Páginas que faltavam, dúvidas sobre a autenticidade dos documentos e briga pelo direito de exclusividade da publicação são alguns dos ingredientes do mais recente debate sobre o tema.

À primeira vista, parece difícil acreditar que um texto tão íntimo e pessoal, como o diário de uma adolescente, tenha-se tornado um dos principais documentos sobre o Holocausto.

A história de oito pessoas escondidas durante dois anos, em um refúgio secreto, uma história que não cita os horrores da guerra ou dos campos de concentração, retrata uma situação que se encontra ao alcance de nossa imaginação e compreensão. Anne Frank revestiu o Holocausto de uma face tangível e real, de uma dimensão humana com a qual é possível identificarse, apesar da dificuldade em lidar com a realidade e o horror da tragédia.

Traduzido para 56 idiomas, tema de várias adaptações cinematográficas e teatrais, o diário deu origem a um museu, o Centro Anne Frank, estabelecido em Nova York, e a uma fundação, sediada na Basiléia, que detém os direitos autorais do livro e recebe rendimentos por sua publicação.

Escrito há mais de cinqüenta anos, em sucessivas edições, cada uma com material complementar que havia sido omitido na anterior, acreditava-se que a "edição definitiva", de 1995, fosse completa. A recente descoberta da existência de páginas inéditas do diário representou uma surpresa inesperada e criou uma polêmica sobre a exploração financeira de sua publicação.

São cinco páginas de uma versão revista pela autora, censuradas pelo pai, Otto Frank, nas quais a jovem analisa o casamento supostamente infeliz dos pais e seu relacionamento difícil com a mãe, Edith, e promete manter o diário fora do alcance de sua família.

Biografia de Anne

Estas páginas foram entregues no ano passado a Melissa Muller, escritora austríaca que pesquisava para escrever uma biografia sobre a garota judia holandesa. Em seu novo livro – Anne Frank: The Biography, Melissa Muller inclui citações deste material inédito.

As páginas lhe foram entregues por Cornelius Suijk, íntimo de Frank e diretor do Centro Anne Frank, de Nova York. Suijk diz tê-las recebido de Otto Frank pouco antes de sua morte, aos 91 anos, em 1980. O pai de Anne as entregou ao amigo para que fossem usadas com a finalidade de provar a autenticidade do diário diante das acusações neonazistas de falsificação e porque acreditava que não devia manter o material em suas mãos. Porém, ao mesmo tempo, achava que a publicação dessas páginas, revelando fatos embaraçosos sobre a vida particular do amigo, poderia prejudicar sua imagem familiar.

As páginas estão sendo reivindicadas pelo Instituto Estatal da Holanda, para o setor de Documentação de Guerra, a quem Frank legou em custódia o material do diário. Este instituto pediu a Suijk que entregasse os papéis, mas ele exige o direito de lançar uma única publicação, seguindo assim a lei suíça. Seu objetivo é arrecadar fundos para o Centro Anne Frank de Nova York.

Por sua vez, a Fundação da Basiléia, detentora dos direitos autorais, critica Suijk por ter dado o material a Melissa, o que seria ilegal. Suijk acusa a Fundação suíça de acumular o dinheiro proveniente dos direitos autorais do diário (cerca de U$ 20 milhões de dólares) sem compartilhá-lo com as demais instituições que relembram Anne Frank, inclusive o centro que dirige, que também desenvolvem programas educativos sobre o Holocausto.

Na biografia, Melissa Muller levanta pela primeira vez a suspeita sobre uma faxineira, Lena Van Bladeren Hartog, que teria denunciado a família judia aos alemães. De acordo com a escritora, a mulher nunca foi interrogada pela Justiça sobre a descoberta do esconderijo dos judeus no prédio.

Melissa, ao procurar Suijk, obviamente não tinha idéia do segredo que este guardava. Apenas queria obter informações sobre a mãe de Anne, a respeito de quem a adolescente pouco escreveu: "Era como se Anne não tivesse mãe", afirmou.

