Eva Geiringer Schloss conheceu de perto o inferno. Ainda adolescente, foi capturada e transportada para Auschwitz-Birkenau, teve melhor sorte que Anne Frank e conseguiu sobreviver à 2ª Guerra. Escreveu dois livros e uma peça de teatro relatando suas experiências. Hoje mora em Londres e se dedica a perpetuar a memória do Holocausto.

INFÂNCIA NA ÁUSTRIA

Nascida em Viena em 11 de maio de 1929, Eva tinha apenas 16 anos de idade quando, em 1945, deixou para trás o portal do campo de Auschwitz-Birkenau, a entrada que se transformaria no maior símbolo do Holocausto. Como tantos outros judeus, era um esqueleto com o olhar perdido de um fantasma, circulando sem rumo entre soldados soviéticos. Havia passado lá nove meses.

A intensa biografia de Eva poderia ter permanecido anônima, como a de tantos outros sobreviventes, não fosse um fato : encerrada a 2ª Guerra Mundial, o pai de Anne Frank, Otto, havia-se casado com Fritzi Geiringer, mãe da Eva. A partir daquele momento, ela passava a ser irmã postiça de Anne.

Morava já em Londres quando, numa tarde de 1986, um casal de amigos (que também havia migrado para a capital inglesa) pediu-lhe que relatasse a vida dos judeus que haviam ficado no velho continente, entre 1939-1945. À medida que a conversa fluía, os presentes iam ficando cada vez mais horrorizados com o sofrimento imposto pelos nazistas aos judeus, na Europa conquistada.

Durante todo o encontro, o marido de Eva, Zvi Schloss, escutava atônito o relato de sua esposa. Ao finalizar a conversa, os quatro judeus choravam copiosamente. Todos convenceram Eva a colocar suas experiências em um livro. A obra, publicada em Londres em 1988, foi intitulada “Eva´s Story” (A História de Eva) e já conta com traduções para oito idiomas. Com o passar do tempo, o livro ganhou uma nova versão adaptada para crianças, sob o título “The Promisse” (A Promessa), com um relato menos traumático e menos cruel das vivências experimentadas nos campos de concentração e extermínio.

“A História de Eva” narra o destino trágico de uma das tantas famílias judias sob ocupação nazista. Eva teve uma infância feliz em Viena, junto a seus pais Erich e Fritzi e seu irmão, Heinz. Os Geiringer viajavam com freqüência à montanha, ouviam as músicas de Schubert e sempre guardavam o Shabat, à luz das velas. Mas, de repente, nuvens negras anunciam um futuro incerto para os judeus austríacos. Diariamente, a rádio local trazia notícias relacionadas ao clima hostil que imperava na Alemanha, após a ascensão de Hitler ao poder, em janeiro de 1933. Como sempre aconteceu em nossa história, os judeus foram os primeiros alvos do Führer.

Entre 1933 e 1935 leis discriminatórias de todo tipo foram aprovadas, com a maior facilidade, pelo Parlamento alemão. As “Leis de Nürenberg”, de 15 de setembro de 1935, destinadas a “proteger a pureza do sangue ariano”, oficializavam uma luta declarada do Terceiro Reich contra os judeus. Entre outros, a partir dessa data os judeus não mais poderiam casar-se com arianos, não mais poderiam portar as cores do país nem fazer uso diário dos símbolos do Reich alemão. Os transgressores seriam punidos com multas, prisão ou inclusive deportação para campos de trabalho forçado.

Pouco antes de Eva completar nove anos, em 13 de março 1938, os nazistas anexaram a Áustria. Tropas alemãs entraram no pais sem encontrar resistência. O sucesso da Anschlüss (anexação) fez com que os austríacos se rendessem a Adolf Hitler. A população de Viena recebeu o Wehrmacht com os braços levantados, em sinal de saudação a Hitler. A situação foi piorando gradualmente para os judeus; poderiam trabalhar apenas em empresas e companhias judias, tendo muitos deles perdido seus empregos. A humilhação nas ruas era diária.

