A guerra de Stalin contra os judeus foi muito além do conhecido e infame complô dos médicos. O ditador soviético sempre foi antissemita e, embora grande número de judeus tivesse sido relevante para o triunfo bolchevique, após assumir plenos poderes, ele jamais hesitou em ordenar a execução de milhares de seus antigos companheiros e, também, da elite intelectual judaica do país.

No início da Revolução Soviética, foi o judeu Leon Trotsky, cujo verdadeiro sobrenome era Bronstein, quem assumiu as rédeas do país ao lado de Lenin. Somente meses mais tarde, ao ocupar um posto menor no novo governo, o georgiano Iosif (depois Joseph) Vissarion Ivanovich Djugashvili, autodenominado Stalin, criou um departamento que deu origem à Yevsektzia, o braço judaico do Partido Comunista. De dezembro de 1918 a agosto de 1919 coube a este órgão a bem-sucedida missão de abolir nas escolas o ensino do idioma hebraico, de proibir as lições religiosas, de suprimir qualquer manifestação de caráter sionista e de eliminar todas as instituições judaicas tidas como incompatíveis com o marxismo. Cumprida a tarefa, Stalin escreveu um artigo para uma publicação soviética, no qual afirmou: “As massas judaicas agora têm sua pátria-mãe socialista, que está sendo defendida ao lado dos trabalhadores e camponeses russos contra o imperialismo ocidental e seus agentes. A questão judaica não mais existe na Rússia Soviética. Os trabalhadores judeus e as massas operárias doravante possuem direitos civis e nacionais”. E a última frase, uma síntese de falsidade: “A cultura judaica não mais encontra obstáculos para o seu desenvolvimento”.

A maioria dos judeus deixou-se iludir por tais declarações, mesmo porque era espantosa a quantidade de judeus detentores de importantes cargos no primeiro escalão do governo: Trotsky, o grande líder revolucionário e criador do Exército Vermelho; Zinoviev, braço direito de Lenin; Sverdlov, presidente do Comitê Central do partido; Kamenev, Radek, Kaganovitch, Litvinov, Yoffe e muitos outros em posições de destaque.

Apesar de renunciar à sua origem judaica e de sempre se definir como um “internacionalista”, Trotsky tinha a consciência de que, mais cedo ou mais tarde, em meio às lutas internas pelo poder na União Soviética, o fato de ser judeu lhe caberia como um item negativo e, para se proteger, emitia sucessivas declarações contra o antissemitismo. No testamento que deixou, Lenin escreveu que Stalin era um dos homens mais capazes do Politburo (Comitê Político), apesar de sua incontrolável rudeza, mas que Trotsky era o mais competente de todos. No texto, apontou cinco nomes de sucessores para no futuro dirigirem os destinos da União Soviética, três dos quais eram judeus.

Depois de uma infinidade de disputas políticas internas, cujo relato exigiria uma enciclopédia, Stalin acabou ocupando a direção do Comissariado e eliminou seus opositores, dentre os quais dezenas de judeus, os quais acusava de estarem tramando um complô contra o governo. Foi por volta dessa época que teve início o culto à personalidade de Stalin, cujas estátuas começaram a ser erguidas por todo o país. Ao mesmo tempo, poetas de segunda classe escreviam exaltados poemas em sua homenagem, conferindo-lhe a qualidade de “ser supremo”. Em um acerto final de contas, Trotsky viu-se obrigado a deixar a União Soviética e partir para o exílio no México, onde foi assassinado em 1940 por ordem direta de Stalin.

Entre 1929 e 1932, de cinco a dez milhões de pessoas morreram de fome ou de frio em um programa de coletivização, conhecido como “deskulakização”, empreendido por Stalin. Os “kulaks” eram agricultores abastados que, por serem ricos, eram tidos como judeus na percepção popular. Portanto, não foi por acaso que a imprensa oficial soviética desencavou um trecho do “Diário de um Escritor”, de Dostoievsky, onde se lia: “Os judeus, por conta de sua eterna ambição pelo ouro, arruinaram a Rússia dando-lhe vodca. Se eles constituíssem a maioria e os russos a minoria, os judeus nos matariam até o último homem, assim como fizeram com povos inimigos durante sua história antiga”.

