos”. A maioria dos moradores de Jedwabne estabeleceu-se na cidade após a Segunda Guerra Mundial. Eles publicaram uma carta aberta condenando todas as atrocidades praticadas durante a guerra, mas ressaltando que a população atual não deve ser responsabilizada.

O prefeito de Jedwabne, Stanislaw Maichalowski, de 48 anos, disse que ouviu falar pela primeira vez sobre os acontecimentos de 1941, no povoado, quanto tinha 8 anos, mas nunca pensou sobre o caso até ler a obra de Gross. Desde então, vem afirmando que é preciso entender o que se passou, apesar de ser um processo doloroso. Esta não é, no entanto, a opinião geral vigente no vilarejo. Muitos moradores têm medo de falar sobre o assunto, recusando-se a falar com jornalistas. Maichalowski foi muito criticado por abordar o tema, até pelo bispo local, tendo recebido telefonemas anônimos. O silêncio tem sido a regra geral, mesmo entre aqueles que, no passado, ajudaram os judeus e foram condecorados. Ninguém quer identificar-se, por medo de represálias.

O livro tem sido alvo de debates e conferências em todo o país e o caso de Jedwabne foi tema de um documentário de televisão. No ano passado, o Instituto Nacional de Memória da Polônia começou uma investigação sobre o caso.

Quando perguntado sobre as razões que o levaram a lançar o livro primeiro na Polônia, Gross responde: “Quis dar tempo aos poloneses para que refletissem sobre esta página negra – e não é a única – da história do país”. Livre do regime comunista e de sua historiografia oficial, com uma Igreja mais crítica e menos poderosa do que no passado, a Polônia está aprendendo a se olhar nos olhos.

Em tempo

O presidente do Instituto Nacional Polonês de Memória, Leon Kieres, em visita a Yad Vashem (Israel) anunciou que a investigação relacionada com o massacre de judeus em Jedwabne deve ser concluída até o meio deste ano. Declarou também que os julgamentos deverão se iniciar “tão logo os promotores descubram que os criminosos acusados ainda estão vivos”, disse. “Mesmo que apenas um criminoso esteja vivo, ele será levado a julgamento”. De acordo com o presidente do instituto polonês, há vinte pessoas, entre judeus e não judeus, dispostas a depor no caso.

Ele explicou que o número de testemunhas que anunciaram que poderiam depor aumentou desde a publicação das investigações, na imprensa mundial.Os promotores responsáveis pelo caso ainda vão decidir se o julgamento será feito individualmente ou em grupo.


Bibliografia:
“O pogrom esquecido”, artigo publicado na edição de 12/04/2001 da revista L’Express
“Ghost of a Massacre”. Revista Time (edição européia).