Páginas censuradas

Após onze meses de contato com Melissa, Suijk decidiu falar-lhe sobre as páginas que estavam faltando: duas folhas azuis – uma escrita em frente e verso, outra só na frente – e uma folha salmão escrita dos dois lados.

Na biografia, Melissa revela que Frank estava apaixonado por outra mulher, jovem e rica, cujos pais não concordaram com o casamento por motivos financeiros. Isso o tornou incapaz de amar Edith, como Anne percebeu muito bem.

"Para uma mulher apaixonada, não deve ser fácil saber que nunca ocupará o primeiro lugar no coração de seu marido, e mamãe sabe disso"... "Papai aprecia mamãe e a ama, mas não com o tipo de amor que eu imagino para um casamento". E ainda conclui que o pai se casou com a mãe porque "considerou que era a pessoa certa para ser sua mulher". "Admiro minha mãe pela maneira como ocupou esta posição sem uma queixa e sem ciúme... Papai não está apaixonado, ele a beija do mesmo jeito que nos beija …".Sobre a mãe, diz, ainda: "É possível que por causa do seu grande sacrifício, minha mãe tenha-se tornado dura e desagradável em relação ao ambiente e, em conseqüência disso, cada vez mais se fechará ao amor e cada vez menos conquistará admiração e papai acabará entendendo que, por ela nunca ter exigido seu amor total, foi-se desintegrando aos poucos por dentro. Ela o ama mais do que qualquer outra pessoa e é difícil ver este amor não correspondido".

Quanto ao seu relacionamento com a mãe, descreve um silêncio quase de estranhas: "Sou incapaz de conversar com ela, não consigo olhar com amor naqueles olhos frios, nunca! Se ao menos ela tivesse algum aspecto de uma mãe compreensiva, como ternura, bondade ou paciência, continuaria tentando aproximar-me dela. Mas à medida que o tempo passa, sinto-me cada vez mais incapaz de amar esta natureza insensível".

Base para um livro

Anne sempre considerou o diário como um projeto para o futuro. "Meu maior desejo é tornar-me jornalista e, futuramente, uma escritora famosa... Depois da guerra, gostaria de publicar um livro chamado O anexo secreto e meu diário poderá servir como base".

Anne redigiu suas memórias entre os 13 e os 15 anos, no período de 1942 a 1944. O diário, na realidade, é uma série de cadernos e páginas soltas. O primeiro – um caderno especial para diário, com capa de tecido xadrez vermelho e verde, com um fecho – Anne recebeu de presente pelo seu 13° aniversário, em 12 de junho 1942, um mês antes que a família fosse para o esconderijo. Em seis meses, suas páginas tinham sido totalmente preenchidas e Anne passou para um segundo caderno, que se perdeu, e, em seguida, mais dois. Estes ficaram conhecidos como a versão "A" do diário.

Depois de ouvir em 1944 um apelo pelo rádio, incitando os cidadãos a preservar qualquer documento contendo história e memória de guerra, Anne, em dois meses e meio, revisou fervorosamente seu diário, reescrevendo 324 páginas, talvez como base para um romance. Esta ficou conhecida como a versão "B".

A folha salmão encontrada agora foi a revisão de Anne de uma introdução para o diário. Nela, diz: "Vou tomar cuidado para que ninguém ponha as mãos nele, porque o diário e os segredos aí contidos não são da conta deles", referindo-se aos pais e à irmã. Depois que o anexo foi invadido pela polícia, em agosto de 1944, o material escrito por Anne fora guardado corajosamente por uma secretária e amiga que morava no andar de baixo, Miep Gies, hoje com 89 anos.

Após ter sido libertado do campo de concentração, Frank voltou para Amsterdã e soube que Anne e Margot tinham morrido de tifo no campo de Bergen-Belsen, a poucas semanas da libertação. Nesta ocasião, Miep lhe entregou os diários.

Frank liberou para a primeira publicação a versão "B", com muitas modificações, sob o título Anne Frank: diário de uma jovem. Esta ficou conhecida como a versão "C". Nela, o pai da adolescente suprimiu todas as passagens constrangedoras em que ela abordava o despertar de sua sexualidade e criticava abertamente a mãe ou questionava o relacionamento afetivo dos pais.

Edição definitiva

Em 1986, o Instituto da Holanda para a Documentação de Guerra, detentor da custódia dos diários, publicou a chamada "edição crítica", comparando as versões baseando-se em uma análise científica para refutar as alegações de que fossem uma falsificação.

Uma nota de rodapé da versão "A" reconhecia a omissão, a pedido da família, de 47 linhas que apresentavam "um quadro bastante impiedoso e particularmente injusto do casamento dos seus pais".

Já em 1995, em memória do 50° aniversário da morte de Anne, foi lançada a chamada "edição definitiva ", incluindo 30% a mais de material do que Frank havia permitido na versão "C", a primeira publicada. Mas faltavam nesta "edição definitiva" os trechos contidos nas páginas que apareceram recentemente.

A editora diz estar "confusa e perplexa", porém qualquer providência para a reedição do livro com o material omitido teria que aguardar por uma resolução das questões jurídicas, pois a editora não pretende arcar com uma despesa extra referente a direitos autorais. Já o Instituto para a Documentação de Guerra afirmou estar programando uma nova edição muito importante, que deverá incluir o material recentemente descoberto.

Autenticidade em xeque

Segundo a doutora Dina Porat, professora da Universidade de Tel Aviv, é inevitável que a repercussão mundial alcançada pelo diário o tenha tornado alvo de ataques de neonazistas e anti-semitas que põem em discussão sua autenticidade. Os revisionistas alegam que, por a obra terminar necessariamente no momento em que a família Frank é descoberta e obrigada a sair do seu esconderijo, não fala de guetos ou de campos de concentração, por isso o assassinato sistemático do povo judeu não teria ocorrido. Outros dizem que o diário é falso, tendo sido escrito por Frank, e justificam sua afirmação pelo fato de terem sido lançadas várias versões ao longo dos anos. Vale mencionar o caso particularmente sórdido da publicação, na Suécia, de um panfleto que parodiava o diário de forma pornográfica.

Não cabe aqui refutar os argumentos sem nexo nem lógica destes paranóicos, que foram sempre denunciados e condenados judicialmente.

Interpretação simplista

O sucesso do diário deve-se, em parte, a uma frase que recebeu interpretação errônea e que supõe que Anne esteja perdoando seus carrascos. Tanto a versão teatral como o filme terminam com o trecho "Apesar de tudo, continuo acreditando na bondade intrínseca do homem". O destaque dado a estas palavras e seu uso fora de seu contexto parece mais uma busca ingênua de um "final feliz", absolutamente fora de lugar.

Anne escreveu esta frase antes de ser deportada para Auschwitz e Bergen–Belsen, quando desconhecia a realidade do Holocausto. Portanto, está sendo usada de forma indevida com a finalidade de criar um paradigma ingênuo de perdão e reconciliação.

Como seria esperado, esta adolescente tinha sentimentos variados, em diversos momentos. Também referiu-se aos nazistas com frases como "os monstros mais cruéis na face da terra", ou "há nas pessoas uma compulsão destrutiva para a raiva, o homicídio e o assassinato" e "os piores aspectos da natureza humana prevalecem quando todo mundo começa a duvidar da Verdade, da Justiça, de D’us."

Afirmar que Anne Frank perdoou por acreditar na bondade inerente ao ser humano é um insulto à sua memória e uma exploração de sua tragédia para justificar a incapacidade do ser humano de lidar com o verdadeiro horror que prevaleceu. Com este procedimento, corre-se o risco de infantilizar a compreensão do Holocausto e de profanar a memória das gerações que não se materializaram e que nunca virão a se materializar.

Bibliografia

Blumenthal, Ralph, Páginas inéditas de Anne Frank causam polêmica, The New York Times, Estado de São Paulo, 12/09/98
Sommer, Allison Kaplan, La negation de l’indeniable, Jerusalem Post, Edition Française, 23/07/97
Berkovic, Sally, How should we remember the Holocaust