Conta-se que quando Lady Astor, a primeira mulher a integrar a Câmara dos Comuns do Império Britânico, visitou a União Soviética em 1931, perguntou a Stalin: “Por quanto tempo o senhor continuará matando pessoas?” O ditador respondeu: “Este processo vai continuar enquanto isto for necessário para o estabelecimento de uma sociedade comunista”.

Um dos aspectos mais horripilantes da Revolução Bolchevique foi a forma através da qual grande número de judeus foram contagiados pela brutalidade do comunismo e se tornaram carrascos de seu próprio povo. Em dezembro de 1917, um decreto emitido por Lenin criou a Comissão Extraordinária Para Combater a Contra-Revolução e a Sabotagem, conhecida como Cheka, cuja sigla foi mudando ao longo dos anos. De Cheka virou GPU, depois NKVD e, finalmente KGB. A GPU teve como chefe um judeu chamado Genrich Yagoda, que implementou as ordens de Stalin no sentido da forçada coletivização. Por causa de intrigas internas, Yagoda acabou sendo preso e executado. Outro nefasto judeu foi Leonid Reichman, chefe dos interrogadores da NKVD.

Nessa conjuntura, o judeu mais proeminente foi Lazar Kaganovitch, responsável pela tristemente famosa “Fome Ucraniana”, que o historiador Sabag Montefiore classifica como uma das maiores tragédias da humanidade, a par do Holocausto nazista e do terror de Mao Tse Tung. Kaganovitch cumpriu com absoluta frieza as ordens de Stalin, em 1932, para impor a coletivização na Ucrânia. Naquela região do norte do Cáucaso os agricultores foram obrigados a entregar ao estado a maior parte de sua produção. Assim houve enorme carência de trigo e uma conseqüente devastação de seis a sete milhões de seres humanos consumidos pela fome.

Na verdade, a intenção de Stalin era erradicar o nacionalismo ucraniano, cuja elite abrigava centenas de ativistas judeus que foram mortos ou enviados para a Sibéria sob os olhos complacentes de Kaganovitch, também responsável pela chefia dos transportes ferroviários dos condenados ao exílio siberiano. Em síntese, um burocrata sem alma e sem caráter, partícipe de outras monstruosas tragédias que viriam a se abater sobre seus correligionários da União Soviética. Em 1940, consumando o pacto assinado entre Hitler e Stalin, a Polônia foi dividida. Coube à Alemanha ocupar a parte que abrigava o maior número de comunidades judaicas. Cerca de um milhão de judeus conseguiram fugir das tropas nazistas e chegaram ao território ocupado pela União Soviética. Ali foram presos e remetidos para a Ásia Central onde, pelo menos, sobreviveram ao Holocausto. Entretanto, o Kremlin disseminou o boato de que os judeus eram covardes e se recusavam a lutar na guerra.

Os russos souberam das atrocidades nazistas desde o primeiro dia, mas nada fizeram para impedi-las e a imprensa soviética foi proibida de publicar qualquer notícia sobre este assunto, mesmo porque os ucranianos, apesar de submissos ao poder central de Moscou, se aliaram aos nazistas na execução de dezenas de massacres. Foi nessa atmosfera do conflito que a nata dos intelectuais judeus da União Soviética criou o Comitê Judaico AntiFascista, presidido por Solomon Michoels, grande ator e diretor do Teatro Judaico Estatal de Moscou, fundado em 1920 e tolerado pelas autoridades. De fato, era tal a celebridade de Michoels que, em 1943, ele foi autorizado a viajar para os Estados Unidos com outro escritor judeu, Itzik Feffer, incumbidos da missão de arrecadar fundos para o esforço de guerra soviético.

O Teatro Estatal, conhecido como Goset, tinha excepcional nível artístico e correspondia à intenção da propaganda soviética de mostrar ao mundo que os judeus gozavam de total liberdade de expressão e de atividades no país. Um dos pontos mais altos das encenações do Goset foi a tragédia “Rei Lear”, de Shakespeare, com Michoels no principal papel. O repertório da companhia também incluiu dramaturgos judeus como David Bergelson e M. Daniel, cujas peças invariavelmente se referiam com ardor à ideologia comunista. Outros textos eram desprovidos dessa característica, como “A Família Ovadis”, de Peretz Markish, e “Tevie, o Leiteiro”, de Scholem Aleichem, precursor do famoso musical da Broadway,
“Um Violinista no Telhado”.

