Seria possível que, há apenas um ano, ele tivesse uma família grande e feliz, de dez pessoas, e que agora, um ano depois, quase todos tivessem desaparecido? Era como se suas lembranças pertencessem a outros tempos, a outro lugar e a outra pessoa.

Ele não era o mesmo que em 1944. Seu universo escurecera. Em um ano, tudo havia mudado e o mundo do qual se lembrava desaparecera para sempre. Essa era a sua realidade e a de outros milhares de sobreviventes. A vida de antes deixar de existir.

Em 1944, antes que a guerra chegasse até a Iugoslávia, Ernest Hollander, de 17 anos, tinha quatro irmãos e três irmãs. Formavam um clã fechado e protegido por pais cuidadosos e amorosos. Mas, em 1945, um a um eles se foram, inclusive seus pais. Ernest tinha sido levado, junto com o irmão menor, Alex, e o pai, para um dos quatro piores campos de concentração da máquina mortífera nazista: Auschwitz, Dachau, Bergen-Belsen e Birkenau. O pai foi morto diante de seus olhos. Mas Ernest e Alex sobreviveram e nutriam a esperança de que talvez outros membros da família ainda estivessem vivos. Mas logo Ernest descobriu que eram os únicos sobreviventes de um lar que um dia transbordara de amor, risos e vida.

“Não acredito... não posso acreditar”, dizia Ernest tentando negar o que acontecera. “Preciso ter certeza”.

Como outros milhares de sobreviventes inconformados que, no pós-guerra, lutavam para encontrar suas famílias, Ernest contatou a Cruz Vermelha, acampamentos de desabrigados e agências judaicas de assistência social. Durante a busca, examinou as listas de sobreviventes e de mortos, esperando encontrar uma resposta. Foi então que descobriu que os canais informais de comunicação judaicos, ou seja, os boatos, ainda funcionavam de maneira eficiente. O que ele já sabia de sua família foi comprovado. 

Com a ajuda de vários oficiais, Ernest pôde traçar o destino de sua família. Os dados coincidiam com o que ele imaginava serem rumores e mentiras. Agora eram fatos concretos: confirmados, autenticados, selados e encerrados. Suas três irmãs tinham sido mortas nas câmaras de gás, em Auschwitz, junto com a mãe; um irmão desapareceria em um dos campos de concentração. Faltava apenas um, seu irmão mais velho, Herschel. Sugado pelo terror do Holocausto, Herschel desaparecera sem deixar nenhum sinal. Ninguém sabia se estava morto ou vivo.

Ernest acreditava que seu irmão estivesse vivo e saiu à sua procura. Atravessou a Europa várias vezes atrás de Herschel, indo a campos de refugiados, a escolas para sobreviventes e mesmo até sua cidade natal. E quando suas exaustivas buscas não obtiveram resultados, ampliou o seu leque, incluindo Israel, um país para onde tinham ido muitos sobreviventes. Mas, novamente, suas tentativas foram infrutíferas.

Com o decorrer do tempo, Ernest aceitou a derrota e a idéia de que também este outro irmão fora tragado pelo nazismo. Com o coração apertado, emigrou para Israel e em seguida para a América do Norte. Instalou-se em Oakland, um subúrbio de São Francisco. Começou vida nova, mas jamais se esqueceu dos horrores do Holocausto.

“Nunca mais!” Prometeu a si mesmo que faria todo o possível para tentar evitar que os horrores do Holocausto pudessem repetir-se. Na Califórnia, cumpriu sua promessa. Mostrou-se extremamente ativo nos assuntos da comunidade judaica, bem como nas questões de interesse geral. Seu espírito de liderança beneficiou particularmente seu projeto predileto: aulas sobre o Holocausto. Por mais de quarenta anos, Ernest dedicou-se a viajar pela Califórnia dando palestras em mais de duzentas escolas públicas por ano. Acreditava que as raízes do ódio, da intolerância, do preconceito e do anti-semitismo poderiam ser eliminadas com uma educação apropriada, começando pelas crianças e adolescentes. 

Em 1992, os produtores do programa de TV “Montel Williams Show” conceberam uma idéia inovadora: um debate ao vivo entre um neonazista, um “revisionista”, que negava o Holocausto e um historiador especializado no assunto. Os produtores logo encontraram um neonazista que quis participar, mas estava difícil encontrar um historiador do Holocausto que fosse um sobrevivente. Muitos se recusavam a dividir o palco com alguém que simbolizava o ódio. No desespero, os produtores ligaram para organizações judaicas em toda a Califórnia. Alguém conheceria um historiador-sobrevivente do Holocausto, que estivesse disposto a ter um debate com um neonazista, pela televisão? “Ernest Hollander”, todos disseram.

Ernest aceitou. “Palestras em escolas públicas me dão a oportunidade de influenciar positivamente milhares de crianças e adolescentes”, pensou, “mas com a TV, minha mensagem pode alcançar centenas de milhares de adultos”.

“Quem sabe quantas vidas podem mudar como resultado desse debate?”, pensou. Mas não fazia a mínima idéia de que a pessoa que sofreria a maior mudança seria ele mesmo!

Um nova-iorquino chamado Ziga traria isso à tona. Imigrante recente da Iugoslávia, Ziga trabalhava durante longos turnos, que terminavam às 22h. Sua mulher, médica, também trabalhava muito. Ela fazia o turno da noite. Durante o intervalo entre a saída de sua mulher para o trabalho e o retorno de Ziga à casa, tinham uma babá que cuidava de seu filho. Tudo sempre funcionara a contento. Mas, nessa noite, tinha havido um contratempo: a babá ligou avisando que estava doente e a mulher de Ziga não conseguia encontrar alguém para substituí-la. Ela temia que se faltasse ao trabalho, poderia estar comprometendo seu futuro. Ziga, por outro lado, estava muito bem posicionado no emprego e tinha uma boa relação com o patrão. A mulher de Ziga pediu-lhe, então, que saísse quatro horas antes do fim do turno, para ficar no lugar da babá.

Ziga voltou cedo para casa. O bebê estava dormindo profundamente e ele que estava sem sono, ligou a TV e começou a procurar entre os canais. Nada lhe chamou a atenção e ele continuou a apertar o botão de seu controle remoto, distraído. Mas quando apareceu o canal 9 na tela, Ziga começou a se interessar pelo que via. Fixou o olhar na tela, chocado e incrédulo. Assoviou baixinho, surpreso: “O que é que Herschel Hollander está fazendo no “Montel Williams Show?”, pensou, estupefato.

Ziga e Herschel Hollander se conheciam há muitos anos. Ziga crescera no mesmo prédio em Krakuujevik, Iugoslávia, onde Herschel morou durante quarenta anos. O homem mais velho gostava do jovem Ziga e se tornaram amigos. Ziga acreditava que Herschel ainda estava na Iugoslávia. Estava emocionado ao ver o rosto do amigo na sua frente, em um programa norte-americano. 

“Não posso acreditar que ele viesse aos Estados Unidos sem ao menos me dar um telefonema”, pensou, um tanto quanto ofendido. “Bem, então ligarei para ele”, disse Ziga, reconsiderando. Pegou o telefone e ligou para o Montel Williams Show. 

“Desculpe, senhor, os convidados não estão no estúdio agora, o show foi gravado. E de qualquer forma, eu não posso fornecer o número de telefone dos convidados”, respondeu uma voz feminina.
“Mas eu lhe imploro... Herschel Hollander é um velho amigo meu da Iugoslávia!”, disse Ziga.
“Senhor, está cometendo um erro. O convidado do programa de hoje é Ernest; e ele é americano”. 
“Impossível!” reclamou Ziga. “Eu conheço o meu amigo”.
“Bem, seu amigo deve ter um sósia, então”.

O homem que participava do programa se parecia com Herschel, falava como Herschel e seu sobrenome era, de fato, Hollander. Como poderiam existir tantas semelhanças entre dois homens? Essa dúvida o deixou perplexo por algumas semanas, até que viajou à Iugoslávia para visitar a família.

“Você sabe, Herschel”, ele disse ao amigo, durante uma visita, “tem um homem nos Estados Unidos que se parece com você, fala como você e age como você. Seu sobrenome também é Hollander”.
“E qual é o primeiro nome dele?”, perguntou Herschel ao amigo.
“Ernest”.
“Meu irmão”, sussurrou Herschel. “Meu irmão, que todos estes anos acreditei estar morto. Será que ele está realmente vivo?”

Imediatamente ligou para a produção do programa. Os produtores ficaram tão entusiasmados quanto ele ao saber do milagre originado por seu programa. Disseram-lhe que seria um enorme prazer dar a Herschel o número de telefone de seu irmão e sugeriram que o encontro dos dois acontecesse no programa deles. Herschel concordou.

Em outubro de 1992, Ernest Hollander voltou ao Montel Williams Show para encontrar seu irmão Herschel, a quem não via há 52 anos. Embora os dois já tivessem conversado várias vezes por telefone, essa era a primeira vez que se encontravam pessoalmente. Seu dramático e comovente encontro, exatamente como os produtores haviam previsto, deu-se em rede nacional. 

Herschel permaneceu nos Estados Unidos por mais de um ano para ficar com Ernest e, depois, Ernest viajou para a Iugoslávia para passar alguns meses com o irmão. “Eu passei seis anos maravilhosos com meu irmão, até ele morrer em 1999”, conta Ernest. “Depois de praticamente uma vida inteira separados, seis anos foi muito pouco, mas o tempo que ficamos juntos foi uma verdadeira bênção”.

Ernest tinha aparecido no Montel Williams Show com o objetivo de apontar as idéias e preconceitos que pavimentaram o caminho para o Holocausto e que norteiam o atual renascimento do anti-semitismo. Como poderia saber que essa mesma aparição na TV poderia também abrir o caminho para seu próprio milagre?

“Tudo aconteceu graças ao Ziga”, recorda. “Se ele não tivesse voltado para casa cedo, naquela noite, eu nunca teria encontrado meu irmão”... n

Fonte:
• Tradução livre do artigo publicado no livro “Small Miracles for the Jewish
Heart“, de Yitta Halberstam e Judith Leventhal.


A história por trás da história

Ernest “Ernie” Hollander morreu aos 77 anos, em Oakland, depois de permanecer doente durante vários anos. Nascido 1925, em Ochuwa, uma pequena cidade nas montanhas dos Cárpatos, que um dia foi a Checoslováquia, Ernie tinha sete irmãos. Sua família era dona do moinho da cidadezinha. Seu pai era rabino. Em cada geração - da Inquisição à Shoá - sempre havia um na família Hollander. Originalmente, o sobrenome de sua família era Albergezie. Seus antepassados eram judeus sefaraditas que após terem sido expulsos da Espanha refugiaram-se inicialmente na Holanda, e posteriormente, na Europa Oriental, onde mudaram o nome para Hollander, em uma referência ao país que primeiro os abrigou. 

Durante a Segunda Guerra Mundial, capturado pelos nazistas, Ernest foi enviado para vários campos de concentração, acabando como tantos outros judeus, em Auschwitz. A família Hollander havia sido quase toda dizimada. Na época Ernest só não soube o destino de seu irmão Zoltan ou “Herschel”, mas alguns anos após o termino da guerra, um amigo contou-lhe que vira seu irmão sendo enforcado em 1944, por soldados nazistas. Assim, ele e seu irmão Alex acreditavam ser os únicos sobreviventes da família.

Ernest retomou sua vida. Emigrou para Eretz Israelem 1946, onde conheceu Anna Marcowitz, com quem se casou no dia 29 de novembro de 1947 - data na qual a ONU votava a Partilha da Palestina, ato que levaria à criação do Estado de Israel, em 1948. A cerimônia foi realizada em Haifa, em um terraço, no telhado de um edifício. Na mesma noite, começaram as lutas na região e os convidados tiveram que se refugiar no apartamento de apenas um quarto do jovem casal. 

Ele lutou pelo Irgun antes e durante a Guerra da Independência, na qual foi ferido três vezes. Quando sua filha Beverly nasceu, ele estava em combate. Em 1950, os Hollanders emigraram para Nova York, onde nasceu seu filho Michael. Em 1960, mudaram-se para Oakland, onde abriram a padaria The New Yorker Bakery, tornando-se grandes doadores de produtos para as entidades judaicas locais. Em meados da década de 1960, vendeu a padaria e começou a trabalhar com metais. Tornou-se uma figura central na vida comunitária local. Uma de suas atividades era divulgar o Holocausto. Freqüentemente dava palestras em escolas, faculdades e igrejas de todos os credos. Ernest era uma testemunha nada silenciosa do mais terrível evento da história judaica”, afirmou o rabino de sua comunidade por ocasião de sua morte. "Sobreviveu com uma força de vontade e fé como poucos". 

Foi justamente em função de seus conhecimentos que em 1991 acabou participando do programa de televisão “The Montel Williams Show”. Como o debate era com um revisio-nista, que negava o Holocausto, muitos de seus familiares e amigos, inclusive seu rabino, aconselharam-no a não participar, para não dar legitimidade ao interlocutor. Mas Ernest participou e foi graças a isso que um milagre se realizou. Reencontrou seu irmão Zoltan, até então considerado morto.

A partir desse reencontro, Ernest conheceu a verdadeira trajetória de Zoltan “Hershe” Hollander. Em 1944, fora realmente colocado na forca em uma árvore pelos alemães, mas acabou caindo sobre as folhagens e fingiu estar morto até que pudesse escapar. Preso pelos russos, sob a acusação de ser um espião alemão, foi enviado à Sibéria por dez anos, onde trabalhou em fábricas e na construção de estradas. Ao ser finalmente libertado, Zoltan retornou à Iugoslávia, onde as autoridades locais o acusaram de ser espião soviético e o torturaram. Solto, reconstruiu sua vida, acreditando, durante 50 anos, ter perdido toda a família no Holocausto. Mas graças a uma série de coincidências extraordinárias, Zoltan reencontrou não apenas um, mas dois irmãos Ernest e Alex – assim como primos, tios, tias e sobrinhos espalhados pelos Estados Unidos e Canadá.

"Ernest era uma testemunha nada silenciosa do mais terrível evento da história judaica”, afirmou o rabino de sua comunidade por ocasião de sua morte. "Sobreviveu com uma força de vontade e fé como poucos. "