A situação nas diferentes escolas austríacas não era diferente. Importado diretamente da Alemanha, toda a “ideologia” do antissemitismo nazista tomou conta das redes educacionais. No colégio, um colega de turma aponta o dedo para Eva e a acusa de “não pertencer à sociedade”. A pequena Eva, perplexa, chega em casa e pergunta: “O que significa não ser parte da sociedade? ”. Obviamente não houve uma resposta clara por parte dos pais, mas ela logo entenderia o que aquilo significava.

Emigrar ficou cada vez mais difícil uma vez que também era extremamente difícil e complicado obter vistos de entrada a outros países; e os judeus que conseguissem deixar a Áustria eram obrigados a perder grande parte do patrimônio.

ENTRE BRUXELAS E AMSTERDÃ

Enquanto ainda era viável, Fritzi Geiringer e seus dois filhos mudaram-se para Bruxelas, na Bélgica. De lá, Erich viajou a Amsterdã para montar uma fábrica de sapatos e preparar, para breve, a mudança de toda a sua família. Foram anos difíceis, caracterizados pela dor da separação familiar e da incerteza, tendo que aprender novos idiomas e se adaptar rapidamente ao novo ambiente.

Eva conta que os pais fizeram o impossível para manter forte o espírito de seus filhos e protegê-los dos males que porventura os ameaçassem. Já reunida em Amsterdã, a família Geiringer se estabeleceu em Mewerdeplein, um enorme conglomerado de apartamentos de classe média. Lá, Eva foi bastante feliz e cultivou novas amizades. Entre suas amigas, havia uma menina de nome Anne que, mesmo sendo mais jovem, tinha a maturidade e aparência de alguém com vários anos a mais. Tratava-se de Anne Frank (1929-1945), autora do famoso “Diário”.

Em seu recente livro de memórias, Eva Schloss registra parte do perfil da Anne: “Eu era ainda uma criança. Já a atitude de Anne era a de uma adolescente: lia revistas e se interessava por meninos e roupa. Ela era o verdadeiro centro das atenções onde quer que estivesse”. A mãe de outra amiga de Eva e Anne relembrou a postura de outra maneira: “D’us tudo sabe, mas Anne sabia tudo, mais e melhor”.

Da época em que viveu em Amsterdã, Eva guarda um carinho especial por Otto Frank. Para ela, “Anne herdou todo o carisma e o carinho que caracterizavam seu pai. Ao saber que me resultava difícil falar holandês, Otto se dirigia a mim em alemão”.

Durante a 2a Guerra Mundial, os judeus de Amsterdã alimentavam esperanças de que os holandeses os protegeriam dos alemães. E, mesmo sabendo que eles resistiram mais que em outros países invadidos, essas esperanças se estilhaçaram, de uma vez só, ao som dos bombardeios dos aviões da Luftwaffe.

Hoje pairam dúvidas sérias sobre a atitude supostamente benevolente dos holandeses em relação aos judeus que viviam em seu país. Em palestra que tive a oportunidade de assistir em São Paulo, a Sra. Nanette Koenig (também colega de turma de Anne Frank), chegou a afirmar que os holandeses jamais ajudaram os judeus. Na verdade, tudo não passa de um mito. Inclusive, em 1940, o prefeito de Amsterdã chegou a entregar aos invasores alemães plantas das moradias de judeus, facilitando a localização de seus esconderijos com maior facilidade. Os cidadãos holandeses não ajudaram; o que fizeram foi “entregar os judeus” aos nazistas. Na primeira metade de 1940, com a invasão da Holanda, os Geiringer não conseguiram mais ocultar a realidade a seus dois filhos, Eva e Heinz, do que era ser judeu numa Europa dominada pelos nazistas. Os judeus eram atacados nas ruas da capital. Vários desapareciam de sua residência na calada da noite. Também circulavam entre os membros da comunidade judaica de Amsterdã os primeiros boatos acerca das atrocidades nos campos de concentração nazistas.

Ao chegar uma ordem oficial para que Heinz fosse deportado a um campo de trabalho, a família Geiringer se divide: o pai, Erich, e seu filho, Heinz, foram acolhidos por uma família nos campos que cercavam a cidade, enquanto Fritzi e Eva ficaram sob a proteção de uma conhecida, na cidade de Amsterdã.

Naquele preciso momento da separação, Erich proferiu uma frase marcante sobre o destino dos judeus, frase que ficaria guardada para sempre na memória de Eva: “Meus filhos, asseguro-lhes que tudo aquilo que vocês fizeram em vida deixará suas pegadas neste mundo e nada se perderá. Os atos de bondade continuarão na vida daqueles com quem vocês interagiram. Tudo está conectado como uma cadeia que jamais poderá ser quebrada”.

A CHEGADA AO INFERNO

Os alemães vieram buscar Eva Geiringer e sua mãe Fritzi em 11 de maio de 1944, justamente no dia do aniversário de 15 anos de Eva. Na prisão se reencontraram com Erich e Heinz que também haviam sido detidos pela Gestapo. Juntos, os quatro viveram uma espera angustiosa de vários dias. Já não havia como continuar a proteger seus entes queridos. Erich dedicou esses dias a ministrar à sua família algumas aulas de sobrevivência básica: tratar de se manterem limpos, serem fortes enquanto fosse possível e se ajudarem mutuamente nas horas mais difíceis. Anos mais tarde, ao comentar essas verdadeiras liçoes do pai, Eva dizia: “Que pouca idéia tinha papai do impossível em que tudo isso resultaria”.

A saga da família Geiringer é hoje conhecida. Foram três dias de viagem, sem água nem alimento, nos famigerados comboios para transporte de gado. Ao chegar ao campo de Auschwitz, aguardava-os a ordem perversa: “Quem não tiver forças para chegar daqui até lá, poderá fazer o percurso em caminhões”. Quem aceitou essa hipócrita oferta e se despediu de seus familiares pensando reencontrá-los depois, jamais o conseguiria. Foram todos levados diretamente às câmaras de gás.

Mutti” - forma carinhosa como Eva chamava a sua mãe -, a obrigou a vestir seu casaco e seu chapéu, ao descer do caminhão. Eva não queria, pois tudo ficava enorme nela e fazia muito calor. Hoje, Eva Geiringer Schloss acredita que essas roupas lhe salvaram a vida: ela não foi selecionada para morrer com as outras meninas judias, uma vez que os alemães lhe davam mais idade do que realmente tinha.

O relato emocionado da adolescente Eva lembra outros relatos de sobreviventes, tais como Victor Frankl e Elie Wiesel. A mãe Fritzi havia conseguido para a filha certas “regalias” que faziam uma enorme diferença para uma adolescente: os alemães não haviam cortado seus cabelos louros como às outras prisioneiras, a tatuagem no braço com o número de prisioneira era bem menor e o trato menos selvagem. No entanto, nada impediu a fome e a humilhação, muito menos que tivesse que desfilar nua na frente dos oficiais nazistas responsáveis pelo campo. Nada impediu o congelamento durante a contagem de prisioneiras, nas primeiras horas da madrugada. Aqueles privilégios não eram vacinas contra tifo, nem amenizavam tarefas indesejadas como limpar latrinas sujas ou tantos outros castigos aplicados, sem piedade, aos prisioneiros do campo.

O pior dia da vida de Eva Geiringer Schloss ainda estava por chegar. Sua amada mãe, já esquelética, foi selecionada para as câmaras de gás. Eva se despediu dela com lágrimas nos olhos sem poder fazer absolutamente nada. Três meses depois, Eva soube que “Mutti” continuava viva. Uma pessoa com bons contatos na alta cúpula nazista havia interferido a seu favor.