Quando os alemães invadiram a Rússia, o Goset foi evacuado para a cidade de Tashkent, no Uzbequistão, onde alcançou grande sucesso com a peça “Olho por Olho”, escrita por Markish. Entretanto, depois da guerra, o clima político soviético tornou-se hostil à cultura judaica, em geral, e ao Goset, em particular.

O final da década de 1940 marcou o recrudescimento de um agressivo antissemitismo estimulado pelo Kremlin. Um ano antes do fechamento do Teatro Estatal, Michoels foi destituído da presidência do Comitê Judaico AntiFascista. Grande número de intelectuais judeus caiu em desgraça, mas Stalin manteve sob seu manto de proteção o escritor e dramaturgo Michail Bulgakov, os compositores Dmitri Shostakovitch e Sergei Prokopfiev, o escritor Boris Pasternak, o cineasta Sergei Eisenstein e o escritor e jornalista Ilya Ehrenburg, embora estes três últimos fossem judeus. Àquela altura, toda a produção artística e literária soviética obedecia às ordens de Andrei Jdanov, a quem competia avaliar e decidir o que, em qualquer das artes, era comunista e revolucionário ou burguês e contrarrevolucionário.

Em dezembro de 1947, Michoels e Feffer foram chamados ao Kremlin, sendo recebidos por Molotov e Kaganovitch, então vice-presidente do Conselho de Ministros. Os líderes comunistas instaram os visitantes a envidar esforços para reativar a região de Birobidjan, onde havia sido instalado um pretenso estado judaico (ver reportagem “O Falso Estado Judeu”, Morashá, no. 64). E fizeram outro pedido: que o Comitê Fascista endereçasse uma carta a Stalin, sugerindo a criação de um outro estado judeu na Crimeia. Foi uma sinistra armadilha de Stalin que se tornaria o “Caso da Crimeia”, segundo o qual quem favorecesse aquela intenção estaria cometendo um crime de traição separatista contra o governo.

Até os dias de hoje, as circunstâncias da morte de Michoels permanecem um mistério. No dia 11 de janeiro de 1948, ele e o crítico teatral Vladimir Potapov receberam ordens para viajar para a cidade de Minsk, onde deveriam assistir a representação de uma peça que, talvez, pudesse ser adicionada ao repertório do Goset. Antes de viajar, Michoels telefonou para Itzik Feffer e, embora não gostasse dele, pediu que este o substituísse na presidência do Comitê AntiFascista, tal como já havia acontecido em outras ocasiões.

No dia seguinte à chegada em Minsk, Michoels telefonou para sua mulher e disse que estava perplexo por ter visto Feffer tomando o café da manhã no mesmo hotel onde se hospedara. À tarde, Michoels recebeu um telefonema para ir junto com o crítico Potapov ao encontro de Pomarenko, chefe comunista do local. Aquela seria a última vez em que Michoels foi visto vivo. No dia seguinte, dois corpos cobertos por sangue e neve foram encontrados nas imediações da estação ferroviária de Minsk. Tratava-se, sem dúvida, de um típico caso de atropelamento “bate e corre”, aliás, muito a gosto da polícia secreta soviética. Nos comunicados oficiais, Michoels tinha sido vítima de um acidente automobilístico. Vinte anos depois, o envolvimento direto de Stalin no assassinato de Michoels foi revelado pela filha do ditador, Svetlana, nas memórias que escreveu: “Um dia, na casa de campo do meu pai, eu pude ouvi-lo falando no telefone. Depois de prestar atenção por um bom tempo, ele encerrou a conversa dizendo: '...sim, foi um acidente causado por um automóvel'. Mas, ele não estava perguntando, estava sugerindo um acidente causado por um automóvel. Em seguida, virou-se para mim e disse: Michoels foi morto num acidente. Eu sabia da obsessão do meu pai de ver complôs sionistas por todas as partes. Não foi difícil perceber porque aquele crime lhe havia sido diretamente comunicado”.

