Zvi Malchin é hoje uma lenda para os serviços de inteligência de todo o mundo. Atuou durante trinta anos no Mossad, onde deixou um inestimável legado de competência, seriedade e patriotismo.

Ele foi um dos meus melhores amigos, embora não nos víssemos com freqüência: poucas vezes no Brasil, outras tantas em Israel ou Nova York. Entretanto, mantínhamos contato permanente, sobretudo pelo telefone, quando me passava preciosas informações sobre a atualidade em Israel e sobre o combate ao terrorismo.

Na última vez que nos falamos, em maio de 2004, antes de sua morte em Nova York, aos 77 anos de idade, em março do ano passado, prometeu que estaria no casamento do meu filho David, em junho daquele ano, mas acabou não vindo.

O nome de Zvi Malchin, ou Zvika, como era sempre chamado, só veio a público quando se aposentou e pôde, então, relatar como participou da operação que capturou o criminoso de guerra nazista, Adolf Eichmann, em Buenos Aires, tendo-lhe cabido a tarefa de interceptar seus passos na rua Garibaldi e atirá-lo dentro de um automóvel que o aguardava com o motor em movimento.

Quando se fala na figura de um espião, as primeiras imagens que vêm à mente das pessoas são as de Sean Connery ou de Roger Moore na pele de James Bond. Zvika era mais do que o oposto: chegando a 1,70m, quase gordo, voz estridente, a careca ornada por ralos cabelos ruivos, as mãos rudes, roupas sem maiores cuidados com a elegância e um sorriso sempre estampado na face. Mais parecia um vendedor de carros usados ou, no máximo, um corretor de imóveis dos subúrbios. Quando morreu, Robert Morgenthau, procurador-geral do estado de Nova York, disse o seguinte: "Malchin foi um homem extraordinário, provavelmente o último dos grandes agentes de inteligência do nosso tempo".

Zvika era grande amigo do meu amigo, jornalista Uri Dan, que o apresentou a Ariel Sharon, logo depois da guerra do Yom Kipur. Sharon ficou impressionado com a inteligência de Zvika que, desde então e durante trinta anos, passou a assessorá-lo informalmente sobre assuntos de segurança. Ambos estavam de acordo num ponto fundamental: para surpreender qualquer inimigo, em qualquer circunstância, era preciso ter imaginação e audácia. Antes de aceitar o convite de Sharon, ele fez questão de enumerar-lhe as duas regras básicas que orientavam sua forma de agir: "Primeira: fazer tudo com perfeição, sem deixar nenhum rastro, para que fosse possível retornar a um determinado lugar, se necessário. Segunda: preparar qualquer operação meticulosamente para que o objetivo fosse atingido, mas estar preparado para cancelá-la, mesmo no último momento, se surgisse a mais remota possibilidade de risco".

Foi isto que aconteceu no Cairo, presumo eu, porque o Zvika jamais me revelou a cidade onde quase foi apanhado. Acredito que se tratava da operação preliminar para identificar os cientistas alemães que se dedicavam a fabricar armas biológicas para o ditador Gamal Nasser. Certa noite, Zvika teve o pressentimento de que a casa onde se encontrava estava cercada. Através de uma pequena janela no sótão, avistou veículos e pessoas que lhe pareceram suspeitas. Chamou, então, dois empregados locais e deu uma mala para cada um, recomendando que saíssem pela porta da frente, um dobrando à direita e o outro à esquerda. Era óbvio que, em função do atrativo das malas, ambos seriam seguidos e este foi o tempo necessário para que ele mesmo escapasse pela porta dos fundos.

Mas, como ele me revelou, lidar com os árabes o aborrecia. Preferia enfrentar a KGB "porque era mais interessante, era uma verdadeira batalha de sabedorias". E tanto preferia que, no início da década de 60, descobriu um círculo de espionagem soviética em Israel, que resultou na prisão, numa só noite, de dezessete espiões russos". Quando lhe perguntaram como havia atuado com tanta eficiência, respondeu: "Na verdade, eu não os estava perseguindo. Apenas perguntei a mim mesmo: se eu fosse um espião russo aqui em Israel, o que estaria fazendo agora, onde e como? Então, ensaiei reproduzir os passos dos possíveis suspeitos e não foi difícil chegar até eles".