Doentes e agonizantes, Eva e Fritzi se encontraram quando as tropas soviéticas libertaram Auschwitz-Birkenau, em 1945. Na ocasião, soldados russos demonstraram atos de humanidade depois de muitos anos.

REENCONTRO COM OTTO FRANK

Após a guerra, mãe e filha retornaram a Amsterdã, cidade onde encontraram Otto Frank (1889-1980), pai de Anne. Otto havia perdido toda sua família nos campos e vivia na solidão. Uma forte amizade nasceu entre Fritzi e Otto, amizade que logo se transformou em algo mais profundo.

Fritzi acompanhou Otto Frank na publicação e divulgação do “Diário” de sua filha. O “Diário de Anne Frank” tornou-se uma verdadeira raison d´êtrepara Otto, um pai cuja vida passou a girar em torno da difusão desta obra clássica da 2a Guerra Mundial e do Holocausto.

Para Eva Schloss, “Otto foi um homem especial e um avô carinhoso para suas três filhas”. Mas, confessa que a primeira vez que teve a oportunidade de ler o “Diário de Anne Frank” chegou a pensar: “Por que tanto barulho com Anne, se eu vivi exatamente o mesmo sofrimento?”. De qualquer forma, ela também colaborou no texto de uma peça de teatro que entrecruza suas histórias com a de tantas outras crianças judias durante a 2ª Guerra. Sua vivência hoje é transmitida às novas gerações nas escolas de todos os países do mundo.

A 2ª Guerra Mundial terminou e Eva Geiringer Schloss conviveu com o fato de que muitos dos carrascos nazistas ficaram impunes, andando livremente pelas ruas. Mesmo assim, nunca pensou em fazer justiça com as próprias mãos. “A vingança não está dentro de mim. Durante tantos anos de humilhação me converti num ser tímido e temeroso. Minha recuperação não foi fácil e demorou bastante”.

Eva é uma vencedora. Casou, teve filhos formando uma linda família, algo que sempre sonhou na solidão de Birkenau. Com os olhos marejados, ela confessa: “Meu pai tinha razão: Fazemos parte de uma cadeia que continua, e isso é o que dá sentido à minha vida”.

Há quase uma década, Eva Geiringer Schloss visitou Buenos Aires. Foi a convidada de honra nas comemorações do primeiro aniversário de uma importante instituição, inaugurada em 2009, o “Centro Anne Frank”. Sua tarefa de perpetuar a memória do Holocausto apenas começava.

Certa vez, Eva Schloss foi entrevistada por um jornalista que lhe perguntou sua opinião sobre a proliferação de grupos neonazistas na Europa e no mundo. Ela respondeu: “Há pessoas que acreditam que o Holocausto é uma invenção ou que não é tudo o que dizem. É por isso que relatos como o meu são importantes e, cada vez mais, já que em breve não restarão mais vítimas para contar o que vivenciaram”.

O mais importante entre os valiosos ensinamentos que Eva Schloss nos legou é que cabe a todos continuar a manter viva a memória da Shoá, do sofrimento de nosso povo, para que a História não venha a se repetir. Somente assim, poderemos todos começar a sonhar com um mundo melhor.

BIBLIOGRAFIA

Eva Schloss, Eva´s Story. London 1986. Tradução ao português: A História de Eva. Editora Record. São Paulo 2010.

Eva Schloss & Bárbara Powers, The Promise. Penguin United Kingdom, 2006. Tradução ao português: A Promessa: A comovente história de uma família no Holocausto.

Eva Schloss, Tantas veces me mataron. Revista Viva - La Revista de Clarín. Domingo 30 de maio de 2010, págs. 46-52.

Uma viagem ao mundo de Anne Frank. Morashá 54, Ano XIV, setembro 2006, págs. 50-56.

 

Prof. Reuven Faingoldé historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.