Agora se sabe que o propósito de Stalin era preparar um dossiê contra os dois mortos, que se estenderia ao Comitê AntiFascista, percebido como um perigoso aglomerado de judeus desprovido de controles externos. Além disso, o desaparecimento de Michoels com certeza determinaria a extinção do Goset, que recebeu o nome de seu grande inspirador.

No dia 14 de janeiro, o editorial do jornal Pravda apontou Michoels como “um dos maiores atores de todos os tempos”. O texto cobriu-o de elogios e concluiu com revoltante cinismo: “A imagem deste grande e admirável artista soviético ficará para sempre em nossos corações”. Nem uma só palavra sobre as circunstâncias de sua morte.

O corpo de Michoels foi trazido de Minsk para Moscou e levado ao laboratório forense do professor Boris Zbarsky, o mesmo perito que havia embalsamado os restos mortais de Lenin. Por experiência, Zbarsky logo percebeu que Michoels não havia sido atropelado, mas vítima de uma ação violenta de outra natureza. Ele aplicou porções de maquiagem em seu rosto, sobretudo para cobrir um extenso ferimento na têmpora esquerda. Ao término de sua tarefa, o professor Zbarsky, que era judeu, foi levado para um campo de internamento antes que pudesse fazer qualquer declaração.

Milhares de pessoas se aglomeraram nas ruas de Moscou para acompanhar o funeral de Michoels. O primeiro elogio fúnebre foi lido por Ilya Ehrenburg, seguido por Peretz Markish, que declamou um poema especialmente escrito para a ocasião, no qual deixou perceber nas entrelinhas que o ator não havia sido vítima de um acidente e chegou a usar duas vezes a palavra crime, disfarçando-a ao comparar Michoels com os mártires do Holocausto.

Foi extraordinária a coragem de Markish e ele decerto teve consciência do que aquelas palavras viriam a lhe custar. A nova orientação da trupe coube ao assistente de direção, Benjamin Zuskin. Com o passar do tempo, a viúva de Michoels foi percebendo que o nome do marido na marquise do teatro ficava cada vez menor, até sumir por completo. No início de setembro de 1948, Zuskin, muito agitado, bateu na porta de Natalia e pediu para dar um telefonema. Tinha medo de falar de sua própria casa.

Certificou-se, então, que não poderia unir-se à companhia teatral numa viagem profissional a Leningrado porque haviam-no obrigado a assinar um documento oficial no qual se comprometia a permanecer em Moscou. Dias depois, Zuskin foi chamado para ir a um hospital onde deveria receber tratamento contra a insônia embora não sofresse de insônia. No hospital, aplicaram-lhe uma injeção que o fez dormir e acordar na prisão de Lubyanka, onde ficou até que a trupe retornasse de Leningrado. No decorrer das semanas seguintes, os demais atores da companhia ficaram com tanto medo de tudo e de todos que deixaram de visitar o apartamento da viúva de Michoels, vigiado noite e dia por agentes da polícia. Ao mesmo tempo, os judeus de Moscou também ficaram com medo de comparecer aos espetáculos, assustados por uma caminhonete com vidros escurecidos sempre estacionada em frente à entrada do teatro. Em abril de 1949, um grupo de agentes comunicou aos atores e técnicos que a companhia estava dissolvida e que o melhor que tinham a fazer era arranjar outro emprego.

O ano de 1948 foi atribulado para Stalin. A Guerra Fria assumia contornos cada vez mais intensos. Outra expectativa importante era a implantação do Plano Marshall na Europa Ocidental. A Doutrina Truman concedia volumosa ajuda militar à Turquia e à Grécia para conter os avanços comunistas. Os americanos davam início à ponte aérea destinada a superar o bloqueio terrestre de Berlim. Na Iugoslávia, o líder Tito abandonava a centralidade de Moscou e seguia por um caminho independente. Em agosto, morreu em circunstâncias obscuras Andrei Jdanov, um de seus braços direitos.