Seu último embate com a KGB deu-se no Brasil, nos anos 80, onde circulou extensamente e por conta própria, na esperança de detectar o paradeiro de Mengele, o médico-monstro de Auschwitz. Não encontrou o nazista, mas descobriu um espião soviético e encaminhou a informação para a CIA. Quando seu amigo Morgenthau lhe perguntou o segredo daquela proeza, respondeu: "Depois de tantos anos no ramo, eu sinto o cheiro deles". E também sentiu seu cheiro em Moscou, em 1960, quando os russos ali construíram uma nova sede para a embaixada de Israel. Zvika foi inspecionar as instalações e não tardou a descobrir um túnel que levava a um aposento bem abaixo da sala de recepção de códigos da embaixada. O Kremlin ficou possesso e avisou que se o assunto chegasse à imprensa, romperia relações diplomáticas com Israel. Além disso, Zvika sabia que estava sendo seguido, todo o tempo, pela KGB e foi por milagre que escapou de um acidente de automóvel preparado para ele. No início de sua carreira, o Mossad o enviou a Cingapura com a missão de colaborar em assuntos de segurança. Ficou surpreso quando ali constatou que o ministério da defesa e os serviços de inteligência estavam localizados no mesmo prédio. Sugeriu às autoridades locais que aquela não era uma disposição inteligente pois tornava o país vulnerável em dois pontos muito sensíveis, em um mesmo lugar. Os cingapurenses não se convenceram, argumentando que a sua segurança era impenetrável e ignoraram a recomendação. O chefe da inteligência de Cingapura tinha a mania de guardar num cofre, todas as noites, uma pequena tartaruga esculpida em madeira. Certa manhã, ele abriu o cofre e não encontrou seu objeto de estimação, mas um bilhete em que leu: "Nada é absolutamente seguro, nem mesmo uma tartaruga".

Zvi Malchin nasceu na antiga Palestina, voltou com os pais para a Polônia e regressou a Eretz Israel ainda menino. Deixou para trás numerosa família, inclusive uma irmã. Todos morreram no Holocausto. Adolescente, integrou-se à Haganá, primeiro como perito em explosivos, depois como membro dos serviços secretos. Com a fundação do Estado de Israel, passou a servir no Mossad, aonde chegou a diretor de operações. Ele conta que quando foi entrevistado no Mossad, perguntaram-lhe a razão pela qual desejava entrar para o serviço secreto: "Eu respondi que era porque gostava de aventuras, mas acho que a resposta mais apropriada seria: porque amo meu país".

De todos os seus feitos, o mais notório, sem dúvida, foi a captura de Adolf Eichmann na Argentina. Foi uma operação que se desenvolveu ao longo de meses, porque os agentes israelenses precisavam estar rigorosamente seguros de que o homem que seguiam era, de fato, o criminoso de guerra. Quando as dúvidas se dissiparam, foi deflagrada a ação. Competiu a Malchin aproximar-se de Eichmann, ficar à sua frente e lhe dizer: "Un momentito, señor". Zvika contou-me que, na fração de tempo em que seu olhar e o de Eichmann se cruzaram, pôde perceber o pânico do nazista. Tanto assim que ele se atirou contra Malchin e os dois caíram numa vala junto à calçada. Zvika conseguiu imobilizá-lo com um forte aperto do braço em volta de seu pescoço e rapidamente colocou-o no banco de trás do automóvel. A ação durara vinte segundos, onze a mais do que o planejado. Ainda tremendo de medo, as primeiras palavras de Eichmann, no veículo, foram: "Vocês são israelenses, não são?" Zvika me contou que a sua sensação, ao caminhar ao encontro de Eichmann, era a de que estava sendo visto, naquele momento, por seis milhões de seres humanos que não mais existiam.

Coube a Zvi Malchin a tarefa de conduzir o primeiro interrogatório a que Eichmann foi submetido, em sessões que se prolongaram por dez dias, antes que ele pudesse ser levado com segurança para Israel. Sua primeira pergunta: "Por que você fez tudo o que fez?" Resposta: "Era apenas um trabalho que eu deveria cumprir". Zvika insistiu: "Apenas um trabalho?" Eichmann hesitou e disse: "Acredite em mim, não foi algo que eu tivesse planejado, nem que eu houvesse escolhido". Zvika tornou a insistir: "Mas, por que você? Conte-me exatamente o que aconteceu".

Enquanto o prisioneiro falava, Zvika percebeu sua enorme vaidade e rapidez de pensamento. Eichmann não foi arrogante. Pelo contrário, manteve durante todo o tempo um certo tom de cerimônia. Quanto às medidas que culminaram no Holocausto, Eichmann revelou que, em determinado momento, as coisas foram-se avolumando e escaparam ao controle. Contudo, não admitia sua responsabilidade e reiterava que tinha sido apenas um militar cumprindo ordens. E terminou assim: "Acredite, eu nada tinha contra os judeus". Pergunta do Zvika: "Se é assim, por que você se alistou na SS, cuja ideologia e propósitos eram bem conhecidos?" Resposta: "Mas, não fui só eu. Hitler era o único que podia unir o povo contra os comunistas. Eu admito que ele muito me inspirou".

