Em junho de 1945, um mês depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o soldado raso americano Richard Sonnenfeldt, de 22 anos, prestava serviço na Áustria, engajado no Sétimo Batalhão do Exército Aliado. Certa manhã foi convocado por um tenente que lhe disse: "Apronte-se, praça, o general quer Falar consigo". A partir daquele momento, o jovem combatente judeu, nascido na Alemanha, saiu do anonimato para ter seu nome inscrito na história como o principal intérprete do tribunal de Nuremberg.

O rapaz foi ao encontro do famoso general William “Bill” Donovan, que, depois de sucessivos êxitos nos campos de batalha, era o diretor da OSS (Sigla correspondente ao Departamento de Serviços Estratégicos, antecessor da CIA). Sonnenfeldt escreveu em suas memórias: “Eu imaginava o mítico Bill assim como uma espécie de John Wayne, com medalhas no peito e revólver na cintura. No entanto, deparei-me com uma pessoa de cabelos grisalhos, afável, simples, que me perguntou se eu falava alemão e se eu seria capaz de me desincumbir como intérprete. Respondi que o alemão era meu idioma nativo. Deu-me, então, um documento em alemão e me mandou traduzir. Quando terminei, disse que eu era o melhor de todos que até então tinha entrevistado”. Em seguida, Sonnenfeldt foi encaminhado a um coronel chamado Hinkel, que foi direto ao ponto: “Você gostaria de trabalhar para a OSS?” Poucos dias depois, acompanhado pelo dito coronel, estava a bordo de um avião rumo a Paris. Durante a viagem, ficou surpreso com as próprias contas que fez: eram decorridos apenas sete anos desde que deixara a Alemanha para escapar do nazismo.

Heinz Wolfgang Richard Sonnenfeldt nasceu em 1923 na pequena localidade alemã de Gardelgen, Saxônia, cidade que pouco antes do fim do conflito foi palco de um massacre perpetrado pelas tropas SS contra mais de mil estrangeiros submetidos a trabalhos escravos. Quando o pequeno Richard completou quinze anos de idade, embora as leis antissemitas do Reich se avolumassem, a mãe decidiu mandá-lo, junto com o irmão menor, Helmut, para Berlim, para que, como disse, “pudessem viver o clima de uma cidade grande”. Mas, a capital alemã seria apenas um pouso, porque quando a guerra começou, a mãe contatou um parente na Inglaterra e pediu-lhe que acolhesse os dois filhos. Em Londres, ambos foram matriculados num internato, onde Richard se tornou fluente no idioma inglês. Entretanto, sua vida pacata sofreu um revés. Em 1940, quando a Inglaterra rompeu relações e entrou na guerra contra a Alemanha, ele acabara de completar dezesseis anos. Por isso, de acordo com as leis britânicas, passou a ser considerado um “inimigo estrangeiro”. Portanto, devia ser expulso do país. Revoltado e destacando sua condição de judeu, escreveu cartas para o primeiro-ministro Churchill e para o Rei George VI pedindo que fosse reconsiderado seu mandado de expulsão. Inclusive acrescentou que, assim como os ingleses, seu desejo era lutar contra o nazismo. Não adiantou e o rapaz foi deportado para a Austrália. Enquanto isso, o casal Sonnenfeldt conseguiu custosos vistos para sair da Alemanha, via Suécia, junto com o filho Helmut. Rumaram para Baltimore, nos Estados Unidos, após obterem a indispensável carta de chamada emitida por uma família americana que vagamente conheciam.

Richard Sonnenfeldt ficou pouco tempo na Austrália. Decidiu viajar para a Índia e se fixou na cidade de Bombaim (atual Mumbai). Ali, conforme escreve em suas memórias, viveu um tempo feliz, sobretudo por ter feito amizade com uma família Parsi, oriunda da Pérsia, seguidora da doutrina de Zoroastro, e com um grupo de jovens judeus alemães que também tinham emigrado para aquelas paragens. Certo dia, como nada tinha a perder, dirigiu-se ao Consulado americano. Ele conta que quando entrou naquele prédio, viu uma pequena placa onde se lia: Air Conditioned by Carrier. Ficou maravilhado. Nunca tinha visto na vida um aparelho de ar condicionado. Foi recebido pelo simpático vice-cônsul Wallace La Rue que lhe informou que, naquele então, ainda havia cotas disponíveis para imigrantes alemães e pediu-lhe uma certidão de nascimento. Richard não tinha, mas enfatizou que seus pais já estavam em Baltimore a chamado de uma família de nome Lansbury. Por incrível coincidência, o diplomata, que era de Baltimore, conhecia os Lansbury e, após algumas formalidades burocráticas, concedeu-lhe o visto. Richard pensou em embarcar num navio que faria escala em Yokohama, no Japão, e dali navegaria para a costa oeste dos Estados Unidos. Porém, a perspectiva de parar no Japão não o entusiasmou. Já pairava a perspectiva de os japoneses entrarem em guerra contra os americanos. Embarcou em outro navio que fez escala na África do Sul, tendo como roteiro a Jamaica, Trinidad-Tobago e, por fim, Nova York.

Nos Estados Unidos, em 1942, Sonnenfeldt pretendeu alistar-se no exército, mas foi recusado por não ser cidadão americano. Entretanto, foi convocado em novembro do ano seguinte e mandado para um centro de treinamento em Fort Meade. Dali seguiu para outro centro de treinamento na Flórida. Para encurtar a história, Richard estava engajado em definitivo como soldado raso no exército americano em ação na Europa. Participou da feroz Batalha das Ardenas e, mais tarde, foi um dos primeiros militares que libertaram o campo de concentração de Dachau. A imagem de cadáveres empilhados e de pessoas esqueléticas e famintas nunca mais lhe saiu da memória.

Voltemos a seu voo para Paris. Depois de descer no aeroporto de Le Bourget, foi conduzido para uma mansão no número 7 da rua Pressbourg, perto do Arco do Triunfo, que seria seu local de serviço durante os meses seguintes. Sua tarefa consistia em analisar pilhas e mais pilhas de documentos escritos em alemão e assinalar as passagens que julgasse importantes para serem usadas no futuro tribunal de crimes de guerra. Além disso, em face dos documentos apreendidos, ele deveria apontar quais os nazistas passíveis de serem levados a julgamento, tendo encontrado mais de 800 nomes. Os soviéticos davam preferência a Berlim para a sede do tribunal que seria instalado. Isto provocou discussões acaloradas com os russos. Um dia, já impaciente, Robert Jackson, promotor-chefe dos Estados Unidos, explodiu: “Então vocês julgam os seus criminosos em Berlim e nós julgaremos os nossos aonde decidirmos!” A escolha acabou sendo a cidade de Nuremberg porque ali se encontrava quase intacto o Palácio da Justiça, capaz de ser reformado a tempo do início dos julgamentos e também porque a cidade havia sido o local de sucessivas demonstrações do partido nazista. No final de julho de 1945, a equipe de promotores americanos, incluindo Sonnenfeldt, embarcou num voo de Paris para Nuremberg.

Richard jamais se esqueceu de ter avistado do alto o estádio da cidade, cenário das monumentais manifestações empreendidas por Hitler e seus comparsas. Também do alto ele pôde observar que a cidade estava quase toda destruída. Em solo, viu centenas de alemães que vagavam pelo pouco que restava das ruas, em andrajos, e sem quaisquer expressões em suas fisionomias. Do jipe aberto, jogou fora o cigarro que acabara de fumar e logo viu um bando de mulheres correndo para disputar o resto do cigarro, para elas uma preciosidade.

Sonnenfeldt foi acomodado numa instalação provisória onde se encontravam as celas destinadas aos futuros interrogatórios e foi encaminhado para um escritório exclusivo. Escreveu: “Incrível! Eu tinha apenas 23 anos de idade e era mais jovem do que a maioria das secretárias ali em serviço”. Ele soube que seu primeiro trabalho como intérprete seria no interrogatório do marechal Goering, braço direito de Hitler quase até o fim do conflito. Ficou impressionado quando este ficou à sua frente. Vestia um uniforme de cor cinza do qual haviam sido retiradas as insígnias militares. Exibia uma face amassada e enrugada e um olhar esgazeado, consequência dos quarentas comprimidos que ingeria por dia, destinados a substituir seu vício pela morfina. Vestia botas fornecidas pelo exército americano. O inquisidor era um coronel chamado Amen, que, conforme o protocolo, ordenou que Richard fizesse um juramento segundo o qual traduziria fielmente as perguntas e respostas a serem feitas do inglês para o alemão e do alemão para o inglês.  Sua primeira intervenção: “Por favor, identifique-se”. Resposta: “Meu nome é Herman Goering, marechal do Terceiro Reich”. Em seguida, o intérprete dirigiu-se ao prisioneiro: “Herr Gering!...” O marechal objetou: “Meu nome é Goering e não Gering”. Sonnenfeldt havia distorcido o sobrenome de propósito porque o vocábulo alemão gering tem a tradução aproximada de “coisinha”. Num interrogatório subsequente, Goering fez de tudo para eximir-se de culpa, declarando: “Muitas coisas foram feitas usando meu nome e sobre as quais eu não tenho a menor ideia. Hitler não sabia sobre os campos de concentração e nem sobre os extermínios. Quanto a mim, embora algo chegasse aos meus ouvidos, passei toda a guerra como principal assessor de Hitler. Era um militar muito ocupado e muito importante. Duas pessoas sabiam de tudo: Himmler e Bormann. Um morreu e outro desapareceu”. O coronel Amen fez uma pergunta que o deixou sem resposta: “Se você era tão próximo de Hitler como sabia de algo e esse algo nunca chegou ao conhecimento do Fuhrer?”

O general Bill Donovan fazia questão de que Goering confessasse os crimes de guerra do nazismo, mas o acusado permanecia inamovível nesse sentido. O general pediu-me que lhe perguntasse se era verdade que ele tinha mandado matar os aviadores americanos e ingleses que tivessem sido obrigados a saltar sobre o território alemão. Goering respondeu: “Eu não admito isso”. Richard traduziu: “Eu não concordo com isso”. Donovan, que tinha algum conhecimento do idioma alemão, chamou a atenção do intérprete: “Você traduziu errado. Ele disse que não admite isso”. Temeroso, por ser apenas um soldado raso, Richard argumentou que no sentido da frase, o verbo concordar era mais preciso do que o verbo admitir. Com um sorriso irônico, e para fustigar o intérprete, Goering falou em inglês; “O que eu disse, foi: eu não admito isso”. A propósito desse tipo de controvérsia, Sonnenfeldt escreveu em suas memórias: “Um trabalho de intérprete de alta qualidade não era uma coisa automática. Na verdade, a ida e volta das perguntas e respostas beneficiavam os acusados porque enquanto se processavam as traduções, eles tinham tempo para pensar nas respostas”. Em outra ocasião, o próprio Jackson interrogou Joachim von Ribbentrop, que servira como ministro das relações exteriores do Terceiro Reich. O promotor-chefe perguntou-lhe se era verdade que ele havia proibido a concessão de passaportes e de vistos de saída para judeus da Alemanha. Antes que Ribbentrop pudesse ouvir a tradução, Richard passou uma nota por escrito para Jackson: “O responsável por isso era Himmler e não ele”. Assim evitou que Jackson deixasse registrada uma pergunta impertinente.

No curso dos interrogatórios preliminares, antes do início dos julgamentos, Richard Sonnenfeldt foi incumbido de chefiar todos os demais intérpretes lotados em Nuremberg. Mas, como seu status militar era nada expressivo, foi exonerado do exército e, no mesmo ato, contratado como civil a serviço das forças armadas dos Estados Unidos com salário equivalente ao de um coronel. Dessa maneira, poderia se relacionar com mais desenvoltura com os oficiais superiores.

No dia 19 de outubro de 1945, Sonnenfeldt foi convocado para apresentar-se no escritório de um dos principais promotores americanos, o coronel Williams. Para sua surpresa, deu de cara com mais de uma dezena de oficiais de alta patente num ambiente solene.

O coronel ordenou que fizesse um novo juramento de lealdade. A partir daquele momento, o civil Richard Sonnenfeldt estava enquadrado na equipe da promotoria americana que atuaria no Tribunal de Nuremberg. Nessa função, competiu-lhe percorrer as celas dos prisioneiros, chamá-los um por um e ler para todos as acusações que lhes competiam. O texto comum era o seguinte: “Pesa-lhe a acusação de ter cometido crimes contra a paz, crimes de guerra, conspiração para violências, crimes contra a humanidade e genocídio”. Goering foi o primeiro. Antes que Sonnenfeldt lesse a acusação, Goering atalhou: “Acho que vou precisar mais de um bom intérprete do que de um bom advogado”. Assim queria dizer que faria sua própria defesa. Hjalmar Shacht, ministro da economia do Reich, ouviu a acusação com indiferença e murmurou: “Não sou culpado de nada”. (Mais tarde foi absolvido pelo Tribunal). O marechal Keitel, chefe do estado-maior alemão, ouviu a acusação em posição ereta sem esboçar nenhuma reação. Mas Sonnenfeldt percebeu que a artéria de sua carótida latejava. Na equipe da promotoria, Richard manteve contato com três grandes advogados, todos judeus e que falavam em ídiche entre si: os americanos Jacob Robinson e Raphael Lemkin e o inglês Sir Richard Lauterpacht, professor da Universidade de Cambridge.

Sir Lauterpacht, até hoje considerado uma das maiores autoridades do mundo em matéria de Direito Internacional, nasceu no seio de uma família ortodoxa na cidade de Zolkiev, perto de Lvov, Polônia. Obteve o doutorado em Direito Internacional na Universidade de Viena e completou um segundo doutorado na Escola de Economia de Londres. Em 1944 foi convidado para integrar o Departamento Britânico de Crimes de Guerra. Nesta organização, insistiu para que uma seção fosse dedicada com exclusividade aos crimes cometidos contra os judeus durante o conflito. Além disso, foi o formulador da Lei Universal dos Direitos Humanos, tal como aprovada anos mais tarde pelas Nações Unidas.

Jacob Robinson, o mais velho dos três, nasceu na Lituânia. Graduou-se em direito na Universidade de Varsóvia e foi feito prisioneiro pelos alemães durante a 1ª Guerra. Voltou para a Lituânia, onde atuou como advogado em favor de minorias, como hebraísta e conselheiro do Ministério das Relações Exteriores nos anos 30. Escapou do nazismo e aportou com a família em Nova York, em 1941, via Portugal. Nos Estados Unidos, fundou o Instituto de Assuntos Judaicos, vinculado ao Congresso Judaico Mundial.

Raphael Lamkin, o mais jovem do trio, foi quem cunhou para a posteridade a palavra genocídio. Este termo aparece pela primeira vez num livro que escreveu, intitulado O Regime do Eixo na Europa Ocupada. Lamkin nasceu na pequena cidade de Nesvodene, a 250 quilômetros de Varsóvia que, depois de sucessivas soberanias, hoje está situada na Bielorrússia. Graduou-se em direito na Universidade de Lvov e foi ferido quando a Alemanha invadiu a Polônia. Fugiu para a Lituânia, de lá para a Rússia e chegou aos Estados Unidos via Japão. Foi convidado por Jackson para integrar a equipe de promotores em Nuremberg.

Entre a leitura das acusações e o início dos trabalhos no Tribunal, houve um período de folga que Sonnenfeldt aproveitou, por curiosidade própria, para visitar a viúva de Himmler. Esta lhe repetiu sem cessar que as atividades do marido eram tão intensas que ele não tinha tempo para falar a respeito de tais assuntos no convívio da família. A filha adolescente de Himmler revelou que só tinha tomado conhecimento da trajetória do pai através de artigos publicados em jornais alemães. Quando Richard pretendeu aprofundar a conversa, a moça saiu da sala chorando. A viúva deu-lhe de presente as insígnias do uniforme de Himmler e duas páginas de seu diário que Sonnenfeldt guardou para sempre. Anos mais tarde, escreveu em suas memórias: “Cheguei à conclusão de que para as conquistas de Hitler não era necessário o extermínio dos judeus. Ditadores precisam de inimigos para que sejam venerados como salvadores da pátria. No contexto da Alemanha, somente os judeus poderiam desempenhar os papéis de inimigos e de bodes expiatórios. Hitler precisava mais de inimigos do que de apoios para arrastar os alemães em sua esteira”. E mais adiante: “As lições da história acabam sendo esquecidas se não forem criadas instituições que evitem suas repetições. Todos aqueles que acreditam que basta a simples lembrança dos horrores de Hitler e lamentam os trágicos desenlaces de suas vítimas, devem manter a consciência de que quando tiranos assumem o poder são capazes de se comportar tal como Hitler”.

O Tribunal de Nuremberg começou os trabalhos no dia 20 de novembro de 1945, com traduções simultâneas em inglês, francês, alemão e russo. Os quatro juízes e eventuais substitutos se encontravam à esquerda de Richard e os acusados e respectivos advogados bem à sua frente. Atrás, havia um reservado para a imprensa; pouco mais afastado, uma galeria para pessoas que tinham recebido convites especiais. Militares com capacetes brancos estavam postados atrás dos réus. A Sonnenfeldt ocorreu o seguinte pensamento, conforme escreveu: “Naquele momento o Tribunal era o centro do mundo e eu estava na linha de frente!”

O diretor dos intérpretes era um coronel francês internacionalmente famoso como linguista e que pediu que Sonnenfeldt integrasse sua equipe. Ele pôde então perceber que o trabalho no Tribunal era bem diferente daquele que havia exercido nas dependências dos interrogatórios iniciais. Primeiro, porque era complicado traduzir os termos estritamente jurídicos. Segundo, porque nas celas ocorriam intervalos entre as sessões. Ademais, se um intérprete não entendesse bem o que um acusado dizia, pedia que este repetisse a resposta. No tribunal o ritmo era completamente diferente. Ciente de que talvez não pudesse se desincumbir a contento da tarefa porque a linguagem jurídica estava acima de seu conhecimento, pediu ao coronel francês que o dispensasse. A acusação inicial do promotor-chefe Jackson foi objetiva e contundente: “O privilégio de abrir o primeiro julgamento da história por crimes contra a paz no mundo impõe-me uma grande responsabilidade. Os crimes que vamos condenar e punir foram tão calculados, tão malignos e tão devastadores que a civilização não há de suportar se eles vierem a ser repetidos”. Anos mais tarde, Sonnenfeldt assinalou: “Achei digno de nota que Jackson tivesse começado por se referir à importância histórica do julgamento antes de abordar seu significado legal”.

Durante as sessões do Tribunal, Richard ficou acomodado na bancada dos promotores com a missão de verificar se os depoimentos dos acusados e das testemunhas coincidiam com os relatos que havia colhido anteriormente. Ficou particularmente impressionado com a forma pela qual o presidente da corte, Sir Geoffrey Lawrence, se mantinha imperturbável, mesmo vendo desfilar na sua presença as mentiras mais perversas, as manobras diversionistas dos advogados e as distorções dos fatos. Também se ocupou em observar as reações dos réus enquanto os trabalhos prosseguiam. Um parecia apoiar o outro, mas a maioria evitava sequer olhar na direção de Julius Streicher, o arauto do antissemitismo. Embora a mesma condição valesse para todos, era evidente que Goering continuava a desempenhar um papel de liderança, além de fazer charme à distância para as mulheres sentadas na galeria. Algumas vezes chegou a piscar o olho para Richard. Quando foram exibidos filmes terríveis sobre as atrocidades e os campos de concentração, Goering ficou indiferente. Sonnenfeldt soube depois que Goering considerava que tudo aquilo não passava de propaganda, o mesmo tipo de propaganda que Goebbels havia produzido para o nazismo.

Conforme a avaliação de Sonnenfeldt, os promotores britânicos eram os mais eficazes. Indagando os réus com fria cortesia, acabaram arrancando de Goering a confissão de que ele de fato tinha sido responsável pelos assassinatos dos pilotos das forças aéreas aliadas. Concluiu, ainda, que os americanos eram os que mais trabalhavam, enquanto os soviéticos se revelavam pouco preparados.

Os réus com patentes militares, Keitel, Jodl, Raeder e Doenitz, foram unânimes em suas defesas: tinham sido apenas leais subordinados do Fuhrer. Sonnenfeldt ficou revoltado com o depoimento de Albert Speer, o arquiteto preferido por Hitler, encarregado da produção de veículos, aviões, armamentos e munições durante a guerra. Speer se comportou de maneira cordial e obediente, tendo admitido sua culpa de forma tão cândida que chegou a ser rotulado pela mídia internacional como “o bom nazista”.(Foi condenado a 20 anos de prisão).Mas, no decorrer de seu interrogatório, omitiu o fato criminoso de que só foi capaz de desempenhar suas tarefas porque teve milhões de trabalhadores escravos como mão-de-obra.

De tudo o que viu e ouviu em Nuremberg, o que mais impressionou Sonnenfeldt foi o depoimento que lhe prestou Rudolf Hoess, comandante do campo de concentração de Auschwitz. Pergunta de Sonnenfeldt: “É verdade que você ordenou a execução de três milhões e meio de seres humanos?” Resposta: “Não, foram apenas dois milhões e meio. Os demais morreram por outras causas”. Pergunta: “Que outras causas?” Resposta: “Doenças, epidemias inevitáveis e fome quando nos faltaram recursos para alimentar os prisioneiros”. Pergunta: “Por que os maiores e principais campos de concentração foram situados fora da Alemanha?” Resposta: “Para que a população alemã não soubesse o que estava acontecendo”. Pergunta: “Quando você e sua família moraram em Birkenau, no complexo de Auschwitz, sua mulher revelou que sempre havia um mau cheiro no ar. Você lhe contou a verdade?” Resposta: “Não. Eu disse que o cheiro era de uma fábrica de sabão”. Sonnenfeldt conteve o ódio. Sim, de fato era uma fábrica de sabão, mas feito com despojos de seres humanos exterminados.

Em Nuremberg, Richard fez boa amizade com Poul Kjalke, chefe da delegação dinamarquesa e, durante a guerra, chefe da resistência clandestina na Dinamarca. Num fim de semana, Poul levou-o para visitar Copenhague. Ali, Sonnenfeldt foi convidado para participar de um jantar de gala no Palácio Real. Na recepção que antecedeu o banquete, Richard manteve longa e agradável conversa com um senhor de certa idade, vestindo fraque e uma gravata borboleta branca. A certa altura, este disse: “Agora o senhor me desculpe, mas tenho que começar a servir a mesa”. Era o chefe dos garçons. Durante o jantar, Richard sentou-se ao lado do príncipe da Dinamarca. Somente um pensamento lhe passava pela mente: era puro surrealismo que um simples judeu de uma pequena cidade alemã pudesse estar junto a um membro da monarquia europeia.

Richard W. Sonnenfedt regressou aos Estados Unidos em 1946 e matriculou-se na Faculdade de Engenharia da Universidade John Hopkins. Teve uma extraordinária carreira profissional. Foi o diretor da equipe de técnicos da RCA que inventou a televisão em cores. Trabalhou na NASA, onde participou do projeto que levou o primeiro homem à Lua. Foi um dos principais executivos da rede de comunicação NBC e reitor de uma faculdade de administração. A par dessas atividades, deteve patentes de uma série de invenções tecnológicas. Com mais de 70 anos, atravessou três vezes o Atlântico no comando de seu próprio iate. Morreu no dia 9 de outubro de 2009, vítima de um derrame, em sua residência de Port Washington, Nova York, aos 86 anos.

Bibliografia:
Sonnenfeldt, Richard W., Witness to Nuremberg, Arcade, EUA, 2011.