No dia 15 de maio, Stalin reconheceu a independência do Estado de Israel, não porque amasse os judeus, ou os sionistas, ou o país que acabara de ser criado. Em termos de política externa pragmática interessava à União Soviética que os britânicos saíssem do Oriente Médio e existia a esperança de que ali pudesse florescer uma semente comunista em função da ideologia socialista do partido majoritário, comandado por Ben-Gurion, que assumiria o governo do estado judaico.
Ademais, dentre os dezesseis componentes do primeiro gabinete israelense, oito ministros haviam nascido na Rússia, somando-se ao presidente Chaim Weizmann.

Mas, o que seria um bom relacionamento entre os dois países durou pouco. Em janeiro de 1949, um artigo publicado pelo eminente economista soviético T.A. Genin enfatizou que “os objetivos do nacionalismo judaico e do sionismo são objetivos iguais aos do capitalismo reacionário e do imperialismo norte-americano”.

Em setembro, a ida de Golda Meir a Moscou, primeira embaixadora de Israel, levou às ruas para saudá-la nada menos do que 50 mil judeus. Stalin, então, convenceu-se de que os judeus jamais se assimilariam ao estado soviético. Não havia outra solução a não ser submetê-los pela força. Mandou pedir as fotografias da multidão presente à chegada de Golda e todos aqueles que puderam ser identificados nas imagens foram presos. Em seguida, Ilya Ehrenburg, um judeu que se empenhava com inusitada bravura para não ser tido como judeu, escreveu um violento artigo contra Israel no jornal Pravda e, a pretexto de falsa moderação, atacou o antissemitismo. Ou seja, valeu-se da mesma retórica que até hoje perdura: ser antissionista não implica em ser antissemita.

Ilya Ehrenburg, então controlado pelas autoridades do Kremlin na presidência do Comitê AntiFascista, encontrou-se numa recepção diplomática com a embaixadora de Israel, Golda Meir, pouco depois de sua chegada a Moscou. Visivelmente embriagado, ele dirigiu-se a ela no idioma russo. Golda respondeu: “Desculpe, eu não falo russo”. De forma agressiva, Ehrenburg continuou: “Mas a senhora fala inglês, não fala? Eu detesto os judeus nascidos na Rússia que não falam russo”. Resposta de Golda: “E eu detesto e tenho pena dos judeus russos que não falam iídiche ou hebraico”. Em outra ocasião, o diplomata israelense Mordechai Namir, da equipe de Golda Meir, convidou Ehrenburg para visitar Israel. Resposta: “Claro que irei, mas não agora, porque a viagem pode ser interpretada como um ato político. O Estado de Israel precisa compreender que não mais existe o problema judaico na União Soviética. Os judeus soviéticos devem ser deixados em paz e todos os esforços para seduzi-los para o sionismo serão inúteis”.

Em 1949, o famoso cantor americano Paul Robeson, comunista assumido, foi cumprir uma série de recitais na União Soviética, onde perguntou pelo poeta Itzik Feffer, que havia conhecido seis anos atrás, nos Estados Unidos. Já sabia que Michoels fora vítima de um acidente fatal. Àquela altura, embora sempre tivesse atuado como informante da NKVD, Feffer estava preso há três anos sob absurda acusação de espionagem. Informaram a Robeson que Feffer estava de férias na Crimeia e só regressaria a Moscou semanas mais tarde. A polícia secreta resgatou Feffer que era apenas pele e osso. Levaram-no para um hospital, onde foi submetido a tratamentos intensivos e a um regime para engordar. Finalmente, foi conduzido ao encontro de Robeson. Os dois se encontraram num quarto de hotel em Moscou monitorado por microfones ocultos. O cantor perguntou-lhe como estava passando e, ciente de que não podia falar livremente, Feffer passou o dedo indicador sobre a garganta, gesto que significava sua próxima execução.

No dia 14 de junho, Robeson apresentou-se na Sala Tchaicovsky. Antes de começar o recital fez um emocionado discurso evocando Michoels e elogiando Feffer, dedicando-lhes a primeira canção, o hino dos partisans (... jamais diga que este é o último caminho) cantado em russo e iídiche.Na verdade, Itzik Feffer, nascido perto de Kiev em 1900, é um personagem enigmático. Criativo e inspirado, teve suas excelentes obras traduzidas para o russo e o ucraniano. Era admirado por judeus e não-judeus, com destaque para seu poema épico “As Sombras do Gueto de Varsóvia”, alusivo à rebelião judaica contra os nazistas. Entretanto, agiu como informante por mais de 20 anos da polícia secreta soviética, à qual delatou atividades sionistas que resultaram em prisões de centenas de judeus. Não se sabe qual foi a sua real participação, porém é certo seu envolvimento no assassinato de Michoels.

O ponto culminante da guerra de Stalin contra os judeus aconteceu em 12 de agosto 1952, data que marca a sinistra “Noite dos Poetas Mortos”, quando foram executados por fuzilamento escritores, jornalistas e poetas judeus sob acusações de “crimes contrarrevolucionários”.

Os promotores apontaram como sede principal da conspiração o Comitê AntiFascista, que foi extinto. As inócuas correspondências mantidas entre o Comitê e diversas entidades culturais no Ocidente,
nem sempre judaicas, foram apresentadas como “uma rede de difamação da União Soviética”.

O assunto da Crimeia recebeu o rótulo de “alta traição”. E sobre todos esses itens havia um provido de torrencial majestade: ações de subversão e de espionagem. Antes de serem mortos, os prisioneiros haviam sido submetidos a infindáveis
sessões de torturas e interrogatórios. Um deles, Josef Yuzefovitch, mestre em pesquisas do Instituto de História da Academia Soviética de Ciências, declarou durante seu julgamento, no decorrer do qual nem ele, nem os outros acusados, tiveram direito a advogados de defesa: “Eu fui torturado com tanta violência, que estava disposto a confessar que era sobrinho do Papa e que vinha agindo conforme ordens expressas do Vaticano”.

O detento mais visado foi Peretz Markish, poeta de enorme talento e, inclusive, detentor da Ordem de Lenin. Trinta anos atrás, o historiador S. Bentsianov empreendeu um minucioso trabalho para resgatar a vida e a obra de Markish. Em 1988, inaugurou na cidade de Polonoie um pequeno museu que contém fotografias, exemplares de livros, cartas, artigos em jornais e revistas e o documento original do mandado de prisão expedido contra o grande poeta. (Anos atrás conheci no Rio de Janeiro seu filho, David, que me disse com um leve tom poético: “Quando eu era criança, em Moscou, achava que a palavra Copacabana tinha um poder mágico tão forte como abracadabra”).

No acerto de contas da História, Stalin perdeu a guerra contra os judeus. O comunismo morreu e o Estado de Israel é uma consistente realidade, onde nos últimos 20 anos foram acolhidos mais de um milhão de judeus russos.

Bibliografia:
Rapoport, Louis, “Stalin’s War Against the Jews”, editora Free Press, EUA, 1990.
Volkogonov, Dmitri, “Stalin”, editora Nova Fronteira, Brasil, 2004.
Rubenstein, Joshua; Naumov, Vladimir; Wolfson, Laura, “Stalin’s Secret Pogroms", editora Yale University Press, EUA, 2001.
Rayfield, Donald, “Stalin and his Hengmen”, editora Random House, EUA, 2005.

A elite vitimada por Stalin

Peretz Markish, poeta e dramaturgo.
David Hofstein, poeta.
Itzik Feffer, poeta.
Leib Kvitko, poeta e autor de livros infantis.
David Bergelson, romancista.
Solomon Lozovsky, diretor do Departamento Soviético de Informação.
Boris Chimelovitch, médico, diretor do hospital Botkin.
Benjamin Zuskin, assistente de Michoels no Teatro Estatal Judaico.
Josef Yezufovitch, pesquisador de história.
Leon Talmy, tradutor e jornalista.
Ilya Vatenburg, editor do jornal do Comitê Judaico AntiFascista.
Chaika Vatenburg, mulher de Ilya, tradutora.
Emilia Teumin, editora do “Dicionário Diplomático” do Departamento Soviético de Informação.
Solomon Bregman, vice-comissário de assuntos externos.