Zvika me disse que, no decorrer dos dias, as conversas se tornaram menos áridas, porém Eichmann mantinha uma mente totalmente inflexível e sua aparente docilidade era apenas uma forma de diminuir sua culpa. O interrogatório prosseguiu com Zvika indagando sobre o paradeiro de outros criminosos de guerra nazistas que haviam-se refugiado na América do Sul, sobretudo o Dr. Mengele e Martin Borman. Eichmann jurou que levava uma existência solitária com a família, que não sabia de nada de mais ninguém. Foi então que Zvika lhe apresentou um documento preparado por Isser Harel, diretor do Mossad e chefe geral da operação em Buenos Aires, que Eichmann deveria assinar, atestando que estava seguindo por livre e espontânea vontade para ser julgado em Jerusalém. A palavra Jerusalém tornou-o pálido. Ele disse que aceitaria ser julgado na Argentina, ou mesmo na Alemanha, mas que em Jerusalém não teria a menor chance. Afinal, acabou concordando em assinar o papel. Em seguida, Eichmann relatou a viagem que fizera à antiga Palestina em 1937, para melhor conhecer os judeus e seu comportamento. Disse que tinha apreciado a vista do Monte Carmel em Haifa, que tinha lido O Estado Judeu, de Theodor Herzl, que estudara hebraico com um rabino em Berlim e, que se tivesse nascido judeu, com certeza seria adepto do sionismo. Ou seja: deu conta do minucioso curso preparatório que fizera para exterminar os judeus da Europa com conhecimento de causa.

A certa altura, dirigiu-se a Zvika: "Eu até me lembro de uma oração que o rabino me ensinou: Shemá Israel, Adonai Eloheinu..." Zvika contou-me que, àquela altura, sentiu seu corpo ferver de raiva e ódio. Era insuportável ouvir na voz daquele assassino de milhões a mais sagrada oração dos judeus, a oração que clamavam enquanto eram levados para as câmaras de gás. Controlando-se, Zvika lhe disse: "Você sabe algo mais em hebraico? Sabe o que é aba (pai) e ima (mãe)? "Eichmann murmurou algo ininteligível e Zvika continuou: "Pois era aba e ima que as crianças judias gritavam quando eram arrancadas dos braços dos pais para serem levadas ao extermínio, inclusive o filho da minha irmã, que era louro, de olhos azuis, assim como o seu filho, e você o assassinou". Eichmann refletiu por alguns instantes e respondeu: "Sim, mas ele era judeu, não era?".

Zvika só tornou a ver Eichmann em abril do ano seguinte, durante o julgamento do nazista, em Jerusalém, que eu cobri como correspondente da revista Manchete. Disse-me que teve, então, a mais estranha das sensações. Eichmann estava na jaula de vidro e ele sentado na primeira fila do tribunal, cujos trabalhos eram acompanhados por mais de quatrocentas pessoas, entre juízes, promotores, advogados, testemunhas, espectadores e jornalistas. Houve um momento em que o criminoso olhou na sua direção e fez um discreto aceno com a cabeça. Zvika refletiu: "De todo o mundo que está aqui presente, só ele sabe quem eu sou".

Nas suas andanças pelo mundo, Malchin assumia como disfarce a condição de artista plástico e, depois de se aposentar, tornou-se de fato pintor profissional, tendo realizado uma exposição em Nova York que mereceu meia página de reportagem e excelente crítica no jornal The New York Times. Com nosso amigo comum, Uri Dan, escreveu o livro Ultimato Urânio, publicado na França, no qual, já em meados dos anos 70, advertia sobre a dramática possibilidade de terroristas obterem artefatos nucleares, assunto que está no foco das preocupações internacionais nos dias atuais. Mais tarde, escreveu Eichmann in My Hands, no qual fez um detalhado relato da operação desenvolvida em Buenos Aires.

Zvika Malchin morreu vítima de uma infecção generalizada cuja origem jamais foi descoberta. Seu funeral foi em Tel Aviv, com a presença de duas gerações de agentes do Mossad e do então primeiro-ministro Ariel Sharon, que escreveu uma carta para Roni, sua viúva, e família: "Vocês perderam o chefe de sua família e nós perdemos um amigo fiel, um grande lutador pela segurança de Israel. Não há muitos combatentes secretos na história do nosso país que tenham empreendido, como ele, tantas operações, ao longo de tantos anos, todas realizadas com devoção, coragem e imaginação. A captura do nazista Adolf Eichmann, na qual Zvika desempenhou um papel de destaque, não foi a mais importante, nem a mais complexa das batalhas de inteligência que cumpriu e nas quais deixou sua marca especial. Muitos de seus sucessos como um guerreiro individual e como comandante não poderão ser revelados por muitos anos. Senão, eles seriam usados para ensinar aos israelenses como combater, não apenas na guerra secreta, mas nas guerras abertas que somos obrigados a lutar para defender os judeus e o Estado de Israel".

Certa ocasião, Zvika estava em Chipre quando recebeu um chamado para regressar com urgência a Israel: sua mãe estava à morte num hospital. Chegou a tempo de encontrá-la ainda viva. Aproximou-se dela e murmurou: "Mãe, eu quero que você saiba que fui eu que capturei Adolf Eichmann". A mãe não reagiu e uma senhora, no leito ao lado, disse em ídiche: "Não adianta, ela não está ouvindo mais nada". Zvika repetiu: "Mãe, eu fui o captor de Eichmann". A mãe segurou sua mão e respondeu com o que lhe restava de voz: "Eu já entendi". E Zvika completou: "Descansa em paz que a nossa Fruma (sua irmã) está vingada".

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista